Não sou bom em identificar loucos. Mas reconheço
no ato um sujeito que vai ficar maluco no futuro. É bater o olho e sentenciar
comigo mesmo, questão de tempo.
Tempo quanto? Eis outro quesito em que
também não sou lá essas coisas. No início achava que seria bico, claro. Mal
avistava o doido de amanhã e já arbitrava o prazo de vencimento de sua lucidez:
não dura seis meses e tenho dito.
No aprazamento é que me estrepava. Os
pobres diabos acabavam endoidecendo de fato mas invariavelmente teimavam em descumprir
minhas estimativas temporais. Até que certo dia, voltando da padaria onde fora
comprar fósforo, cruzei c’um sujeito que morava nas redondezas lá da minha
antiga casa. Quando nossos olhares se encontraram durante meio segundo como
sempre ocorre com todos brasileiros que vagamos por algum motivo, ou mesmo sem
nenhum, pelas calçadas deste país, confabulei com meu próprio íntimo, um tanto orgulhoso
com minha sapiência, esse aí vai dar entrada no Charcot daqui uns oito meses;
nove, no máximo.
De fato, uma semana depois do episódio um
vizinho, carregando um saco de pãezinhos franceses, que, por mera coincidência,
também encontrei no caminho da padaria – só que desta vez na ida e não na volta
como na ocasião anterior –, me parou na calçada e, afetando aquele arzinho
misterioso que os brasileiros costumamos afetar quando nos juntamos para falar
dum terceiro, informou:
– Cara, ficou sabendo do Nestão?
– Nestão? Que Nestão?
– Aquele que mora nos fundos da casa da
dona Deodorina.
– Dona Deodorina...? Cocei a cabeça.
– Aquele que descobriu que o filho é gay,
cara!
– Ah, o Nestão! Que depois descobriu que
o filho gay era petista!
– Isso!
– Que é que tem o Nestão?
– Tá sabendo não?
Sacudi a cabeça que não e a seguir fiz
repetidamente que sim, tentando açular a verve do meu interlocutor para que desembuchasse
duma vez por todas.
– Foi internado...
De repente tudo se iluminou dentro da
minha cabeça num poderoso insight. O Nestão, pequepê.
– Internado onde?
– No Instituto Charcot. Coitado do pai
dele. Tá inconsolável.
Me senti triste e decepcionado. Triste
pelo Nestão, decepcionado por ter errado em mais de sete meses o prazo de
sobrevida da capacidade do Nestão em discernir as coisas.
Não podia continuar sendo inconsequente com
meus dementes do porvir e assim tomei uma decisão: limitar-me-ia a lhes diagnosticar
a condição clínica. A partir daquele dia deixaria para o santo padroeiro dos descabeçados
o cálculo para a chegada da ambulância do Samu. Vocês sabem, um parricida para
mim tem mais caráter que um leviano.
Bem, só agora vejo que sofri mais uma recaída
na Síndrome do Verissimo. Me perdoem, peço. Tudo que posso dizer é, acontece.
Retomo a partir daqui meu tema e, mais
importante, a forma como gosto de abordar meus temas.
A arte de
identificar futuros loucos não é tão difícil quanto possa soar. Na verdade nem sei se chamá-la
de arte seria apropriado. Classifico assim simplesmente porque estou mais próximo
– e aqui não vai nenhum juízo de valor – do mundo culto, i.e., aquele em que
existe o costume de cultivar o conhecimento e passá-lo adiante através de métodos
formais. Um mundo não culto seria aquele em que se transmite o conhecimento empregando
outros meios. Se fosse uma ocupação reconhecida oficialmente, não duvido que
algum burocrata não hesitaria em categorizá-la como O ofício de identificar futuros loucos para, ato contínuo, uma
repartição qualquer da Receita Federal tascar oitenta por cento de imposto de
renda sobre o exercício de tal ofício.
Tem pouco a ver com arte, em conclusão. Uma
artimanha, talvez? Engenho? Gosto muito de malícia,
que é que acham? A malícia sempre exerceu um fascínio tremendo sobre esta minha
índole quase selvagemente fantasiosa. Aprendi muito cedo a identificar os
maliciosos – e invejá-los. É da malícia que se originam várias outras virtudes
que igualmente invejo em certos bem-dotados na arte de enganar a vida. A lábia, por exemplo. Ah! daria qualquer
coisa para ter lábia.
Comecei a compreender – e reconhecer – os
experts da lábia quando comecei a compreender o poder da palavra. Tinha uns
seis, sete anos, mas lembro como se fosse ontem. Fiquei maravilhado a primeira
vez que meu pai me levou no estabelecimento dum comerciante na “cidade” e
travei meu primeiro contato c’um vendedor. Um procênio de teatro se descortinou
na frente dos meus olhinhos inocentes de neto de imigrantes italianos que se
entregaram obstinadamente à lavoura – e a intolerável solidão da lida com a
terra. O vendedor me revelou um mundo em que a troca das palavras entre dois ou
mais viventes não precisavam obedecer à lógica do utilitarismo que seguíamos
caninamente dentro de nossa casinha de cumpridores da lei e da ordem. Fui descobrir,
alguns anos depois, que acabara de travar contato c’uma das infinitas variações
do comportamento das pessoas. E ainda outros anos depois descobri que a lábia era
o truque aplicado por aqueles com pendores a expandir suas personalidades e
assim seduzir e quem sabe ser aceitos e quem sabe ser amados e então talvez pôr
em prática seu experimento pessoal de felicidade.
Continuo tendo problemas em identificar
loucos.
E continuo identificando loucos futuros
sem problemas.
É aquele brilhozinho no olhar deles.
Que é que posso fazer?
Me diga!
Se o olhar deles tem aquele brilhozinho,
a culpa não é minha. Em algum ponto do futuro haverão de perder a razão, a
capacidade de atentar para as palavras dum interlocutor, a capacidade de cuidar
de sua própria sobrevivência.
Imagino que a incapacidade de cuidar da própria
sobrevivência seja o sintoma mais flagrante de loucura.
Se você soltar um sujeito no meio do deserto
da Califórnia, será fácil identificar sua insanidade se ele se deter ante um
daqueles cactos enormes para apreciar uma daquelas espetaculares flores carmins
que só os cactos são capazes de engendrar. Nós outros não insanos trataríamos
de olhar o horizonte em busca do mais próximo sinal de civilização.
Tento não entrar numas quando dou c’um
futuro louco. A gente nunca sabe. Escuto obediente tomando o cuidado de captar
pelo menos metade do arrazoado do candidato a maluco, para o caso de ele me sabatinar em
seguida. Sim, já caí numas esparrelas do tipo. Os futuros loucos são
astuciosos. Cultivam – e dominam – uma lábia que é só deles. A lábia dos loucos.
Que em seus grandes dias emana dos finos lábios dos loucos que, aliados àquele
brilhozinho indefinível em seu olhar que aprendi a definir, tem ajudado a me
esgueirar pelas frestas e brechas do enlouquecimento sensato e sadio do mundo
dos sãos.