moustique

Masami, você dava oi quando era pequena? (Já foi pequena um dia? Duvido. Se foi, como pôde ficar tão adulta assim? Dieta à base hormonal? Trauma psico-emocional? Leitura diuturna do horóscopo? Evolução natural da espécie?)
Pelo que posso ver de hoje, acho que era mais dada a alôs. Acertei? Aqueles alôs que vemos nos filmes (ou víamos, não sei, há séculos não assisto filme) e que ninguém aqui fora na vida real usava. De minha parte foi mais ou menos assim que cresci, essa dicotomia entre o que se passava na tela de tevê Philco de 21” lá de casa e o mundo de verdade. Sei, você não pegou a época da tevê 21 polegadas. Não tinha tevê de outras polegadas, de 29, 34 ou 348 como tem hoje. Só muito depois, quando já era adulto, começaram a aparecer as de 16”, depois vieram as de 14” e daí em diante u-name-it. Sem falar que não tinha tevê a cores (ou em cores, como quer Herr Doktor Paschoalino, o dono do português. Um dia há uns anos tava lendo aquela seção de filmes da, blergh, vejinha, e o carinha lá disse que o não-lembro-o-quê no filme tal era do arco da velha, saca? Nem sonhar, pensei com meu zíper de 12 cm. Carinha tá querendo dizer que o troço é antiquado e arco da velha não quer dizer antiquado. Fui correndo no computador e corrigi o destrambelhado. Sabe o que o destrambelhado fez? Nem te conto. Passou a bola pro Herr Doktor Paschoalino, o dono do português, e o Herr Doktor Paschoalino, o dono do português, bateu o martelo que quem estava errado era este escriba que vos escreve e que, “inclusive”, a expressão já estava “dicionarizada” na acepção de antiquado. Incontinenti, trepliquei que nem sonhar, arco da velha não significa nem nunca significou antiquado, coisa e tal, e desci o sarrafo na vejinha e no profe, que, naturalmente, sentado em seu trono no cimo do mundo, de onde comanda o uso escorreito do vernáculo, se fez de rogado e não deu pelota pra minha diatribe. Só me restou uma solitária interjeição durante o banho, “Filho da puta!” e jurei nunca mais botar meus eternamente deslumbrados olhos naquele almanaque de analfas de pai e mãe. Às vezes passo no site da Folha e dou de cara com a cara bolachuda bonachona do guru e sua autossuficiência gramatical que sempre finalizava seus artiguetes caga-regras cum jactancioso “é isso”, como se tivesse esgotado o assunto para todo o sempre, filho duma égua carcamana.).
Masami, lembra dos ois da tua infância?
Não diga que não. Sei que lembra. Pois eu lembro.
Os meus e os daqueles a quem os dava e os daqueles com que eles me respondiam eram ois sem segundas intenções. Não tinham timbres dissimulados que nos inculcassem desconfiança. Eram endereçados aos destinatários a quem pretendíamos endereçá-los. Quando queríamos dar oi a outros, era a esses outros que dávamos oi e tudo se mantinha na mais fantástica simplicidade.
Sim, você lembra. Mesmo que não queira lembrar. Ou dizer.
Pois eu lembro. E gosto de lembrar, mesmo que não precise. Pois é dessas lembranças que se apossaram da minha consciência e deixaram de ser lembranças para se tornar pensamentos.
Oi, Masami.
Lembra daquele poema que fiz pra você?
Sei que lembra.
Se eu pedir, sei que é até capaz de recitar verso por verso de cor.
Mas não precisa. Pois, Masami, nunca fiz poema nenhum pra você.
Não, minto.
Fiz. Fiz mas nunca te mostrei. Tampouco o mencionei.
Teclando o ponto final, exalei o ar do pulmão e percebi que tinha prendido a respiração até então e me deu um pouco de pânico pensar que podia ter batido as botas escrevendo um poema. Não é raro acontecer. Fico tão entusiasmado durante. A inspiração inebria. Ao lado duma smirnoff ultrahiper então, nem preciso falar. É assim que quero morrer, de pulmões paralisados a aguardar a próxima palavra, o indicador da mão direita suspenso no ar pronto pra detonar a primeira letra da disgramada. É essa teclada irrealizada que quero levar pro crematório da vila Alpina. Deus nunca adivinhará minha última letra neste vale de lágrimas e esta será minha vingança.
Meus melhores poemas, nunca os publico, nunca os mostro a ninguém. Ficam enterrados em um dos meus arquivos protegidos por criptografia. Ninguém os lerá, a menos que peçam ajuda à NSA, que muito provavelmente vem guardando tudo que produzi até hoje num dos seus milhares de cofres-fortes nalguma ilha do Pacífico. Meus poemas secretos, que crio pro meu exclusivo usufruto e deleite, são minha reserva emocional. Preciso duma tolerância psíquica. Sem ela acho que teria empacotado há anos, talvez décadas. Preciso ter palavras que sejam só minhas e de mais ninguém, que possa controlar do início ao fim, tramando os encontros vocálicos ao meu bel prazer,   urdindo os desencontros consonantais como me der na telha.
(Há outros poemas que já foram conspurcados por olhares sujos e não quero falar deles porque não sei como falar deles. Não, minto de novo. Sei como, mas, se falasse, seria melhor não ter falado. As nódoas infligidas por tais olhares são indeléveis, podem disseminar sua morbidez qual cancros malignos, impregnar esta atmosfera em que esperneio em câmara-lenta, impedindo que me inspire e congele minha respiração antes que tenha a chance de me preparar para meu último gesto teatral do indicador parado no ar.)
Esses poemas que nunca mostro a ninguém estão bem acompanhados de três romances que escrevi quase até o fim, exceto a última página. A última página de cada um deles entrará na minha cena final, se tiver a oportunidade. Masami, sei que tudo isso soa intoleravelmente romântico pra você. Rogo que tenha um pouco de paciência hoje. Amanhã tentarei retomar nossa normalidade de fileiras de batidas de fruta no Figueira Rubayat da Haddock ou do Lellis Tratoria da Bela Cintra. Se fizer questão, podemos terminar a noite naquele motelzinho modesto à beira da Anchieta em Rudge Ramos, lembra? Sei que sim. Pois eu lembro. Sabe como chama um desses três romances? Não, não sabe. E não vou lhe contar. Você não merece, Masami. Mulher nenhuma merece. Ninguém merece.
Masami, não entendi por que ficou puta comigo ontem à noite no Fasano. Não entendi mas desconfio. Não, minto pela terceira vez. Tenho certeza. Fui comer o creme de queijo mascarpone depois do vinho marsala. E quando ficou durinho não te deixei quebrar com a colher. Foi esse instante, Masami. Vi direitinho a sombra entrar por debaixo pelo teu queixo, passear pela tua testa e pomos e abandonar teu rosto no arreganho desse teu narizito de fada. (Putz, o que tem de mulher nariguda por aí, já me bastam as carcamanas de nasone largo.) Quando veio o suflê desenformado de queijo sobre creme de batata ao parmesão e o tartare de atum coberto por uma esfera de iogurte — isso mesmo (removamos o excesso; no clássico Fasano há uma esfera de iogurte). Como se ainda fosse pouco, torci meu narigão pro pici ao vôngole colorido com flores de brócolis e um toque de pimenta dedo-de-moça cortada em cubinhos e o ravióli de vitelo regado por creme de queijo parmesão com fios de molho rôti. Mas, vem cá, Masami, não negue que salvei a noite pedindo o porquinho de leite de carne envolta em pele fina qual papel crocante, assentado sobre feijão-branco a cores, digo, em cores.
Masami, porra, sou, ou pretendo ser, escritor e poeta, mesmo distante do glutão com que você sempre sonhou e muito menos o gourmand sofisticado que sua família de japas endinheirados vem planejando pra tua vida desde o berço. Masami, escuta, quando escrevo me entusiasmo, me encharco da minha necessidade estética, perco as "referências", se é que me entende. Não fique sentida, não tenho jeito. Só quero que saiba que os poemas que fiz pra você foram sinceros no momento em que os fiz. Se não lhos mostrei, é outra história bem diferente.)
Masami, você sabe por que te amo.
Te amo porque você me faz escrever bem.
Não, não tenho desculpa mais decente a lhe dar, infelizmente.
Pra mim é suficiente.
Você me faz escrever quase como Goethe, imodéstia etc.
E quando escrevo pensando em você praticamente não preciso fazer alterações, fora uma rima aqui ou uma sílaba excessiva acolá.
Teu poema nasceu aquele momento em que você disse que queria me dar um beijo.
Gosh, não acredito que tenha tido vontade de me beijar bem quando minha boca estava cheia de tiramisu e rimos juntos e aquele fotógrafo registrou tudo e te vendeu a foto por parcos seiscentos reais. Adoro mulheres que não têm problema de grana.
Éramos tão outros aquele instante. Eu podia ter te passado a conversa, aproveitado o ambiente aristotélico para mentir que o que tinha me inspirado eram as trufa negras tomando banho naquele creme branco que na hora não reconheci.
Sei que naquele momento me amou pra todo o sempre. Mesmo assim me contive. Isso não vale nem um tostão furado?

Sabe, Masami, descobri que toda, ou quase, sujeira do mundo vem desses olhares encardidos que mencionei. E sabe quando foi que descobri? Agora, te escrevendo. Viu só como podemos lavar as mãos um do outro?

Me dá o prazer desta dança?

Poetas formam um bando de autistas desesperadamente ávidos por se tocar, trocar afagos e risos, lambidas e mordidas
E cada um deles fica lá no seu cantinho, esperando que um outro
Lhe estenda a mão
Lhe declare sua paixão
Isso nunca acontece pois
Poetas são uma chusma de paraplégicos manetas
Da vida doentes
Do mundo descrentes
Se põem a aspargir seu spray metafísico
Espalhando seus versinhos pelo ar
Na anti-esperança de que virem kafkianos insetos
Abortados do coito da
Hedionda noite sequestrada ao espaço
E a infinda aurora que, sem cabaço,
É virgem nascida
Parindo o dia de talidomida
Então esses loucos
De peitos moucos
Ouvidos roucos
Esses poetas que
São, ó, tão, tão, tão poucos
Rendidos
Recorrem aos galos para que
Estes sim
Lhes teçam a manhã
Esgarçada que seja
E palavra inalcançável lhes ofertem de
Troféu numa bandeja

Chegando do blog da Sabine?

Sejam bem-vindos.

Depois que a Sabine publicou meu comentário em seu blog este meu humílimo cantinho literário passou a receber quase três visitas a mais por dia, uma verdadeira saravá-lanche pros meus modestos padrões.

Não se acanhem, leiam à vontade. Só não deixem comentários, pois a área de comentários está desabilitada. É que não topo muito que comentem meus textículos, sabem como é, sou 1/2 pávulo. Pelintra. Paparrotão. Pomadista. Regateiro.

Se quiserem, mandem e-1/2. Mas peço que maneirem na virilidade, sou virgem ainda.

Enquanto dorme e mordo

Este é pra você
Estátua morta
E prenha
Que de noite
Boia e mia
E, pasma, nega
Durante o dia

Este é pra você
Fedorenta
Estátua nua
Exumada
na manhã fria
Com tua carne
De podre
Pedra a atrair
Meus pensa-
Mentos vare-
Jeiros voando
Em halo injusto
Brilhante em volta
Do teu busto
Pálpebras crispadas
A tremer de susto

Por que vivo esquecendo que nunca virei o bastante?

Vem

Disfarçar os meus assombros
Recolher os meus escombros
Sabotar a melodia
Quando a noite traga o dia
Ludibriar o meu destino
Me amar sob meu hino
Delatar minhas mentiras
Costurar as minhas tiras
Me vestir a fantasia
Vem dançar minhas orgias
Desfazer os meus defeitos
Celebrar quando me deito
Espantar meu pesadelo
Demolir meu castelo
Me encontrar no labirinto
Atiçar a dor que sinto
Desarmar as armadilhas
Habitar minha ilha
Desenganar minha loucura
Eternizar esta tontura
Despentear o meu cabelo
Vem zombar do meu apelo
Me inebriar neste delírio
Me cegar com teu colírio
Pra que eu veja o horizonte
e atravesse esta ponte
E me vingue do cansaço
E me torture nos teus braços
E confesse os teus segredos
Vem trancar todas as portas
Me furtar do meu senhor
Vem trair o teu amor
Me frustrar do meu castigo
Me vender ao inimigo
Infectar minhas feridas
Pôr veneno na comida
Me curar com doce fel
e queimar com lábios ternos
todos os restos da beleza
Calcular no infinito
até onde ecoa o grito
Confundir os trocadilhos
Vem armar loucos gatilhos
Disparar no imenso alvo
Vem findar o tempo eterno
Não ouvir o meu chamado
Apagar o meu passado
Incendiar a minha casa
Vem amar na minha cama
Implorar mais uma rima
Prolongar este suplício
De cumprir o meu ofício
de absolver as culpas
Inspirar em minha febre
meu último desejo
ao meu amor perdido
executa a sentença
Pronuncia meu destino
de cantar o desatino
Quando a noite a traga o dia
leva embora a melodia
Quando a noite rende o dia
quero entoar a melodia
Quando a noite fende o dia
vem punir a melodia
Quando a noite leva o dia
acabar a melodia
Um dia

Tão pertinho agora

Bem que te avisei
Olha os elfos
Você debochou
Então olha as bestas!
Você riu
Então olha pelo menos
O foguete subindo no
Céu
Não diga que foi um
Erro
Foi mas não diga
Teus olhos são um jardim
Com tantas flores
Para os meus
Não há elfos nem
Unicórnios sob
Nenhuma delas
Apenas bactérias
E micróbios que
Aguardam a
Reconciliação em
Mim

Masami, escuta

É uma pena
Mas você terá que se matar
Já lhe disse?
Fique sabendo,
há algo letal no ar que te cerca
(como diria James Dickey,
neste quarto em nenhum
de nós morreria)
há algo de diabólico nesse anjo
algo de mágico nessa toada
que se repete desde quando
você inventou o tempo

Me formo entre teu
olhar e teu
nariz e
teu sorriso convidativo, publicitário
[reticências]
Faço de conta que teu cabelo não se esparrama por tua escápula para semicobrir o colo (tais fenômenos estão além dos poderes da ciência)

Lembra quando me perguntou meu nome?
Ainda não sei
E jamais saberei
Olha lá no céu
Aquela nuvem com cara de
Cientista, ele sabe o que
Aconteceria
Tudo bem, sou covarde e vou ficar aqui só imaginando (é o que mais fazem os covardes)

Comecei falando que você deve se matar?
Também acho.
Arrumar algo útil que fazer além de me
Deixar louco?

Colabore com os novos tempos
Ajude a reciclar este fóssil carbonizado na areia cibernética
Escuta, Masami, essa alça negra que sustenta esse teu seio esquerdo com base em seu ombro, haveria como dinamitá-la?
E esses brinquinhos pingando de teus lóbulos de loba

Não quero ninguém

Estou aqui fazendo o que mais gosto de fazer na vida – caminhar pelas ruas. (Caminho de olhos baixos.)
Estou no meio do quarteirão, um sujeito dobra a esquina.
É manco. Ninguém tem equilíbrio mais perfeito do que o manco.
Olho a calçada.
Passo por uma árvore, olho a árvore.
Olho a rua, olho a cidade.
Me lembro quando olhei algo (uma cidade, rua, árvore, calçada) como se fosse a primeira vez mesmo depois de anos ou décadas e todos meus olhares passados pareceram tão envelhecidos.
O manco passa por mim, eu passo pelo manco. Bloqueio as narinas para não sentir o cheiro dele. Quero olhar pra ver se ele faz o mesmo. Não parece um sujeito prevenido. Quanto a mim, sou. Sou, sou sou. Meu cheiro carrega um veneninho mortal difícil de sentir.
São as minhas palavras.
Baixo o olhar.
Alguém dobra a esquina
Agora é uma moça.
Há em seu rosto um estranho desenho
Formado do cantinho setentrional dos lábios
Ao pontinho mais meridional do pomo esquerdo
Se fosse distraído, eu provavelmente não enxergaria tamanha ageometria
Mas caçadores de experiências feito eu caem
Alegremente na armadilha desse sorriso
Olho para o céu
Vejo uma luz acesa num apartamento no meio do arranha-céu (!)
A sala vazia parece estar vazia
E a luz é dourada
Iluminando algo que ainda não morreu
Prenunciando uma vida sagrada
Que não se extingue
Tenho por minha esta luz
É esta luz que lhe ofereço