Letras, estampas, tilápias na lagoa, um chapéu, uma mulher traída

Um dia se abrirá uma saída e ambos (nós dois? quem somos nós? mas não morremos aquela noite há mais de trinta anos parados no portão daquela casa que guardava seres e histórias insondáveis e que desgraçadamente invadi com a intenção de roubar?)

Um dia se abrirá uma saída e ambos serão livres.
E nunca mais voltarão.
E nunca mais pensarei em um ou em outro.
Pois a morte sem rosto, sem hálito, sem cheiro soterrará meus pensamentos e me personificará neste meu corpo que hoje ainda me permite habitar.

Ele e ela (assim como, antes, Ele e Ela, os dois, o casal, o par que mil circunstâncias se orquestraram silenciosamente para unir)

Ele e ela serão convidados para um lugar na plateia da tragicomédia a que assistirão sem saber e cujo princípio não perceberão e que se terá findado tão logo tenha início, igualmente sem que ambos tenham ciência.

Houve um dia, também distante no tempo, em que ambos (ambos? mas de quem falo, afinal? ambos nunca existiram e, se há um ser, uma engrenagem, um padrão que nos rege a todos, pobres diabos abandonados à própria sorte neste infame pavilhão destituído de teto e paredes, então suplico a tal ser, engrenagem ou padrão que ao menos uma vez se compadeça e extinga o nauseabundo pulsar do tempo)

Houve um dia, também distante no tempo, em que ambos se puseram a marchar por uma estrada em linha reta, estrada das antigas, ainda provida de arredores em que ambos podiam se perder até a boca da noite sem provocar nascimentos malignos.

E foi em tais arredores que se deu o sacrifício: ambos fecundaram infecundamente o apodrecido,  degenerescente fruto que de pronto personificou a solidão e abandonado foi em algum ponto da estrada que não tinha direção.

E de pronto tal fruto designou a si a missão de caminhar até o fim do mundo onde, imaginava, poria uma das mãos no céu.

E, cumprida a proeza, iniciaria sua caminhada contrária ao rodopiar do mundo.

E, sendo isento de leis, decretaria a abolição de todas as leis:

A partir daquele instante, e em todos os instantes a partir daquele, comprometia-se a:

falar caladamente, manifestar o silêncio, rindo lágrimas, chorando risos
sempre girando ao contrário do mundo
avançando para dentro da saída eternamente aberta
abandonando ao longo da estrada a máscara da inocência
que um dia cobriu ao meio o rosto vazio.

Nenhum comentário:

Postar um comentário