Ode aos bananíssimos

Ó banho-marioso escritor
Que por 30 décadas vem
Recozendo tua prevista
Empresa na Literatura
Nacional, cioso e consistente,
chegando a bater os pés em
chover sem molhar.


Saibas que do prato-feito
outros há que até esticam
a canela em inclementes
lutas contra a Patifaria
Nacional travadas em antros
mil pelas quebradas do País.


Pois escritor que é escritor
sucumbe – e deve morrer 
do coração ou do fígado
ou então mata-se, pois, 
como todo soldado apto
à luta, se vexa em não tombar
no campo de batalha, alheio
às ninharias do currículo.



Je t'aime moi non plus

Okay, meus versos estão longe do gênio de Bandeira, da inventividade de Drummond, da propriedade de Murilo.

Mas não é preciso espezinhá-los como se não prestassem senão para caldo de lavagem dos porcos.

Com o cuspe no bico

Meu vizinho imediato, que morava do outro lado do muro, sumiu.

Se mudou, provavelmente.

E com certeza não foi sequestrado. E não o apagaram, eliminaram nem liquidaram.

Não vi nem ouvi nenhuma viatura da polícia por perto nos últimos tempos.

Não posso descartar assim sumariamente a possibilidade de que ele ainda esteja dentro da casa em estado cadavérico.

Mas é improvável.

Eu mesmo teria sentido o fedor do corpo em decomposição, embora tenha por hábito não dar muita trela a estímulos sensoriais.

De qualquer forma, mesmo que eu não tenha me dado conta, um vizinho do meu sumido vizinho certamente o faria, isto é, se daria conta.

Dizem que depois de dois ou três dias um defunto fede indisfarçavelmente. Não duvido. Se tal acontece com as carcaças dos frangos no refrigerador do Carrefour, de certo ocorrerá também com seres humanos em decomposição.

Seja como for, notei a ausência desse vizinho pelo silêncio.

O sujeito era (será que ainda é?) assaz barulhento.

Toda manhã escutava o programa do padre Marcelo no rádio. O padre Marcelo também é um sujeito barulhento. E enervantemente redundante. Fica repetindo Jesus Jesus Jesus Jesus e Jesus sem parar. Eu achava que fosse algum disco quebrado, até perceber que a intenção do tal padre é enfiar a todo custo na cachola de seus ouvintes que o filho de Deus tem mesmo a capacidade de nos salvar.

Ao término do citado programa do citado padre Marcelo, eu escutava o referido vizinho dar um ou mais telefonema de seu celular. Parecia ser sempre para a mesma pessoa. Nunca pude identificar se o chamado era homem ou mulher. Mas uma coisa determinei: meu vizinho não se dava nada bem com a pessoa do outro lado linha. Mandava-o ou mandava-a ir tomar no cu de minuto a minuto. Por que, nunca me ficou totalmente claro.

De qualquer forma, nunca prestei muita atenção mesmo. Não costumo dar grande importância a vizinhos.

Até que esta manhã, não sei bem por que, acabei sentindo falta de seus impropérios contra o desconhecido ou a desconhecida.

Seja como for, espero que o mesmo ou a mesma não tenha resolvido se vingar, acabando com a raça do coitado.

Puxa vida, me ocorre agora que eu até gostava daquele vizinho.

Pensamentos numa mesa de bar

1 - Vendo minha cadela Xuca descer a escada feliz com o naco de frango com que a brindei, lembro que nunca acreditei que os seres humanos podem ser comprados por tamanha ninharia. Humanos são eleitos, pensava. Só se vendem por causas "nobres".

2 - A calçada em frente ao bar é varrida por uma ventania. Queria estar lá. A perdi para sempre. Como aquela vez aquele trem.

3 - Estou entrando em manutenção poética. Preciso reparar meu coração.

4 - É sempre bom lembrar que um copo de uísque vazio dá uma baita ansiedade.

5 - Tem um pessoal por aí que faz poesia que devia ser menos condescendente consigo mesmo. Passarinho é bonitinho e mavioso mas pode fazer cocô na alma.

6 - Poeta que se diz poeta não tem direito de não tomar conhecimento da nojeira à nossa volta, fingindo estar num éden forrado de flores, dores e amores. Fazer poesia inclui, entre outros misteres, enfiar a mão na merda.

7 - Estou numa fase em que mereço um troféu por chegar ao fim de cada dia.

8 - Se você é capaz de perdoar um pai que abandona um filho ou um filho que mata o próprio pai, então pode de fato dizer que foi agraciado com a dádiva da capacidade do perdão.

9 - O Twitter é a quintessência do frívolo, do rasteiro, do raso, do ligeiro, do anódino. Não que o limite de 140 caracteres faça grande diferença para quem não estava habituado a escrever sequer 15. Mas é óbvio que os twitteiros estão incorporando esse "poder de síntese" como limite ao próprio pensamento. Que me perdoem os novos sintéticos, mas o verdadeiro pensamento requer bem maior elaboração. As novas gerações provavelmente serão incapazes de ler mais que 140 caracteres duma só vez.

10 - Sentado ao lado de duas matracas no consultório médico, não tive alternativa senão fechar os olhos.

E pensar que uma época houve em que pensava que podiam haver melhores dias

Sim.
Houve um tempo em que apontava minha mão
E a mulher que estava ao meu lado
Perguntava como sabia que ela viera de lá.

Foi o tempo em que existia em mim a percepção da
Dor absoluta
E o conhecimento de que a noite enfim
Chegara

Uma algema espremia meu corpo,
Espirrando meus sentimentos para fora de mim
Para acobertar a ruína à minha volta

Então a mulher que estava ao meu lado
Deitava-se, observando as ações que eu
Executava com a naturalidade dum homem,
E, sem condescendência, anunciava que
Éramos um para o outro a única vitória
Que jamais lograríamos realizar.

Sim.
Foi um tempo em que tecia súplicas para
Não ser abatido e que fosse poupado
Da absorção pela latejante noite

Foi um tempo em que sorria silenciosamente
Dos meus braços lassos estendidos ao lado
Do meu tórax e ainda assim não me
Reconhecia semelhante a quem quer que
Fosse
Sequer esperando que quando a noite enfim
Cessasse não seria agraciado com a ressurreição
Ante os pecados cometidos no dia daqueles
Tempos

Houve, sim, um tempo em que ao meu lado
Havia uma tão extraordinária mulher, que
Me aterrorizavam as pessoas, mesmo que
Parececem ter despertado de seu descanso
Eterno e descido do céu

Foi o tempo em que guerreiro me designei
Encastelado no quartel-general do meu
Quarto.

Hoje sou meu prisioneiro.
E, sob branda, nauseante tortura, me faço
A mesma confissão dia após dia

Ode antidiabética


Lacrimeja a luz do sol,
nasce a manhã em cesariana.
A madrasta, distraída da dieta,
contrai o crespo ventre,
enjaulando os nascituros 
hesitantes em vir ao mundo
E retardando para sempre seu êxodo
ao impossível crepúsculo.

Eis a aurora que meu coração aguardava
para que a formidável marcha das coisas
se inaugure sob a tempestade de 
estireno.

Na infecção empanturrada
das fragrantes folhas de plástico, 
declaro meu amor,
que viceja, cogumelo acrômico,
sob flores de isopor.

O que esqueci de dizer ontem

Um dia desses
Um dia desses ela voou como se fosse
Um dia desses ela voou como se fosse normal e passou
Um dia desses ela voou como se fosse normal e passou defronte a minha janela

Enquanto voava defronte a minha janela como se fosse normal, parou feito um anjo
E, feito um anjo, falou de seu amor

E lá estava eu
Lá estava eu do lado de lá
Lá estava eu do lado de cá
Lá estava eu do lado de cá da janela
E respondi: um dia, um dia desses, todos descobrirão que pelos cômodos desta casa caminhou o amor

Escuta
Quero me lembrar das coisas que foram feitas há algum tempo quando ainda não alçavas voo
Quero me lembrar de quando voltávamos para casa com saudade da simplicidade dos nossos sonhos
E, distraídos, roçávamos aquelas paredes sem cogitar se havia nelas algo especial

Letras, estampas, tilápias na lagoa, um chapéu, uma mulher traída

Um dia se abrirá uma saída e ambos (nós dois? quem somos nós? mas não morremos aquela noite há mais de trinta anos parados no portão daquela casa que guardava seres e histórias insondáveis e que desgraçadamente invadi com a intenção de roubar?)

Um dia se abrirá uma saída e ambos serão livres.
E nunca mais voltarão.
E nunca mais pensarei em um ou em outro.
Pois a morte sem rosto, sem hálito, sem cheiro soterrará meus pensamentos e me personificará neste meu corpo que hoje ainda me permite habitar.

Ele e ela (assim como, antes, Ele e Ela, os dois, o casal, o par que mil circunstâncias se orquestraram silenciosamente para unir)

Ele e ela serão convidados para um lugar na plateia da tragicomédia a que assistirão sem saber e cujo princípio não perceberão e que se terá findado tão logo tenha início, igualmente sem que ambos tenham ciência.

Houve um dia, também distante no tempo, em que ambos (ambos? mas de quem falo, afinal? ambos nunca existiram e, se há um ser, uma engrenagem, um padrão que nos rege a todos, pobres diabos abandonados à própria sorte neste infame pavilhão destituído de teto e paredes, então suplico a tal ser, engrenagem ou padrão que ao menos uma vez se compadeça e extinga o nauseabundo pulsar do tempo)

Houve um dia, também distante no tempo, em que ambos se puseram a marchar por uma estrada em linha reta, estrada das antigas, ainda provida de arredores em que ambos podiam se perder até a boca da noite sem provocar nascimentos malignos.

E foi em tais arredores que se deu o sacrifício: ambos fecundaram infecundamente o apodrecido,  degenerescente fruto que de pronto personificou a solidão e abandonado foi em algum ponto da estrada que não tinha direção.

E de pronto tal fruto designou a si a missão de caminhar até o fim do mundo onde, imaginava, poria uma das mãos no céu.

E, cumprida a proeza, iniciaria sua caminhada contrária ao rodopiar do mundo.

E, sendo isento de leis, decretaria a abolição de todas as leis:

A partir daquele instante, e em todos os instantes a partir daquele, comprometia-se a:

falar caladamente, manifestar o silêncio, rindo lágrimas, chorando risos
sempre girando ao contrário do mundo
avançando para dentro da saída eternamente aberta
abandonando ao longo da estrada a máscara da inocência
que um dia cobriu ao meio o rosto vazio.

Mas se ainda assim

Por hoje chega.
Chega de fuçar vidinhas.
Não nasci para a microbiologia.
Hoje quero estar a mil km longe de tudo e de todos.
Quero estar longe de você.
Quero estar longe de mim.
Hoje não vou esperar minha chance.
Hoje não será o dia em que algum dos meus sonhos se fará realidade.
Pois hoje não tenho sonhos. Chega de sonhos.
Se o diabo surgir à minha frente a qualquer hora deste dia ensolarado que promete ser insuportavelmente escaldante e me disser que vou morrer antes de a noite chegar, não estranharei.
Se puder, e se ele se der a tais intimidades, me limitarei a lhe apertar a pata e agradecer pela informação. Se tiver a boa vontade de me dizer também a hora exata do meu último suspiro, melhor. Assim me pouparei de cargas extras de ansiedade.
Embora não me sinta ansioso. Se acreditasse em milagres, diria estar na presença de um. A ansiedade é minha mais antiga parceira. Mais antiga mesmo que minha solidão.
Ambas formaram, e ainda formam, um belo par de sapatões medonhos. Sempre aos mais indecentes beijos enquanto me olham de lado a escarnecer. E sob seus cânticos macabros e suas altercações histéricas aprendi a dormir com o coração aos pulos.
Só que hoje não.
Hoje estou livre das minhas velhas amigas e de todas as más amizades que aprendi a aceitar na marra.
Hoje sinto que não preciso me munir de coragem para seguir avante.
Pois não quero avançar aonde quer que seja. E tampouco quero retroceder. E muito menos permanecer onde estou. Não quero o movimento ou a inércia. Não quero nada.
Hoje tampouco vou comer. Ou beber. Pela primeira vez nas últimas décadas, deixarei de me gratificar às mordidas e me sorver aos golinhos. Hoje me engulo inteiro duma vez. E me sinto saciado. Desesperadamente saciado.
Por hoje chega de mim.
Chega de você.
Chega de vida.
Chega de mundo.
Não quero mais essa generalização que abarca tudo como se tudo fosse um só e exclui o que há em mim como se o que há em mim fosse nada.
Não quero a síntese duma palavra, não quero me invaginar num símbolo, não quero a chave dos segredos que busquei sonâmbula e incansavelmente.
Não quero pensar em nomes que não posso chamar.
Delirar com corpos que não posso amar e bocas que não posso beijar.
Por hoje chega.
Chega de trabalho e de descanso.
Por hoje chega.
Chega de futuro e de presente.
Por hoje chega.