Partisan Review

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Essa revista formou o pensamento contemporâneo que é relevante. Todos os pilares da cultura moderna estão lá e cada nome vale leitura e familiarização. A lamentar apenas que eles não oferecem arquivos digitalizados dos textos para eu incluir em meu banco de dados filosófico-literário. Sintomaticamente, a revista morreu em 2003. Era o início da morte da leitura e o nascimento do império das sensações, à frente a tevê, o cinema e a consequência demoníaca de ambos, a rede. Era o nascimento do novo ser escalafobético da imersão plena na gratificação dos sentidos. Eles estão fudidos, pauvres. Todo santo dia agradeço ao Pai pela oportunidade que me concedeu de partida iminente. Misericórdia aos que ficam. Sou, acima de tudo, piedoso.

Três matutos



Três matutos estão recostados a uma cerca de bambu. Cada qual tem o olhar fixo à frente, sem mirar nada em especial. Conversam.
— Viver é um sono — diz o que está à esquerda. — E cada dia, um sonho. Você fica querendo acordar. Vira prum lado, vira pro outro. Às vezes sonha que está acordado. E quando sonha que está acordado, fica com aquele olhar de sonâmbulo, querendo dormir mas não consegue. Então fecha os olhos e finge que dorme. Por isso, eu digo: viver é nunca despertar dum sono. 
O matuto do meio escuta.
— Não — diz o que está à direita. — Viver é um rádio. Um rádio sempre fora de sintonia. Você fica girando o botão pra cá, pra lá, sem nunca conseguir acertar uma estação direito. Aquele chchchchchchch irritante não te sai dos ouvidos, e cada estação que você não acerta vai te deixando mais cabrero. De vez em quando, sem saber por que, entra um sonzinho limpo. Assim, sem mais nem menos. Teu coração acelera. Você quase que não acredita que finalmente conseguiu. Então relaxa, pronto pra escutar música. Mas que acontece? A música que está tocando é uma droga. Você pensa, bom, é melhor do que aquele mugido de tempestade, aquela lamúria de marciano o tempo todo nas orelhas. Tenta se confortar. Vai tentando se conformar. Mas depois dum minuto não sabe mais o que é pior: a chiadeira de doido ou a música pra macaco. Então perde a paciência, reclama, pombas! vou mudar de estação. E começa de novo. Mexe dum lado, remexe doutro. Tampa os ouvidos. Retesa o pescoço. Xinga a mãe. Sintoniza. Xinga o pai. Por isso, digo: viver é um rádio fora de sintonia.
O matuto do meio escuta e não diz nada.
— Não — discorda o matuto da esquerda. — Viver é uma canoa. Uma canoa que não existe. Você tá mergulhado lá no meio do rio, a correnteza te levando numa ligeireza danada. Você não sabe pra que lado nadar. Se pergunta: pra que tanta pressa, sô? Olha a margem do rio lá longe — longe demais pra atingir. Mira a jusante, depois a vazante. Reza pra avistar um barco que te salve. Aí uma corredeira mais forte te leva pro fundo. Você esperneia feito doido. Pensa: morro mas morro lutando, como se fosse oliude. Então sobe à tona sem saber como. De repente passa um calhau bem no teu nariz. Você apanha e consegue boiar por mais alguns instantes. Aí vem outro calhau, esse, acompanhado duma tira de cipó. Você dá um jeito de amarrar os dois pedaços de pau e vai boiando. Outros calhaus vão passando e você só incorporando. Até que, exausto, quase decidido a desistir da briga, de repente olha e se assombra: construiu uma canoa quase sem querer! Pula pra dentro da bicha e sai deslizando pelo rio, que agora está mansinho que nem ele só. Mas aí você tá velho demais, cansado demais de pelejar. Na primeira ondinha solta o corpo mole na água e schlope! já era. Não. Viver é uma canoa. Uma canoa que não existe.
O matuto do meio escuta e não diz nada.
— Não — replica o matuto da direita. — Viver é um estupro. No começo você não se dá conta. Mantém a cabeça erguida, como se não tivesse ninguém te enrabando. Fica firme. Nariz empinado. Altaneiro. Senhor de si. A dignidade em pessoa. Se voltasse a cabeça, veria que tinha alguém te comendo o rabo e poria um fim na brincadeira. Mas não. Não tá a fim de olhar pra trás. Só quer saber de seguir. A qualquer custo. E vai seguindo... até que, cedo ou tarde — e mais cedo que tarde —, sente um desconfortozinho...
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não — replica o da direita. — Viver é estar no alto duma montanha. A montanha é alta de deixar tonto. De tirar o fôlego. Invencível. Você está exausto — cada passo é uma tortura. Tuas pernas não querem mais andar. Mas você vai galgando. Resfolega. Geme. E galga. Olha pro alto. O pico da montanha parece totalmente fora do teu alcance. Você olha pra baixo. A ideia de desistir volta — tem de se controlar para não pisar em falso de propósito e despencar duma vez. Basta uma escorregadela... Afasta o pensamento. Pensa de novo. Dá um passo. Para. Limpa o suor da testa. Quer sentir a própria consciência mas não consegue — a cabeça está sob o ataque de lembranças sombrias, passagens lúgubres. Só uma escorregadela... Mas não! É preciso ser bravo. De que serve um homem covarde? Pixotes têm de morrer mesmo. Aí você percebe que apelar pro instinto de sobrevivência te dá ânimo. Se arrasta mais cem metros. E assim vai tua subida rumo ao que você pensa ser o cume, teu cume. Se tiver sorte, muita sorte — ao contrário da maioria sem sorte alguma —, um dia, um dia se vê no pico, no que pensa ser o pico. É o pináculo dos pináculos, de onde todo o resto e todos os demais podem ser olhados de cima. É o mirante de todos os mistérios, esconderijo de toda a beleza que você vem buscando desde que nasceu, ei-la finalmente ao teu alcance, ao teu redor, mas você está cansado, não tem mais olhos para vê-la, não tem mais palavras para descrevê-la. Por isso eu digo: viver é estar no alto duma montanha.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não — diz o da esquerda. — Viver é bater numa porta. Bater. E bater. Bater, bater, bater. Se não abrirem, você bate, bate e bate mais. Até quebrar os dedos. Se abrirem, você vai para a sala de espera. Senta, cruza os braços. É a antessala do Grande Salão dos Acontecimentos. Você olha pros lados. Espera. Olha pro teto. Espera. Levanta, caminha até a porta, põe as mãos nos bolsos, volta pra cadeira, torna a sentar, levanta. Espera. Espera. E espera. Por isso, eu digo: viver é bater numa porta.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não — diz o da direita. — É o que sempre digo: viver é um arrepio num busto de bronze numa praça perdida.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não. Viver é não querer nada. E agradecer pela dádiva de não querer nada.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Não. Viver é não pensar duas vezes. Pra não ter de pagar duas vezes.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Sim. E não pensar em todas as possibilidades. 
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— É desaparecer na multidão.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— É não procurar a fonte da alegria.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Viver é morrer.
O matuto do meio só escuta e não diz nada.
— Viver é viver.
O matuto do meio só escuta e não diz nada. Nisso, um helicóptero passa entre as nuvens. O matuto do meio tira do bolso da camisa uma fotografia. É uma fotografia amarrotada, envelhecida de manchas amarelas. O matuto a coloca diante do rosto, sente vontade de dizer uma ou duas palavras. Desiste. Guarda a fotografia no bolso. Enfia a outra mão num bolso das calças. Apanha uma cartela de pílulas. Extrai uma e põe na boca. E diz:
— O que é ou deixa de ser, não sei. Mas que precisa tomar tranquilizante pra viver, isso não tem dúvida.


Uma só mulher


Como é do conhecimento de todos, sou homem duma mulher só.
E como sabem todos vocês, minha mulher é minha companheira. (Ouso afirmar até mesmo no sentido leninista do termo.)
E o mundo também está a par de que, ao longo de nossa vida juntos, ensinei à minha companheira e mulher exclusiva uma quase infinidade de coisas. Entre elas, a desprezar as mentiras sedutoras do misticismo e as bobagens pueris da astrologia.
Lhe mostrei ainda como comprar peixe na feira sem trazer para casa um namorado à beira da putrefação. E como preparar um baiacu com pupunha e legumes verdes de dar água na boca até na estátua de dom Pedro no Museu do Ipiranga.
Além disso, lhe dei dicas – inclusive na prática – sobre como tolerar os intensos, os descomedidos ataques de cócegas que lhe aplico em suas fragrantes e glabras axilas sem fazer xixi na calcinha de renda vermelha e bege.
(Certa feita, depois de passar o dia todo fora só voltando para casa na minha hora de trabalho, ela tirou um embrulhinho da bolsa e mo estendeu. (Vou fechar aspas precocemente aqui para não me perder em algum período mais elucubrado abaixo.))
“É um presente.”
Abri fazendo cara inquiridora ante uma caixinha mimosa e esquisita fechada apenas por uma aba.
“Pra deixar meu amorzinho perfumado!”,  explicou.
Simulei um sorrisinho simpático enquanto abria a caixinha, procurando não rasgar a embalagem para aproveitá-la em ocasiões futuras que requeressem a troca de lembrancinhas.
“É um A Scent Florale EDP”, ela não conteve a ansiedade.
E emendou:
“Quando a vendedora me disse que o preço tinha baixado de quatrocentos e quarenta e seis para apenas cento e setenta e sete, ai, não resisti! E ainda me deixou pagar em seis prestações de trinta paus no cartão! É feminino, mas sei que você não liga pressas coisas”.
Assim dizendo, arrancou o frasquinho da minha mão e aspergiu um ligeiro borrifo em meu braço. Fechei os olhos, cheirei e fiz ”hmmmmmm, que delícia!”.
“Sem graça!”, ela riu.
(Ah como amo quando ela diz “sem graça!” Me sinto o mais endiabrado homem deste planeta.)
“Você não usa nem desodorante. Podia pelo menos tomar banho mais frequentemente”.
Fiz de conta que não escutei. Não gosto quando ela critica meus hábitos pessoais – ou a falta deles. Não sei se vocês concordam, mas brasileiros em geral raiam a obsessão pelo asseio e a higiene pessoal. Um banho por semana para mim é mais que suficiente. Não receio meus odores, não temo meus fedores nem acho que minhas secreções mais softs sejam caso de esfregação e creolina diária. Me sinto até mesmo reconfortado e mais senhor de mim sabendo que estou impregnado das bactérias odoríferas do meu próprio suor.
Voltando ao frasco de perfume que ganhei, naquela mesma tarde, por um desses golpes de sorte que soem ocorrer uma vez na vida etc., fora passear na rodoviária* no centro da cidade e tivera a ideia de roubar uma rosa duma das floreiras ao redor da praça onde os ônibus estacionam.
*Não sei se já contei, mas tenho uma queda por rodoviárias e ferroviárias, a ponto de ser bem capaz de me abandonar um dia inteirinho zanzando entre os viajantes indo e vindo e vindo e indo como se quem fora e viera fosse eu e não outro. Mas esta é uma outríssima história que não tenho tempo de elaborar agora e que deixarei para outro dia. (Tudo bem, sei que esse outro dia nunca virá, como tantos outros nunca vieram nem jamais virão, pois míngua cada vez mais minha paciência para escrever sobre minhas próprias manias (e, já que estou no assunto, sobre qualquer outra coisa)).

(Quando nos conhecemos, costumava invadir os jardins que encontrasse pelo caminho e roubava uma flor para ela. Se não houvesse jardim algum pelo caminho sempre dava um jeito de arrumar uma pequena surpresa para não chegar à sua casa de mãos abanando. Como sempre fui mais duro que etc., essa pequena surpresa em geral se resumia a um poemeto garatujado no verso da embalagem do meu maço de Capri em pé numa esquina. Na época fumava Capri (ou Hilton long size quando dispunha de algum sobrando). Mas com o tempo acabei deixando de lado o costume de me preocupar em lhe fazer agrados, provavelmente porque fui perdendo a capacidade de sonhar e recusar, minimamente que fosse, o ônus da sobrevivência, até um dia acordar este ser seco, tosco e desinteressantíssimo que sou hoje.)
“Também me lembrei de você”.
“Cadê?”
“Na geladeira”.
Ela abriu a porta do refrigerador e lá estava a rosa, num meio copo d’água bem no meio da prateleira do meio.
“Tem um pouco de lasanha no forno e uma caixa de suco de pêssego na geladeira. Ah, o maço de Camel tá na segunda gaveta do armário”, acrescentei.
Ela sorriu, alisou minha barba com os dedos e reclamou que eu prometera aparar a cuja para seu aniversário e aproximou a rosa do narizinho arrebitado e aspirou o perfume da flor com a doçura que a natureza cometera a suprema justiça de depositar num único ser e sorriu um daqueles seus sorrisos igualmente suaves, só para me mostrar como é que se aspiram os perfumes da vida.
“O presente de verdade é este aqui, seu bobinho”. Rindo, ela me estendeu outro embrulho.
“Poe!”, adivinhei, esticando as pontas dos bigodes, ansioso.
Não me canso de espiar (e expiar também) a desfortuna do Afortunato.
“Para com isso, que tá virando ferida!”
“Não abre a torneira que ainda não arrumei o sifão!”, alertei.
O sorriso se transubstanciou e por um segundo vi diante de mim uma serpente com as presas prestes a abocanhar o mais frágil camundonguinho do mundo. Ela aspirou novamente o perfume da rosa, agora com mais entusiasmo, e disse que estava morrendo de vontade de comer carne.
Eu também, pensei.
Mas não disse.
E não disse tantas outras coisas.
Nem naquela ocasião, nem naquele dia, nem nunca.
Não disse que por “homem duma mulher só” não quero dizer simplesmente que sou fiel à minha mulher. Ou que temos uma relação monogâmica. Não, não é só isso que quero dizer.
Por “homem duma mulher só” quero também dizer que tive apenas uma mulher ao longo de minha vida.
(Fora mamãe, que não conta nesta conta).
Por “tive apenas uma mulher ao longo de minha vida” quero dizer que nunca tive outra mulher em minha vida.
Que nunca me apaixonei por outra mulher.
Que nunca fiz sexo com outra mulher.
Se o Polo Norte ou o Polo Sul não fosse tão desumanamente gelado e inóspito, eu a carregaria para dentro duma caverna entre as geleiras e romperíamos com o mundo e nos devotaríamos um ao outro longe dos tenebrosos perigos a que estamos sujeitos nas cidades e nas comunidades sociais e exclamaria ”que se foda todo o resto!” com entonação de macho protetor e ela, minha única, minha exclusiva mulher, selaria nosso pacto cum beijinho úmido e estalado.
Enquanto eu sonhava com as distantes, cavernosas geleiras, ela já voltava do barracão no fundo do quintal trazendo uma chave de grifo e uma bisnaga que a princípio não pude reconhecer.
“Arruma logo esse sifão, que não dá pra ficar lavando louça no tanque”. E enfiou a ferramenta e a bisnaga entre minhas mãozinhas delicadas de inteleca sedentário.
“Que coisa é essa?”, perguntei, lendo o nome do produto.
“Vedador de rosca, ora. Não foi você quem pediu?”
“Anaeróbico? Pra que serve?”
“Bom, quando vi o anaeróbico, pensei, deve ser melhor que o aeróbico. Senão, não fabricariam um anaeróbico.”
Me sapecou um selinho e foi cuidar da vida, me deixando de grifo na mão tentando ler as infinitesimalmente minúsculas letrinhas da vasta descrição na embalagem da bisnaga.
Bem, certamente não vai explodir quando eu aplicar no sifão, pensei animado,  me ajoelhando diante da pia da cozinha.
Vendo que finalmente me agachava para fazer o serviço, ela ligou o rádio (que nunca tiramos da Cultura FM). Em geral tenho a sorte de não deparar cuma extravagância qualquer de Paganini, o mais chato dos compositores já nascidos neste planeta de chitõezinhos. E minha estrela me acudiu mais uma vez: começava a tenebrosa, a fantasmagórica, a apocalíptica introdução de Lohengrin, com Jonas Kaufmann.

In fernem Land, unnahbar euren Schritten,
liegt eine Burg, die Montsalvat genannt;
ein lichter Tempel stehet dort inmitten,
so kostbar, als auf Erden nichts bekannt

Em meu computador tenho duas versões do Lohengrin: essa com Kaufmann, outra com Franz Völker. Raramente escuto apenas uma – gosto de ficar comparando – no que, tem dia, sou capaz de gastar várias horas. Pois nunca consigo me decidir qual é a melhor. São interpretações bem diferentes. Um barítono, outro, tenor. Um, doçura do começo ao fim. Outro, alternâncias repentinas, tons surpreendentes em cada frase. Depois que conheci Kaufmann nunca mais escutei Plácido. E ninguém pronuncia o alemão como um alemão, como diria Heidegger, secundado por Kant, Hegel e Blonda, a cadela pastor-alemão do Adolf.
Como temia, manejar a chave de grifo acumulando estes 120 quilos que a preguiça me deu sobre meus pobres joelhos que nasceram para apoiar não mais que sessenta e tentando enfiar a cabeça por sob a pia logo me deixou absolutamente exausto. Detesto ter de mexer os músculos. E minha barriga há décadas deixou de ser encolhível, um centímetro nem por um minuto. E se não posso retraí-la, não sou capaz de avançar o tórax outro centímetro que seja.
O suor começou a me escorrer pela testa, as têmporas, atrás das orelhas, se infiltrando na barba, escorrendo pelo queixo até gotejar nos espessos pelos que tenho no peito e que também já estavam encharcados.
Foi nesse instante que me lembrei de que estava morrendo de fome antes desta desastrada aventura de encanador.
Quando decido que estou  morrendo de fome não há o que me dissuada (epa) da vontade de enganar a pança. Então lembrei que tinha visto, ao lado do meio copo d’água bem no meio da prateleira do meio da geladeira quando ela abrira a porta do refrigerador (opa), uma cartela de isopor ainda fechada contendo umas rodelas de mortadela.
Pessoal, se existe algo neste mundo repleto de carcamanos sem rumo que faz com que o que me restou de lógica nos meus pensamentos deturpados se dissipe num instante é a visão de rodelas de mortadela.
E se tem algo neste planeta de seres nascidos para a sedução pelo estômago enquanto almejam à confraternização com os anjos que me sequestra do meu estado de homem minimamente racional para me jogar numa cela obscenamente repleta de guloseimas, quitutes e elixires divinos é a ideia de traçar um belo sanduba de mortadela em pão italiano (epa) na companhia duma geladérrima garrafa (detesto as famigeradas latinhas) de brama.
Incontinenti, larguei a chave de grifo e a bisnaga de cimento plástico num canto debaixo da pia, me pus em pé sob uma traviata de gemidos e palavrões, lavei as mãos e tomei as providências cabíveis.
E, equipado com os apetrechos do meu piquenique noturno, rumei para o alpendre e assentei base.
Sanduba numa mão, copo de cerva n’outra, me entreguei aos meus devaneios.
(Okay, pessoal, vou poupá-los dos ditos. Vocês, ou pelo menos a maioria, já me conhecem e sabem que esse papo ameno que estou levando aqui pode degringolar de repente. Sim, sem mais, nem menos. Vocês também sabem, é uma das minhas fraquezas, essa coisa de degringolar, de vira-e-mexe. Se não me controlar, logo parto pra virar a mesa. Dizem que sou louco por pensar assim. Mas não se preocupem. Enquanto tiver meu sanduíche nesta mão e meu copo de cerva nesta outra, estamos todos a salvo.)
Mas – e acho que, depois de tudo, tenho pleno direito a levantar a questão – que outro momento me seria mais apropriado a devanear senão naquele em que estou mais apto e desimpedido para me entregar aos meus devaneios?
E, mesmo nunca ter tido sexo com outra mulher, me sinto capaz de afirmar que até hoje houve apenas uma fêmea com a qual fiz sexo verdadeiramente ensopado de erotismo, paixão, volúpia, sofreguidão, fantasia, egoísmo, animalidade, ternura, cumplicidade.
(Um dia (ou melhor, uma noite) me vi sem saída ante uma virago que não pestanejou (não! não pestanejou, o monstro!) ao dar cum homem tão suscetível em sua simplicidade mental e sua unicidade espiritual e tão frágil em sua inépcia de se autodefender e fui obrigado a brochar para impedir que o estupro se consumasse.
Pois é. (Ixe!)
As feministas de araque não imaginam – ou não são suficientemente humildes para admitir – que muitas dentre o rebanho feminino seriam plenamente capazes de executar aquelas tenebrosas ondas de estupro e impulso eugênico que até hoje os historiadores afirmam ser prerrogativa masculina. É mentira que uma mulher seja incapaz de perpetrar uma violação sexual, como atestou Germaine Greer em A mulher-eunuco. A mulher não estupra simplesmente porque não pode deixar em sua vítima a semente duma nova vida mas sua vítima pode deixar uma semente na estupradora. Como costumava dizer Humphrey Bogart, a humanidade está sempre uns pensamentos atrás da natureza.


A rebelião das pizzas


Pessoas, fiz esta apresentação para os desejem me conhecer minimamente e quem sabe aprofundar um pouco o nível de interação entre nós sem se assustar em demasia.

Antes, uma brevíssima introdução

Muitos de vocês certamente pensam que as alusões que alguns de nós temos feito às elites sejam apenas piadinhas sem maiores consequências. Por Deus, não são, não. Nós aqui levamos — e devemos levar  muito a sério o papel de escol que desempenhamos na comunidade social, a comunidade verdadeira, em que vivemos.
Desde o começo fui contra a campanha de bastardização literária que ora está em curso. Devemos ir de encontro a esse movimento de indigenciação com todas nossas unhas esmaltadas com enamel Chardin Brodeurs e nossos dentes clareados com gel de peróxido de carbamida.
A partir da presente data os novos patronos deste meu querido Website serão Gasset y Ortega. Finalmente teremos uma identidade à altura de nossa linhagem. Tudo bem, ainda pairam algumas dúvidas quanto à origem nobre de Ortega e o paradeiro obscuro de Gasset. Sabe-se, por exemplo, que Ortega nasceu no número 620 da rua Manoel Coelho, pertinho aqui de casa, e que a família do rapaz atuava no ramo de restaurantes. Ora, não é porque o gajo recendia a alho e cebola do Ceasa que deixaremos de honrá-lo como ele merece. Quanto a Gasset, dizem as más e infectas línguas que ele parece mais um personagem saído de Educação sentimental, de Flaubert, mas essa versão ainda é extremamente controversa. O fim do rapaz, entretanto, é bem conhecido. Ao desembarcar em Cumbica oriundo de Paris, ele entrou num daqueles radiotáxis que fazem o trajeto aeroporto-Vila Prudente e nunca mais foi visto. Provavelmente seu cadáver esteja hoje enroscado em alguma pedra no leito do rio Tietê, pauvre.
Agora, retomando o nosso assunto, cumpre fazer alguns esclarecimentos.
Comecemos pela descrição deste superfaciente sítio literário. Já passou da hora de avisar a todos que não, tal descrição não é uma gracinha tola destinada a entreter internautas ociosos. Estou ciente de que alguns leitores têm alardeado por aí que essa descrição é apenas um simulacro para despistar distraídos, que dão aos montes por aí afora. Acontece que essa explicação, por si, também é um despiste. O resultado dessa dupla dissimulação é que ela se autoanula, tal como dois fatores com o mesmo sinal, daí ficando a falsa impressão de que estamos aqui apenas para fazer piadas.
Sempre tive vontade de desempenhar um papel na elite da minha rua, do meu bairro, da minha cidade, do meu país. E para poder fazer jus a nosso papel de elite, é meu dever cuidar para que o intercâmbio de ideias e de opiniões se dê sempre de modo a evidenciar que sou inteligente e sei pensar. Mais: considero ser meu dever, como indivíduo de intelecto e posição social privilegiado, primar pelo bom uso da semântica, da retórica, do léxico e do vernáculo. Se e quando instado a demonstrar nossa verve para um fim especificamente nobre, poderei até mesmo empregar a grandiloquência sem dó nem piedade. Vocês sabem, nenhuma arma é cruel demais quando o propósito é dizimar a plebe iliterata.

Qual é, afinal?

Certo, pessoal, reconheço que alguns de vocês talvez estejam boiando mais que peixe morto no mar de São Sebastião depois de vazamento de óleo de cargueiro da Petrobras. Bem, só posso dizer por ora que pertencer à aristocracia intelectual requer algum sacrifício. Não é à toa que estamos aqui. Cada um de nós tem a obrigação de envidar esforços para evoluir individualmente, de modo a ajudar a promover o bem coletivo. Se fôssemos egoístas e preguiçosos seríamos simplesmente iletrados, não é mesmo? Ou então nos contentaríamos em trocar vitupérios como sói ocorrer nos mais pobres websites da rede.
Como é notório, constituímos uma dissidência nobiliárquica do Grande Fórum da Vida. Acredito que todos já puderam atestar pessoalmente a limitação dos debates naquele antro. Eu mesmo participei deles por alguns anos e não pretendo voltar. Admito que algumas vezes cedi ao clamor dos instintos e cheguei a recomendar veementemente a um ou outro ser banal que internalizasse as próprias palavras por via retal. Posteriormente me arrependi. O pecado, vocês sabem, não está em errar, mas em não reconhecer o erro.

Estou no ponto

À altura em que nos encontramos, penso estar apto a trocar o ícone populista que ilustra este sítio por algo que realmente traduza minha estirpe. Bem, minha sugestão nesse sentido é aposentar incontinenti o rosto amanhecido do fulaninho que aí está e usar nada mais nada menos o semblante tenso e profundo dos grandes, dos insuperáveis pensadores franco-espanhóis Ortega y Gasset.
Há entre vocês uns que ainda acham que Arnaldo Sin Jabor é representante de Ortega e Diogo Mainardi, de Gasset no Brasil. Não poderia haver engano mais ledo. Se você pensa que Jabor seria capaz de dizer uma pérola divina como “Não sabemos o que está acontecendo conosco, e é exatamente isto que está acontecendo conosco, não saber o que está acontecendo conosco (...)”, se você de fato pensa isso, bem, só posso concluir que você está no website errado.
Há mais de 70 anos Ortega escreveu Rebelião, sendo logo acompanhado por Gasset, com seu das Massas. A partir daí ambos passaram a ser conhecidos como os pensadores mais elitistas que já pisaram em terras paulistas.
Ortega y Gasset defendem que o homem-massa de hoje habituou-se a exigir para si apenas privilégios, sem a contrapartida da responsabilidade. Absolutamente alienado dos obscuros mecanismos subjacentes à vida moderna, o homem-massa se acha detentor de todos os direitos e isento de todos os deveres. Como vocês já podem deduzir, é exatamente essa dicotomia que está por trás de ideologias espúrias como o paulocoelhismo.
O paulocoelho da vida, mesmo sendo um serzinho desprezível, inculto, despreparado e, sobretudo, preguiçoso, se pensa capaz de ombrear-se aos “homens de excelência” de que falam Orsset y Gatega. (Sim, a ordem dos nomes de ambos é indiferente, embora Ortega postulasse que não. Mas essa discussão não vem ao caso no presente ensaio.)
Esses homens de excelência, naturalmente, somos todos nós que temos coragem suficiente para dar um passo avante e tomar em nossas mãos a responsabilidade pelos rumos das nossas vidinhas. Cabe a nós a tarefa da criação do paradigma pelo qual o homem médio terá que se pautar. Cabe a nós o dever de fazer eu, ele, você avançar na direção que elegemos a melhor para nós mesmos e para os nossos. E cabe a nós assumir a responsabilidade pelos nossos próprios erros e acertos. Embora Ortega y Gasset não tenham particularizado a definição de passivismo e imaturidade do “homem-massa” no sentido de que são uma resposta ao poder infantilizante de um paradigma hierárquico de dominação, ambos distinguiram o estado inerente do homem (e também da mulher). Como vocês já perceberam, estou me referindo à excelência. É por essa razão que podemos nos chamar vanguarda, ou grupo seleto, pois que assumimos a missão de quebrar o encanto da passividade, da sina de seres dominados e escravizados.
A partir daí fica evidente a forma solerte como determinados leitores a quem não vou me dignar a nomear planejavam nos submeter a todos a um regime de força, ou seja, na tentativa fracassada de nos atingir em nossa prerrogativa de homens de excelência para nos subtrair de nossa liberdade mesma. Quando somos livres, somos livres não apenas para exercermos o livre arbítrio, mas também para exercermos a excelência. O conflito comunismo-capitalismo certamente é o exemplo mais completo do que Ortega y Gasset pretenderam expressar. Enquanto num o homem abdica de sua prerrogativa de escolha individual para sujeitar-se ao arbítrio e discrição de um terceiro, o que, evidentemente, está fadado ao fracasso per se, noutro ele está livre para explorar a vasta gama de estados naturais do ser humano, podendo, se quiser, passar fome ou criar os mais sofisticados e maravilhosos sistemas de promoção do bem-estar e do conforto jamais sonhados pela mente humana.
A maioria de nós brasileiros abdicamos do nosso poder e da nossa responsabilidade em favor de, no dizer preciso e insuperável de Gasset y Ortega, outro alguém. Não confiamos em nosso governo (se é que me faço entender), mas, ao invés de tomarmos a solução para isso em nossas mãos, escalamos outras pessoas (se é que me manjam) para fazê-lo. Não podemos ser “homens-massa” sempre a exigir cada vez mais programas governamentais, mais qualidade de vida e pizzas com maior variedade de sabores, ao mesmo tempo em que sequer prestamos serviços voluntários em nossa própria Comunidade, como se não fizéssemos parte do meio em que vivemos. Uma simples postagem num tópico eletrônico a cada 2 ou 4 anos não é o bastante! Temos de nos conscientizar que é nossa obrigação trabalhar dez, vinte vezes mais. Para cada dez distraídos iletrados, temos de contrabalançar com dez vezes mais suor. Na vida não acontecem milagres.
Ortega y Gasset tinham desprezo pelo homem médio obcecado por preservar seus privilégios de classe e ao mesmo tempo fugir do domínio das elites e do nivelamento por baixo das massas.
Assim, peço que a partir de hoje todos os leitores leiam A Rebelião e das Massas, os dois mais importantes livros dos nossos amiguinhos. Dessa forma evitaremos vexames como querer dizer algo mas não ter a mínima ideia de como fazê-lo. Um tema perpassa os vários artigos do livro: é o nascimento da sociedade de massa, que hoje, aparentemente, está assumindo um caráter de verdadeiro império. Quando assistimos aos desmandos e o discricionarismo daqueles determinados leitores, vemos que não há nada mais pertinente e oportuno.
Mas Ortega y Gasset não se limitaram a desprezar o homem médio. Na talentosa prosa que vibra sob os conceitos da Rebelião, eles elaboraram uma crítica demolidora ao postismo diletante.
Por último, é mister salientar que, infelizmente para alguns poucos, não será mais considerado de “bon ton” citar Paulo Francis, seja qual for a razão. Se fossem vivos, Gasset y Ortega fariam picadinho do jornalista campeão em citações de autores obscuros por centímetro quadrado. Quem conhece Francis a fundo sabe que ele não manjava lhufas de Ortega y Gasset, obsessivo que era por Edmund Wilson, Arthur Koestler, Freud, Eliot e Joyce. Mas até aí, Olavo Carvalho não conhece nem Ortega, nem Gasset nem nenhum outro autor que valha a pena ser citado, então estamos quites.
Finalmente, solicito aos meus queridos leitores que me enviem seus nomes à medida que concluírem a leitura da Rebelião. Quando todos tiverem feito isso, iniciaremos uma nova fase em nossa existência: todos escreveremos em latim.

Demonizando os eleitos divinos

Deitado, Deus olha o botão na parede. O botão se acha inapelavelmente longe de seus outrora superpoderes. O Big Guy nunca se sentiu tão impotente. Quer esticar o braço. Dói só de pensar. Está paquidérmico. Nos últimos tempos tem engordado a média de três toneladas e quatrocentos quilos por dia, sem contar os fins de semana. A culpa, a máxima culpa é d'Ele, só d'Ele, mais ninguém. Contrariando as ordens de Hipócrates, vem detonando uns dois mil biguemaques às escondidas por dia. Fora as centenas de batatinhas kingsize. “Ai!”, lamuria baixinho, “preciso tomar jeito! Se o Serafim sabe... Será melhor cortar o guaraná? Puta merda, nem Eu posso ter mais prazer nesta vidinha sem graça...!”
Aponta o dedo na direção do botão. Reza. Fixa o olhar na unha. Faz careta de agonia. Contorce a carona bolachuda. Parece estar dando tudo que pode. O dedo vai esticando uns 20 centímetros, penosamente. Estanca. Deus espreme os lábios, que ainda guardam um quê da antiga sensualidade divina. Aperta as pálpebras num esforço de concentração. O dedo avança errático mais uns 10 centímetros, dobra para baixo, exausto, como se brochasse —. Deus desiste. Reunindo todas as forças que ainda Lhe restam, solta um urro:
— Serafiiiiiiiiim!
Mal chama, se segura no gradil da cabeceira da cama, aguardando o tremor. O quarto permanece inabalado. Ele espia de lado as paredes para ver se estão vibrando. Nada. “Putz!”, choraminga de novo, “não posso nem sacolejar esta joça com meus berros! Que é que está acontecendo coMigo, meu Deus, digo, Eu? O pior é que o tranqueira do Serafim tá ficando velho e surdo. Antes, vinha correndo mal sentia o Céu tremer. Agora...”
— Serafiiiiiiiiim! Serafiiiiiiiiim! Serafiiiiiiiiim! — se põe a esgoelar histérico. O rosto fica rubro do esforço. Ofegante, Ele sucumbe. Deixa os braços caírem lassos para os lados. Virando penosamente os olhos, fita angustiado o aparelho de tevê pendurado na parede à Sua frente. Aperta as pálpebras uma vez. Nada. Aperta outra. Nada. Dá uma saraivada de piscadas na direção do aparelho. Nada. Apalpa os lençóis com ambas as mãos, torcendo para que o controle remoto ainda esteja por ali. A contragosto, gira o pescoço para o lado do criado-mudo. Ah! lá está o desgraçado! Fora do Seu alcance. “Por que o Serafim faz isso Comigo?” choraminga de novo. “Te-lo-ei tratado tão mal durante todos esses milênios, para que ele seja tão cruel em sua vingança?”
— Serafiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!
A gigantesca porta da Suíte Divina se abre num baque espetacular, socando estrondosamente a parede. Um anjo velho e de ar doentio entra. Arrasta uma das asas no chão atrás de si. Tem a expressão extremamente desanimada. Um humano, se o visse, se espantaria que criatura tão mórbida e carcomida pela passagem dos tempos tivesse forças para caminhar.
Apesar da impressão geral de fraqueza, ele traz no rosto enrugado um esgar feroz, quase raivoso, que de angelical não tem nada.
O recém-chegado se detém ao lado da cama de Deus e sibila com voz áspera e dura, tão dura quanto o olhar frio:
— Que é que foi dessa vez...? — E completa, agora com desdém: — ...meu Senhor? Quer mais papa de aveia?
— Ah! Serafim, graças a Deus, digo, Mim! Já não era sem tempo. Não, obrigado. Essa papa que você tem me servido... sei não, tem um gosto... como diria... Bem, um gosto meio estranho.
— Ora, meu Senhor! — Serafim abre um sorrisinho sórdido e escarnecedor. — É a mesma que venho Lhe servindo desde o século décimo oitavo a.C. Só mudamos um pouco os ingredientes. Tiramos a gordura trans, reduzimos o colesterol ruim, aumentamos as fibras... Sabe como é, essas porc... digo, essas coisas que todos comem hoje em dia.
Deus fica absorto por uns segundos, aparentemente procurando uma resposta a contrapor ao anjo velho e carcomido, mas desiste. Apenas pergunta:
— Diga: o mundo acabou?
O anjo velho e carcomido emite uma bufada ruidosa e exasperada.
— Você me chama lá dos Quintos dos Infernos até aqui só para me fazer essa pergunta besta? — Serafim se volta bruscamente para a janela, que está aberta, e sacode raivoso o dedo indicador. — Veja Você mesmo, sua Anta Balofa! Por acaso parece que o mundo acabou? Aquelas nuvens lá fora serão o quê? Miragem? Deixe de sentir pena de Si mesmo e ponha esse cérebro entupido de banha para funcionar, pelo amor de... Bem, Você sabe de quem!
Deus fecha os olhos, amargurado. Abana longamente a cabeçorra, mexendo os lábios como se rezasse. Abre os olhos e fita Serafim, um olhar meigo e ao mesmo tempo suplicante.
— Hoje não é trinta e um de outubro de dois mil e seis?
— É claro que é! — Serafim aponta novamente o dedão duro, agora indicando uma folhinha na parede. — Olha lá! Trinta e um de outubro de dois mil e seis. Terceiro milênio depois do Teu Filho. Até isso serei obrigado a mastigar para Você agora?
— Pois é isso mesmo que estou falando, meu bom Serafim — A voz de Deus tem um tom extremamente gentil, meigo, quase bajulador. — Pelas minhas contas, o mundo deveria ter acabado antes de ontem. Vinte e nove de outubro de dois mil e seis. Era esta a data programada, não era?
O anjo velho e carcomido faz menção de abrir as asas, mas fica só na ameaça. Obviamente não teria forças para fazê-lo. Se limita a olhar o teto com impaciência, chuchando as bochechas por dentro com as gengivas desdentadas. Por fim, vocifera:
— Sim, era! Era a data programada. Só que houve... bem, uma ligeira mudança nos planos, Você sabe.
— Que mudança? — Deus franze as sobrancelhas, aflito. — Por que não Me avisaram? Quem mudou?
— Bem, eu e o meu angelical companheiro Lúcifer decidimos tocar o negócio da data mencionada em diante.
Deus parece sentir uma fisgada dentro do peito. Bem que desconfiava que vinha sendo traído. Só não contava com tamanha desfaçatez.
— Me diga pelo menos uma coisa, meu bom Serafim. E o Delúbio? Prenderam aquele diabo, finalmente? Pelo menos isso os homens foram capazes de fazer?
— Prender o Delúbio? — Sem se conter nem se esforçar para dissimular o deboche, Serafim assume uma expressão indizivelmente sombria e solta uma gargalhada. — Hahahahahahá!!! Essa é boa! E quem Você acha que é nosso contato na Terra? Hahahahahahá!!!
— Nosso? — Deus percebe algo ominoso naquele plural. Ademais, depois de conviver com ambos por toda a eternidade, sabe que Serafim e Lúcifer não teriam capacidade para engendrar um motim sem ajuda externa. — Quer dizer que vocês não estão sozinhos nessa tramoia contra Mim?
— Claro que não, Sua baleia já pra lá de extinta! Vimos contando com uma pequena ajudazinha, hahahahá! dum pessoal lá do Brasil. Desde mil, novecentos e setenta e nove, para ser mais exato. Hahahahá!
— Vocês acham que o Berção ainda aguenta?
— Achamos. Dá para explorar mais uns trinta ou quarenta anos. Se usado com moderação, claro. Hahahahá! 


Esquerdistas, direitistas, quejandos e que tais


Umpf!


A alegação de que tudo é Ser (partindo-se da abstração 
máxima de que Ser é o que é) não inquina a distinção 
entre 'ser' e 'dever ser' que é de ordem lógica, perceptível 
na estrutura elementar do juízo, que é o ato de atributividade 
necessária de uma qualidade a um ente, consoante o enunciado 
básico S é P, ou S=P. 
Miguel Reale

A mais tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze, 
dezessete, dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há 
santos, há gênios de todas as idades.
A verdadeira apoteose é a vaia. Os admiradores corrompem.
Nelson Rodrigues


Há na orkut, santuário de narcisistas indolentes, uma comunidade chamada Literatura. Não vejo ninguém sério participando. Como também não sou sério, tentei. E logo dei no pé ao me ver entre moleques e adultos subletrados que obviamente não têm algo mais útil a fazer na vida. No início ria às bandeiras desbragadas com as postagens de quem não leu nada e sabe tudo. Muitos são poetaços ─ poetas de verdade estão perdidos por aí fazendo o que vieram ao mundo fazer, sem ânimo para provar aos outros que não sabem do que estão falando. Os literatos orkuteros postam, despudorados, versinhos hilários e bisonhos. E em seu chamado perfil ostentam orgulhosos um poema dum poetão. O campioníssimo dos patronos versejadores é o Mário, gaúcho bom-mocista cujas quadrinhas sempre injetam uma injeção de otimismo em leitores propensos às amarguras da vida e que as donas de casa viciadas em telenovela guardam carinhosamente no coração.
A cafonice medra na orkut. Amigos classificam amigos e a sensualidade de amigos por meio de estrelinhas e ao mesmo tempo promovem um mercadinho de personalidades onde tentam se vender em autopromoção, fazendo poses nobres sob citações de filósofos e estrofes dos campeoníssimos Pessoa, Meirelles, Ana Cristina César, Clarice. (Na facebook é a mesma bobajada. O lance por trás de tudo é “pelamor, gostem de mim um pouquinho que seja!”
Entro na orkut e, clicando à matroca, vou parar de novo na tal comunidade Literatura. Leio sem vontade o primeiro tópico e fisgo “Mainardi”. Estarão debatendo aquele rapaz que a cada fim de semana desfere umas cacetadas em Lula e no peetismo, escolhendo a dedo temas que buscam causar frisson em seus leitores cuja grande diversão é marcar um rolê na praça de alimentação do Shopping Iguatemi? Hoje em dia, e na orkut, tudo parece possível. Chacal diz que Poligono das secas é “pervertidamente divertido”. Então fiquei de ler. Ainda não tive tempo, milhares de livros aguardam disciplinados em suspenso e em suspense minha atenção qual donzela cortejada sem que eu, cavaleiro entediado de existencialismo apodrecido, consiga decidir qual satisfazer primeiro.
Curioso que sou, vou lá assuntar o que os literatos cibernéticos têm a dizer sobre o semanal inconformista.
A polêmica gira em torno dum artigo em que Mainardi parece descer a lenha em Drummond. Fico surpreso, não por Mainardi ser capaz de atacar o vate de Itabira, pois é um valente e portanto capaz de tudo, e sim por nunca ter ouvido falar de tal artigo ou de tal paulada.
Por alguma estranha razão, me ponho a imaginar o que o Silvio Santos teria a dizer do Drummond. E Xapolin Colorado? Quanta gente por aí não terá desenvolvido conceitos fantásticos sobre o itabirense sem que ninguém desconfie?
Busco no google. Ah, eis aqui. Crônica de 2002. Acho que ninguém mais se lembra. Foram tantas as emoções nestes anos.
Outra surpresa: parece que Veja ainda tem leitores. Já se passaram uns 6 ou 7 anos desde a última vez que li aquele manual da Disneilândia. A gota d'água das gotas d'água foi uma nota numa daquelas páginas de celebridades com comentários frívolos contra o cantor Renato Russo, sugerindo que o rapaz estava morto e não sabia, e na semana seguinte, para azar da revista, RR morreu de verdade e tiveram de tocar às pressas aquele baita panegírico de capa elevando o cara aos píncaros da glória, para deleite dos leitores e para horror dos que ainda gostam de prezar um mínimo de coerência. Você pode dizer que, sendo eu um irracionalista desavergonhado, não tenho direito de exigir coerência de quem quer que seja. Só posso responder que pelo menos não me promovo como bastião das causas nobres. E me afortuna um handicap que me isenta dum veredito mais severo: ninguém me lê. E não ser lido me poupa dos bate-bocas entre jornalistões da grande imprensa a se desdobrar em malabarismos na tentativa de manter as contas do patrão no azul enquanto simulam algo que distraídos tomam por dignidade.
Zap.
Na comunidade Literatura o título do referido tópico é: “Só eu que acho o Drummond um porre?” 
Como vivo estranhando tudo e mais um tanto, estranho. Será um título do próprio Mainardi? 
Pois já começa mal. Na minha terra, eu achava que “ser um porre” devia incluir os significados que a nossa cabeça naturalmente associa a encher a lata, tomar um pileque e adjacências, escapar do fardo da realidade, sonhar acordado, mesmo que só etilicamente. E não entendo muito de meios de comunicação nem de poetas, mas em se tratando de porre sou mestre. É um dos mais eficazes antídotos que conheço contra o racionalismo mentiroso. 
Zap.
Já virou clichê dizer que Mainardi remeda Paulo Francis, mas de Francis ele não assimilou a erudição, a cultura ou a verve, digamos, cruzadista e muitas vezes autocontida para não chocar fregueses mais autossatisfeitos. Mas pôde copiar o faro para a encrenca e aprender algumas técnicas de automarketing. A diferença é que Francis não soava fingido qual Mainardi, cujos textos podem ser tudo, menos convincentes. E Francis tinha um timing inigualável na autopromoção, sempre tirando proveito circularmente da vocação de cabotino (ou saltimbanco, como gostava de se descrever), sem pudor de soar histriônico e sem medo de abusar da própria fanfarronice para tirar bons efeitos estilístico-sarcásticos. Mesmo escrevendo em jornal, não dava muita pelota para o papel de jornalista responsável que esperavam dele. (Luxo a que, obviamente, só quem tem muito poder pode se dar. Ele só veio mesmo a não dar pelota alguma quando já tinha audiência cativa, também na tevê, e se tornara habitué de resorts de seus amigos banqueiros e empresários, embora, para quem olha daqui de longe, tenha pisado com excessiva ênfase nos calos dos nanabos da Petrobrás e quebrado a cara no affair.) Chutava na direção em que apontasse o nariz, não se importando se fizesse gol contra, misturando deliberadamente verdades com minhocas subidas à cabeça direto do fígado, lixando-se para o factual. Eu ria à farta. Quando criava encrenca com algum medalhão do “cenário cultural”, então, ficava deliciosamente furibundo, furibundo como já não é possível ser, porque termos como furibundo jamais farão parte do vocabulário de 2 dúzias de grunhidos dos frequentadores de portais de relacionamento, tendo perdido a razão de ser depois do politicamente correto e do predomínio absoluto das novelas como substrato da nossa civilização. Arrumou bons arranca-rabos com fariseus jornalistas, professores-doutores et al. (Mas não tantos quanto eu gostaria.) Certa vez o primeiro ombusdman do Folhão, de cujo nome não lembro nem quero lembrar, houve por bem chamar Francis às falas por imprecisões em seus artigos. O homem subiu ao seu olimpo e de lá disparou uma saraivada de apodos letais que terminaram por esfarelar o atrevido. Nunca vi ninguém ser tão massacrado na imprensa, massacre que prosseguiria ad infinitum se a editoria não tivesse dado um basta. Curiosamente, Francis era melhor nos artigos que na ficção. Seus romances não pegaram, não como ele esperava. Provavelmente porque, embora brilhante, nunca chegou ao Francis S. Fitzgerald que almejava a ser. Ao contrário de Fitzgerald, seus livros não conseguiram ir além de um encantamento algo servil e ─ horror ─ jeca (termo preferido dele mesmo e de aspirantes a francis para espicaçar desafetos) ante os endinheirados do smart set carioca. Seu melhor, para seu próprio desgosto, é o genial autobiográfico Afeto que se encerra. Ficou (muito) decepcionado consigo e com todo mundo. Queria que o ombreássemos aos grandes da literatura. (Quem, escritor, não quer?) Dizia que as escolas deviam adotar Machado, Rosa e Francis. Pfui.
Com a aproximação da velhice, enlevado no papel de pensador iluminado da direita, Francis foi passando de peculiar a extremista, exagerando na rabugice e na prepotência até viajar no caviar como quando reclamava do excesso de nordestinos e gente feia nas ruas de Sampa, sempre no estilo blasé que seus discípulos adoravam. (Antes que termos como blasé caíssem na boca do populacho.) Entusiasmado com a aclamação popular, não raro sofria ataques totalitários. Seu exclusivismo social fez escola entre órfãos ideológicos em busca de rumos. O totalitarismo tem solo fértil em gente sem caráter que confunde a incapacidade de aceitar a feiúra e a sujeira como parte da existência com bom-gosto e, palavrinha besta, requinte.
Dia desses ganhei um dos volumes da antologia d'O Pasquim e me surpreendi como o Francis recém-chegado a Nova York era diferente daquele que anos depois se entregaria vencido ao narcisismo. (Em Minha razão de viver Samuel Wainer o qualifica de guru da classe média, em aparente acerto de contas que é insondável aos de fora do círculo. Parece que tachar alguém de guru é prática meio antiga.) O Francis d'O Pasquim já era exibido, ainda não à morbidez, com uma força estilística assoberbante que no fim, rico e paparicado, trocaria pelo autoarremedo. Talvez pudesse ter sido o grande escritor que não foi se não alugasse o teclado a seus camaradas banqueiros até finalmente virar foodie e enumerar o cardápio do Four Seasons toda quinta e todo sábado na Folha e depois no Estadão.
Ainda revisando o Pasquim, também me lembrei de como achava sacal Ivan Lessa e todos aqueles pseudônimos sem sentido e gracejos bobos. Hoje, ilegível, daqueles que escrevem bem mas não têm assunto. O pai e a mãe dele eram melhores.
(Um dia imaginei uma crônica em que Lula lê uma página (umazinha só) qualquer de um livro qualquer de Philip Roth. Na minha imaginação eu estava inspiradíssimo, rindo das minhas piadas, digitando sem hesitar, o texto se avolumando dentro da minha cabeça, as ideias se encaixando. Como quase sempre acontece, logo deixei pra lá, esqueci tudo que tinha digitado mentalmente e me desinteressei do assunto. Hoje tentei refazer o exercício, não saiu uma linha, achei o assunto totalmente sem graça, não tenho mais saco de escrever sobre o Lula. Ou de ler.)
Andei relendo um dos livros de Francis, Cabeça de papel. São três Cabeças, sem grandes diferenças entre eles, sobrecarregados de barroquismos e penduricalhos à la Tom Wolfe sem tutano, excesso de truques e escassez de recursos, um ritmo acelerado remetendo a uma erudição sufocante para que o leitor fique meio zonzo, perturbado na marra, sem chance de se dar conta de que o autor não fala nem dele, leitor, nem dos outros ao seu redor, trama e personagens transfigurados sob uma estranha ilusão de que não há vida possível fora das redações e longe dos apês-palacetes da Vieira Souto. (Há, sim. Só que é mais difícil prospectar. Você tem de ter uma índole meio de toupeira, com toda a dor que isso implica, cavar além das fachadas dos prédios e das caras, correr o risco de ficar sem ar lá no fundo.) Se você tem o azar de não ser rico/poderoso, mate-se. Francis conseguiu tirar uma fina da arte mexendo apenas com o banco de dados que mantinha na memória e a capacidade sem igual de engatar a língua diretamente ao pensamento sem circunlóquios, freios ou filtros. (O que não é tão fácil quanto possa soar aos ouvidos de quem não escreve a sério.) Em minha releitura, abri o livro e fui indo e quando vi estava no fim. Isso é, acho, prova de que era pelo menos legível, ao contrário de nove entre dez astros do firmamento literário do Berção.
Naqueles tempos d'O Pasquim não havia muita opção na imprensona, lembro de articulistas chatos como o próprio Drummond e Flávio Rangel na Folha, Raymond Aron imperdível no Estadão dominical cujos artigos deviam equivaler a umas 2 bíblias e que levava um dia inteiro para deglutir, impensável nos mequetrefes em que se converteram os jornais de hoje com seus zés-simão e as inefáveis, as malditas celebridades no alto da primeira página e essa onda de competir com a tevê, que fatalmente vai aniquilar os jornais. (Prezados magnatas da imprensa, querem reverter a queda diária na tiragem? Então parem de mirar quem assiste o jornacional e comecem a escrever para quem gosta de ler. Kartoffel. Ainda os há, acho.)
O Pasquim foi uma escola estilística, o que não é nenhum achado e nenhuma originalidade. Muitas das sacadas, truques e bordões que correm por aí ainda hoje nasceram lá. A maioria feneceu junto com o hebdomadário, ou seja, só tinha força no conjunto. Exemplo é Sérgio Augusto, para mim ilegível no Estadão, rezingando faltas de assunto num mansinho que às vezes beira o rançoso. Millôr era, qual hoje, uma no cravo e duas na ferradura, humorístico e trocadilhesco demais para ler amiúde, prenunciador do tolo José Simão com suas piadinhas deliberadamente redundantes em torno das estrelas da tevê próprias para quem precisa ler várias vezes até entender, contágio da repetição tantalizante das imagens na tevê e na internet. Henfil era cara digno, esquerdista se lido hoje. Todos os homens de boa vontade éramos sob a ditadura. Até, cruzes, Francis, no começo, o que ele mesmo gostava de alardear, hoje sabido, soando apenas como mais uma verdade dum sujeito relativamente verdadeiro em suas mentiras e contradições, que é o mínimo que podemos pedir. Na época, ao vivo, outro papo. Mudou para Noviorque, caiu de quatro ante o capitalismo. Na época, não lembro direito o ano, uma linha telefônica chegava a custar, cruzes, cinco mil dólares, telefone era patrimônio, herdeiros brigavam a foice para ficar com a linha no inventário, famílias economizavam décadas para ter uma. (FH merece uma estátua para cada uma das privatizações das estatais. Peetistas reclamam que ele as vendeu a preço de banana. Teria sido bom negócio para nós pagadores de impostos mesmo que as tivesse doado. Peetistas hoje estariam pagando 2 mil dólares por um celular se a telefônica ainda fosse estatal.) Francis em seu diário da corte nos matava de inveja contando ter quatro ou cinco linhas em seu apê, bastava um telefonema pro freguês descolar mais uma com três ou quatro vendedores de telefônicas na porta implorando para ser escolhidos. Com Francis Roberto Campos, que então chamávamos Bob Fields fazendo coro com henfil, deixou de ser anátema. E o próprio capitalismo. Talvez algum mestrando da USP se disponha a esquecer o baseado por algumas semanas e levante até que ponto Francis e congêneres contribuíram para que preservássemos o que nos resta de urbanidade? Dilma vem despontando lá longe enquanto tento decidir em qual embaixada pedir asilo.
Francis vivo era meio inanalisável. Como, lilarirari, toda pessoa de talento autêntico. Esses anos todos passados, dá para ter uma ideia. Podemos começar pelo espalhafatoso silêncio dos inocentes de bacharéis que se calam ante o abominável Lula e não param de tagarelar quando não têm nada a dizer. (Não consigo mais engolir Antonio Cândido depois que ele confessou abjetamente venerar o nosso pequeno caudilho e sua tirania light, dizendo-o “inteligente”, como se inteligência fosse elogiável per se.) Não sei se há teses e dissertações sobre Francis. Talvez algum aprendiz de bacharel tenha acordado da letargia festiva que é a vida universitária e obrado uma. 
Quando ele morreu tive um insight do vazio que ia deixar. Fácil prever, antes não tinha ninguém. Do Nelson Rodrigues jornalista peguei apenas um tico. Por que não li as crônicas dele na adolescência? Não se publicavam em Sampa? E Francis, talvez por ter sido nativo do baby boom dos amadurecidos sob as reviravoltas do fim dos anos 60, cuidava para importunar o bacharelesco em cada linha. (Para mim pessoalmente, razão de toda uma vida.) Engraçado quantas décadas o nosso modernismo, tirante cabras como Mario e Oswald, tardio demorou para vingar no Berção. Depois de Bernhard, Gombrovicz, Hemingway, para ficar nos grandes, depois de notas do subterrâneo, ponta-pé inicial do que se escreveu no século passado, depois do próprio Francis ainda tem gente incapaz de fugir do inferno do edificante, do bom-mocismo dos encastelados em capitanias hereditárias em folhões e quejandos.
(Jaguar conta que a primeira entrevista do Pasquim, com Ibrahim Sued, saiu crua a público porque ele, Jaguar, ainda verde, não sabia o que era copidescar. Assim inaugurou-se o coloquialismo na imprensa, quase 50 anos depois da Semana de Arte Moderna. Para variar, outro grande passo da humanidade movido pela acidentalidade, que nos rege a todos da inseminação do óvulo ao cemitério, ao contrário do que pretendem astrólogos, marxistas e cozinheiros. Os jornalões ainda hoje insistem no copidesque para filtrar suas matérias de impurezas da alma. Quando muito, enfiam um “risos” nas falas dos entrevistados a título de informalidade. Não adianta, o rigor mortis é a nossa sina.)
Francis era a bête noire de bacharéis e esquerdistas entricheirados em empresas do estado dizendo-se compadecidos do populacho explorado enquanto mamam nosso sangue. Salvo engano, não tinha diploma (se tinha, me corrija um fiscal biográfico aí). Raro o dia em que não espinafrava à insignificância esses professores-doutores que suam a camisa de tergal e a gravata combinando para parir três paragrafozinhos sonsos. A cafonice do intelectual bourgeois obcecado por pregar na parede da sala visível à visita que entra um papel emoldurado em imbuia, peroba ou outra lenha saqueada à Amazônia para emoldurar seus troféus de fancaria. Podes crer, nem tudo que macaqueamos dos americanos é digno de macaquice.
Além de Nelson não havia muitas opções. Escrever coluna regular é fatal. Exemplos abundam, aí está o Veríssimo e seus gracejos a se repetir ab irato há séculos. Que é que Veríssimo pensa do que quer que seja? A última opinião que ouvi dele foi há anos, a favor de Lula (mas pelo menos era uma opinião). É chato ver alguém inteligente ficar de boca fechada diante de Lula e sua selvageria benigna, que vai instilando na macacada de mansinho, sem dar muita bandeira qual seu confrade brutamontes Chávez, mais chegado à bufonaria. (A última de Lula, no momento em que escrevo, é o bolsa-celular, bônus a quem participa do bolsa-família, com 7 reais de ligações pré-pagas mensais, além do que ouso me indignar. Não adianta, Lula deu um nó na tucanada e não vai largar o osso tão cedo. E, não adianta, a macacada tem o que merece. E Lula demonstrou que odeia a fundo o País e que nos deseja tudo de pior escalando a alfabetizada Dilma para sua sucessão (a dona foi assaltante de bancos, será verdade? Jesus. Morro de medo de armas. Certa vez estava no sítio de um primo quando ele me deu um 38 para atirar numas latas e fiquei em dúvida se disparava contra a própria cabeça. Graças aos céus Lula proibiu o acesso a armas de gente como eu). E Lula, espertérrimo, mantém os sindicatos a filé mignon à custa dos fundos de pensão e empresas do governo, caso um dia precise duma “mobilização” para amedrontar as classes médias. O que nunca será necessário, obviamente. As classes médias, e as outras também, estão e sempre estarão bem quietinhas comendo pizza de calabresa assistindo o Big Brother.) Veríssimo talvez fosse grande, tivesse peito. Se reserva o direito de ficar calado. Não é bobo, pra que se comprometer à toa? Aquelas piadinhas na última página do Caderno 2 são constrangedoras, joão sem braço face à roubalheira peetista para não dar munição à “direita”, mais uma vez a ideologia fazendo as vezes das ideias.
O bacharelato despreza escritores que não paguem a devida deferência ao beletrismo (há séculos combatido por todo escritor que se preze) e ao perene neoparnasianismo que nos atazana qual praga. Entre outras razões, porque são refratários ao método, o mesmo método que trouxe o planeta à beira do abismo em que está agora. (Declaração mais desprovida de método, essa.) As crias que doutos, cientistas, lógicos e estudiosos engendraram nos últimos cinco mil anos de civilização, “potencializadas” depois da Revolução Industrial, culminaram nesta nefasta era da informação de progresso sem limite e esta na distopia presente. O homem como medida de todas as coisas de Protágoras sifu. A dimensão humana começou a soçobrar sob a RI com a mecanização da produção até virar adubo hoje sob a comunicação instantânea diabólica do celular e o lazer infinito e permanente da tevê e da web e a armadilha da gratificação constante em que a molecada se viciou. As próximas gerações serão cada vez mais abstratas.
(Como, infelizmente, em breve terei de partir para sempre deste vale de lágrimas, sem direito a retorno como querem espíritas e outros místicos delirantes, tomara que lá no céu tenha tevê a cabo para eu ver como é que meus pósteros vão se virar. Por aqui me sinto num mato sem cachorro, certo, questão de vocação. Queria saber, entre outras, que fim vão dar a vovôs e vovós de 150 anos e seus corpitos sarados mantidos a doses cavalares de química mais escalafobética a cada dia. Pelos sinais ao meu redor, em poucos anos estarão todos livres do câncer e de outras tragédias e de vírus como aids e mesmo de degenerescências como alzheimer e parkinson. A perspectiva, parece, é o prolongamento continuado da longevidade. Só tem um probleminha: os azimovianos curandeiros não conseguirão inventar um analgésico para o espírito. Nossa experiência “humana” não tem como sobreviver a mais de cem anos. Há dois meses perdemos na família nossa avozinha de 96, nos últimos anos eu vendo aterrado nos olhos dela que o fardo do corpo ia pesando mais e mais e mais, tendo os “motivos” se acabado todos. A regressão à infância no corpanzil de quase um século é desesperadora. Prazer, nenhum. Interesse, lhufas. Paparicada dia e noite por filhos e netos, torcia o nariz, praticamente implorando que o fim viesse logo. Restou apenas o império do presente, até o passado e o que pudesse guardar de reconfortante se dissipou. Melanie Klein dizendo que o idoso tem por função transmitir vivência aos mais novos é lorota. Duvido que alguém de 150 anos com corpo são e cérebro relativamente lúcido ache algo interessante a fazer. Há décadas Suíça e Holanda têm clínicas a que anciãos endinherados na casa de oitenta, noventa e cem acorrem para comprar a peso de ouro uma eutanásia que lhes permita enfim descansar. É óbvio, e todo óbvio é intolerável, mas não posso conter o touché de que lutamos cinco mil anos para derrotar a natureza e tudo que ela nos guarda de nefando, e o trágico só faz aumentar. Me compraz e consola que tudo pareça estar minguando. Certo, são minhas teorias mais pessoais e poéticas e esquizóides se comprovando. Tenho pouco, ou nada, a perder. Sempre tive a morte por companheira nata. (Putz, essa saiu sem querer. Como digo sempre, a poética ─ não a poesia ─ me dá nojo.) E falta falar dos chinas. Os caras mal começaram. Estão na revolução industrial lá deles. Mês passado a ministra da economia chinesa disse que eles precisam gerar 300 milhões de empregos nos próximos dez anos para sustentar a macacada que está fugindo do campo para as cidades. Holy cow, Lula não consegue gerar 300 sem destruir metade da Amazônia e estorricar meio Pantanal. Não preciso de bolsa do CNPq para concluir que daqui a trinta anos, a China líder mundial, mais dois bilhões irão se juntar aos escravos se esfalfando 16 horas diárias para trocar de celular no fim do mês, tirando do planeta o que não há mais a tirar, produzindo everests de lixo que não há onde enfiar, não é preciso nobel para concluir, o fim se assoma no horizonte. Há alguns anos a crise do petróleo parecia indicar que os gênios da espécie acabariam por descobrir um substituto energético que nos salvaria a todos do colossal banho turco regado a ácido sulfúrico em que vai se convertendo nossa velha Terra, mas eis que Lula, quem diria, deu de descobrir uma mina de petróleo atrás da outra e com isso os homens de cérebros fabulosos não se motivam a engendrar a tal da alternativa. E não falemos também de europeus que já começaram a se autoexterminar porque não toleram crianças e não querem mais se reproduzir e, se o mundo não acabar, serão reduzidos a meia dúzia no próximo século. É engraçado que cientistas malucos aliados aos homens sensatos que fizeram do planeta o que ele é, capazes de inventar as mais inimagináveis bugigangas para que todos esquecêssemos a dor intrínseca de viver, sejam incapazes de forjar um spray teratogênico que limpe o ar num passe de mágica e nos tire desta enrascada. Mas deixemos a salvação do planeta para o talentoso Lula e estadistas de igual quilate e voltemos à nossa hilária comunidade Literatura. Eu dizia que... Só um minuto, vou ter de voltar lá pra cima... Ah sim, falávamos do Mainardi e sua invectiva contra Drummond.) 
É mister reconhecer que o nosso subfrancis se empenha para produzir seus traques e truques à custa de resfôlegos, cambaleios e tropicões. Vive há anos de chutar o Lula. (Assim, até eu.) Deve estar duro de arrumar assunto agora que o pequeno tirano virou unanimidade, mesmo para os deslumbrados que veem Veja. (Ética é legal. Mas cuidado com o balanço. Ninguém quer prejuízo.)
Para deflagrar suas polêmicas estudadas e pífias, Mainardi criou uma lista “Temas mais afeitos a gerar forrobodó” e saiu por aí soltando balões estufados de ar. Não sei que outros papos-furados ele tem jogado para cima de suas fãs. Se forem da altura dessa aí sobre o Drummond, então estamos mal.
Certa vez bati boca pela orkut com a presidenta do fã-clube do cara, perguntando se ela não tinha vergonha de pertencer a um fã-clube, aquela piadinha do Marx, mas essa é, acho, outra história. A boçalidade que impera na orkut me fascina. A orkut se presta legal a fins antropológicos. Acho que o professor DaMatta deve ter parado de observar os brasileiros na rua e agora vive clicando em sites de relacionamento, que de relacionamento não têm nada. A comunidade Fora Lula com seus maníacos histéricos esgoelando palavrões e exigindo golpe militar conseguiu a proeza de afugentar para as hostes lulistas internautas que estavam indecisos. (Golpe neste terceiro milênio? Em Honduras pode ser.) Mainardi logrou o mesmo feito, só que sozinho (que talento, dio mio), depois de ficar anos dando a queda de Lula por certa e queimando a língua a cada previsão, até virar contraditório profissional e tentar vender seu peixe com a pose do intelectual errar-é-humano. (Virou moda com Sartre. Todo mundo cai ante uma profissão de humildade.) Veja teve de mandar o rapaz segurar a onda porque estava inquietando os frequentadores do Iguatemi que veem a revista. Tudo que o pessoal quer é tranquilidade para torrar 2 pilas numa calça jeans de grife sem dor na consciência. Obsessivos assustam.
Parece que Mainardi não existiria como tal não fosse um empurrãozinho dado por Francis lá nos idos dos 80 ou 90. Tinham feito amizade e Francis devotava lealdade canina aos amigos, ao que parece sem olhar os dentes. (Fazia propaganda para o Maluf dizendo que seria o maior presidente do Berção, o que eu entendia como licença poética. Aos grandes se deve perdoar (quase) tudo. Inclusive Drummond. Há uns tempos andei tomando umas e outras cum malufista, rapaz bem inteligente, prova de que ideologia pouco tem a ver com inteligência. ) Não sei exatamente como, onde ou quando Francis se deixou encantar por Mainardi. (Certa vez também desandou a elogiar Matinas Suzuki Jr., que logo depois virou editor da Folha. São difíceis de entender os caminhos e descaminhos que trilham esses barões da imprensa.) Dizem as boas línguas que tem algo a ver com Gore Vidal. Não posso garantir, pois não estava presente.
Zap.
Mainardi é daqueles que gostam de bater o martelo. Dá marretas a torto e direito com gosto. Quando leio me vejo diante dum juiz. Imperial. Severo, quase impiedoso, como soi ser todo ginete da justiça. Se pudesse faria uma limpeza lírica no mundo, talvez equivalente à étnica outrora intentada pelo vegetariano Adolf. “Comigo não tem conversa” é o recado que parece querer passar. Presta-se à perfeição ao seu papel de guru. (Fiéis que cultuam gurus políticos são os mais derrisórios, pois se acham in, eleitos iniciados numa verdade fora do alcance do coitado do outsider. Estão no meio do rebanho como qualquer ovelha, mas em vez de balir, rugem. Deve ser algo relacionado a vocação, mas não deixa de ter suas vantagens.) Escolhida a vítima, vai assentindo vorazmente com a cabeça em cujo interior certamente jaz alerta um poderoso cérebro de cuja perspicácia os pobres drummonds deste mundo jamais lograrão fugir. 
Logo no título o soberano decreto: chega de Drummond. Quis desistir, falei para mim mesmo, não vale a pena. Esperei uns minutos. Tudo bem, aquela estátua em Copacabana é assaz cafona. Mas Drummond não tem culpa. (Embora duvide que se opusesse, vivo fosse. Eu também não me oponho se quiserem erguer uma em minha homenagem na praça da matriz de Heliópolis.) Fui tomar um balla 12, traguei logo 3, para não dizerem que não sou um rapaz de boa-vontade. 
À parte uma ou outra tirada sobre o passado pregresso de Drummond ─ nada mais calhorda que escarafunchar o passado alheio para levantar pecados. Quem nunca pecou, que atire a primeira boutade ─, não se dá o trabalho de documentar suas graves acusações. Duvido que suas leitoras saibam onde o galo canta. Sendo um juiz austero mas, com perdão do pleonasmo, justo acredita que seu veredito seja suficiente. Autoexplicativo em sua sumariedade, parece comungar do clichê “Decisão de juiz não se discute”. Drummond é idiota e pronto. Reduzir a pó uma das maiores personalidades da literatura nacional parece ser apenas um aperitivo para tão insaciável sede de justiça. O gorduchote Mainardi, trombeteiro da iniciativa privada, vai lambendo os beiços enquanto devora o raquítico barnabé Drummond e seus pendores socialistas, antecipando o banquete de amanhã. Mais que implacável, se pretende iconoclasta. (Ao que parece, aspiração de nove entre dez estrelas da intelectualidade.) Fora com os mitos! quer esgoelar. Chega de mentira sáfica neste país! O paladino da antilira brasílica veio para botar o dedão na ferida. Drummond não passa dum verme sempre disposto a inocular o vírus da mentira trovadoresca no pobre leitor. Verdadeiro, só mesmo João Cabral de Melo Neto e sua secura caatinguense, tudo dentro do sacrossanto espírito democrático. Afinal qualquer um pode falar o que lhe der na telha e ninguém tem nada com isso. 
Zap.
Drummond meio que perdeu a mão na velhice. Fez coisas mesmo constrangedoras, versinhos supersentimentalóides aqui e ali, aquela proverbial desandada tentando emular os concretistas. E daí? Seu fantasma não precisa passar a eternidade provando isso e aquilo a quem quer que seja. Ao longo da vida escreveu bem e mal como qualquer outro poeta/escritor. Isso não vai mudar só porque os espertinhos de plantão dizem que não devia ser assim. Não há escritor que nunca tenha entornado o caldo. Todos acabam cometendo barbeiragens cedo ou tarde, se repetindo, se autoplagiando, tentando ressuscitar aquele primeiro estado de espírito em que a energia parecia infinita e o olhar era capaz de identificar o novo onde quer que pousasse. Não é batatinha assumir que o champanhe ficou sem gás, nenhum dos grandes escritores que já li, aqueles notórios à parte, resistiu à tentação de mais uma requentada no angu. Sempre chega a hora em que o escritor deixa de escrever em primeiro lugar para si mesmo para querer contentar os outros, mendigar uns elogios, reconquistar os suspiros da vizinha, o que qualquer outro em seu lugar faria. Por essas e outras Rilke aconselhou ao jovem poeta Kappus: “Leia o menos possível trabalhos de crítica. Obras de arte são de infinita solidão; nada as pode alcançar tão pouco quanto a crítica”. 
Zap.
O chato nesse ataque de Mainardi é o motivo: o pusilânime Drummond teve a fraqueza de misturar poesia com fantasia, sucumbindo a rompantes esquerdistas ao longo da carreira. (Muitas das pessoas inteligentes que conheço passam ou passaram por isso. Monolíticos me dão sono.) O esquerdismo franco ou velado em algum momento da vida é o que une os alvos de Mainardi, basta ver o rol de suas vítimas.
Daí a mesmice das catilinárias. A previsibilidade. Em sua próxima crônica, Mainardi vai atacar um ex ou atual esquerdista tão certamente quanto o trânsito de SP ficará engarrafado amanhã cedo. Afinal é o que as fanáticas que o veem esperam dele. Que delícia ter uma plateia cativa. E que desgraça. A mim me sufoca. 
Gurus, sejam da esquerda ou da direita, fazem o que seus devotos esperam que façam. Exercem papeis. Seu script está escrito e não há como fugir dele. Imaginar que algo assim seja possível me dá falta de ar. Depois de ter lido essa gente uma vez, não há nada que me faça ler uma linha uma segunda vez. Tenho certo respeito por Reinaldo Azevedo, cuja inteligência e cultura salta aos olhos. (O melhor ataque à famigerada reforma ortográfica que li é dele, texto que eu gostaria de ter escrito.) Dos gurus de Veja, o melhor disparado é Augusto Nunes, autêntico estilista, domínio magistral do vernáculo, engenhoso na articulação dos parágrafos, afinado nas tiradas e nos apodos (“Exterminador de Plurais” e “Base Alugada” são hílares), bem diferente dos textículos áridos e desenxabidos de Mainardi, urdidos sob indisfarçável penar. O que empana o brilho é aquele espírito de corpo abjeto como qualquer outro espírito de corpo, o compadrio com que um levanta a bola para o outro. Que eu saiba, quem pensa tem de escrever o que pensa, não formar aparelhos. E aquela claque que diariamente baba comentários inanes em seus blogues. Jesus. A diferença de Francis, além da genialidade, é que não toleraria a cambada de puxa-sacos a seus pés, e artista, capitalizava as próprias contradições. Brutal diferença.
Sempre que escrevo celebro comigo mesmo a suprema liberdade de não ter de dar satisfações a ninguém. Não preciso pensar se fulano está alinhado desse ou daquele lado antes de enaltecer ou espinafrar o cara. Sou livre dos malditos “parâmetros” dos carreiristas que não podem dar um passo sem antes fazer cálculos mil sobre a conveniência ou inconvenicência do que diz. Believe me, maior delícia não há. Me recuso a entrar para gangues, legiões, agrupamentos, patrulhas ou milícias. Esse tipo de coisa me dá claustrofobia. 
Gurus ocupam espaços. Nisso não diferem um tico das caminhandos e libelus dos meus tempos de ECA. (Às vezes avisto ex-colegas bem-sucedidos em algum jornal ou tevê por aí. Parece que a autodisciplina stalinista deu frutos.) São todos bispos e rainhas no grande tabuleiro ideológico e não podem dar tregua ao inimigo.
A divisão das torcidas já deu. Jesus, quem consegue levar Olavo de Carvalho ou Marilena Chauí a sério? Passar a vida arremessando tomate nos adversários talvez seja bom para quem é chegado a uma confraternização, os que não se avexam de mugir no meio do rebanho. Tenho horror a tudo que cheire a ordem unida. 
A maioria desses fanáticos escolhem seu lado político religiosamente. Pensam que sabem por que pensam o que pensam. (Com perdão pela recaída nos efeitos fáceis.) Direitistas defendem a livre iniciativa como bálsamo geral, esquerdistas dizem que o estado deve intervir para proteger os mais fracos. Todas essas ideias não passam de abstrações, naturalmente. Só existem em livros e em discursos no Congresso. Incomprováveis, como muitas outras. Basta olhar para trás e ver. Mas olhar com coragem, não olhos embaçados de fantasias ou cifrões. Na minha cabeça confundo capitalismo com catolicismo e socialismo com islamismo. O pessoal se inflama contra ou a favor de Lula como se não tivessem outra coisa a fazer na vida. Lula não foi o primeiro nem será o último dos nossos flagelos. Lula é o Brasil. Não há purgante racionalista que nos livre disso. Dia desses FH causou comoção alertando em artigo no Estadão para o perigo do continuísmo lulista. Mais uma vez os leitores babaram. Só que, bidu, mais uma vez FH se esqueceu de quem foi o inventor da reeleição, a mais traumática ruptura da ordem política dos últimos tempos. É fácil resolver pepinos num artigo de jornal.
Leitores de jornais e revistas e membros de comunidades respondem a tais artigos e a tais blogs citando Sócrates, Nietzsche e outros menos cotejados, só para comprovar que vivem num estado idealizado, saudosos do tempo em que podiam fantasiar com belas adormecidas. Que bom seria se todas as nossas contradições pudessem caber numa citação, afugentando nossas dúvidas bestas para longe. É gostoso ter só certezas. Nos sentimos seguros de que estamos no caminho certo e o nosso mundo é indestrutível.
Pena que essa ilusão da indestrutibilidade esteja levando nossa Terra à destruição. Os hipermanda-chuvas que vivem defronte o Central Park, capazes de movimentar 1 trilhão de dólares num só dia e decidir os destinos de países inteiros num clicar de mouse, estão se lixando para o fato de que daqui a 5 anos centenas de espécies de peixes e mamíferos terão deixado de existir ou que nos últimos 40 anos os oceanos perderam metade de sua capacidade de reciclar poluição e esgoto ou que o aquecimento climático causado pelo gás carbônico está absolutamente comprovado apesar das negativas do Lula americano, Bush, e seu sucessor Obama. O único consolo é que nem mesmo essa gente poderá escapar ao Tsunami Final.
Discutir ideologia para mim faz tanto sentido quanto falar de moda. Os discursos dolorosamente vazios de políticos primários no Congresso e o arrazoado enjoativo de articulistas nos jornais equivalem a um desfile de Giselle Buenchen na passarela. Enfarado com o que se encena no palco, olho para o público. Parecem meros viciados em adrenalina. Precisam reassegurar dia após dia que seus ídolos têm brios e não temem a luta. Arrancam os cabelos discutindo o fim de Fidel. Qual é a importância de Fidel na minha vida? Nenhuma. Certo, o campeão de discursos quilométricos serve de inspiração para evos e chavez. Evos e chavez também não têm importância alguma. Falar dessa gente é tão inútil quanto falar de Lula. Todo esquerdista e direitista que conheço é esquerdista ou direitista porque não suporta não ser alguma coisa. Não ter um idéologo a lhes ditar o caminho é o mesmo que flutuar no vácuo, intolerável como renunciar à ideia da existência de deus. Saber que há um ente acima do bem e do mal, em permanente vigilância, onisciente, onipresente, ser tão perfeito que sua própria perfeição nos impede de duvidar de sua existência, é tão reconfortante. Atenua um pouco o desamparo angustiante em que a maioria de nós vive do primeiro ao último dia de nossas vidinhas de formiga mas temos medo de confessar porque em nossa fragilidade não podemos admitir que somos frágeis. Alguns se dão até o luxo de dedicar suas vidas ao estudo de Derrida em busca de algo que faça sentido.