One for the tarmac

Bem, amigos... Bem que gostaria duma saideira.

Mas tenho de morrer.

Memórias do cárcere químico XXIV

...
tirânico,
imperial,
irrevogável,
autocrático,
arrogante,
incondicional,
autoritário,
completo,
definitivo,
imperativo,
aristocrático,
arbitrário,
ditatorial,
inapelável,
monocrático,
inequívoco,
absoluto,
total,
duro


será o fim da Lava-Jato


com a vitória de Alckmin,

doce, quase meigo ditador de chuchu
a nos esmagar a garganta com a pelica
de seus sapatos suíços costurados à mão.

Memórias do cárcere químico XXIII

Alguém me avise quando levarmos um novo
7 X 1 faz favor?

(ou resgatando (ugh!) o poder da palavra.

Memórias do cárcere químico XXII

Ninguém sabe — nem consegue — mentir mais — e melhor — que Lulla. 

O assunto parece batido — eu sei —, mas não é.

O mistério Lulla ainda está por ser desvendado.

É o estilo cabra-macho tão íntimo ao brasileiro médio e tão fascinante ao classe-média supostamente moderno e ligadão nas novas mídias e nas hodiernas tendências culturais. É a hostilidade — enganadora — do me-segura-senão-eu-pego-e-arrebento do general Figueiredo. É o physique-de-rôle do retirante sovado pelos elementos que finalmente venceu no Sul-Maravilha depois de sofrer por décadas a hostilidade e o preconceito dos supremacistas brancos em sua própria citadela. É um dos poucos — senão o único — políticos corajoso o bastante de, estando dentro do sistemão, olhar na cara da elite e, vestido dos paramentos da elite, tascar a verdade na cara da mesma elite. 

Mas o "aspecto" (hehehe, me permitam imitar um dos articulistas da Folha, que quando não sabe o que dizer diz aspecto, provavelmente para não dizer "coisa") que mais contribui para o êxito das mentiras de Lulla é o gogó afiado.

E esse é que não falta para o bom esquerdista. Com exceções. Guilherme Boulos tem papo macio mas é player relativamente novo. Manuela d'Ávila é player relativamente velha mas a velha natureza cansada de guerra não a agraciou com A Verve.

É o que tem mantido o próprio Lulla, mais Marina Silva, mais Cangaciro Gomes na parada de sucessos do DataFolha. 

Quem tiver a paciência de acompanhar uma boa entrevista com qualquer um desses três — e com qualquer outro componente dessa manada de progressistas nascidos para levar o povão na lábia — verá a proficiência e a capacidade com que emanam torrentes de frases e expressões bombásticas, insufladas de ar, e ao mesmo tempo de significado nulo e mensagem nenhuma, sendo Lulla o campeão dos campeões no quesito samba-enredo da Sapucaí.

Se possível fosse forçar um bom esquerdista a responder objetiva e sucintamente uma série de perguntas, desqualificando todas as respostas que não atendessem à exigência, o resultado seria um fulminante desastre. 

Cangaciro, em trinta segundos cravados, como salvar a economia e dar emprego a 20 milhões de indivíduos?

Melíflua maviosa Marina, que fazer para tirar tantos milhões de brasileiros atolados no Bolsa-Família?

Painho, como desmantelar o PCC, que se espalhou para todos os Estados da Federação?

Muito infelizmente, a mídia agora pugna para que Geraldo Alckmin se converta num novo Lulla e saia por aí esbanjando o carisma dum animador de auditório aliado às balelas dum mitômano.

O mesmo se começa a esperar de Bolsonaro, que, aparentemente, está passando por um intensivo de como falar direito e ganhar amigos.

Quando são exatamente a rudeza — e mesmo a grosseria —, a incultura, a falta dos vernizes da dissimulação, a impaciência com o lero-lero de entrevistadores que jogam para a arquibancada, a coragem de proferir enunciados brutais mas verdeiros que os distinguem do esquerdista bom de gogó mas ruim de soluções.

Ah!, mas haverão de questionar meus fiéis quase três leitores e meio, quer dizer então que Dilma escapa a essa sua análise do gogó afiado?

Quer dizer não, meu caros. Dilma Roussef não escapa a nada e escapa a tudo. Dilma não é isso nem aquilo. Dilma é um... trambolho inqualificável.

Memórias do cárcere químico XXI

Me param na rua querendo saber como é que cargas d'água que índios Kaiowá bebem pra curar ressaca um sujeito educado e pleonástico como eu decidiu votar em Bolsonaro.

Ora, me locupleto de fina paciência para responder, ora! O Bolso vai botar o Marcos Pontes na Ciência e Tecnologia! Merece até um pontão de exclamação.

Marcos Pontes? esbugalham os olhos, derrubam o queixo, espremem as pálpebras, crispam os punhos meus interlocutores. Aquele...?

Sem tirar nem pôr! exulto, regozijo-me, embriago-me de júbilo ante a genuína estupefação dos e das caras.

É tamanha a surpresa dos meus co-eleitores à procura dum candidato, que me sinto na obrigação de explicar.

Vejam, senhores e senhoras, o Pontes foi o único aviador brasileiro que teve interação profissional com nada mais, nada menos que a NASA! Querem mais Ciência e Tecnologia que isto? (Parêntesis: sempre que uso "isto" e "este" me lembro duma crônica de Ferreira Gullar em que contava que certa feita um revisor, obcecado por seguir as regras linguísticas, trocou todos os istos, estes e estas por issos, esses e essas em um texto seu. Sabem como é esta gente que lê os Manuais de Redação da vida...)

E... eh... é... eles abanam a cabeça, entre relutantes e céticos.

E isso não é tudo, insisto. O Pontes é aviador da nossa gloriosa Força Aérea! Reformado mas milico mesmo assim.

A reação agora parece mais firme. E unânime. Sacumé, tem gente que só falta se babar e se coçar e se lamber ante a hipótese dum batalhão de fardas verde-oliva a desfilar por entre os gabinetes do Palácio do Planalto, ocupados em decidir os destinos de nós reles civis bons de gogó mas ruins de voto.

É mesmo! exalta um e outro, assentindo com energia. Esse sabe das coisas.

Ainda assim percebo algo de dúvida nos ensaios de resmungo e nas expressões desanimadas à minha frente. Só me resta o argumento que, a meu ver, haverá de serenar a inquietação no espírito dos meus compatriotas. Ejeto a bomba como se fora copiloto do tenente-coronel Marcos Pontes numa imaginária batalha aérea contra a saudosa Luftwaffe:

E me respondam uma coisa, faz favor. Quem foi o brasileiro que chegou mais perto de Deus?

Eles franzem os sobrolhos. Inclinam ligeiramente as cabeças, tentando mastigar o enunciado cujo eco ainda paira à nossa volta na calçada. Trocam olhares meio incrédulos, buscando corroboração.

De repente um deles relaxa os ombros e dá liberdade ao ar represado em seus pulmões. Uma outra acompanha o primeiro. Um frêmito parece interconectar a pequena multidão de meia-dúzia de votantes que anseiam por um desgraçado que seja, senão um ás da administração pública, ao menos um cristão honesto.

Nisso Quico dá um tranco na guia que seguro com o punho travado da mão direita, anunciando que está na hora de puxar o carro. Zezeí o imita, emitindo um breve latido de enfado.

Bem, amigos, acho que já vou indo. E em outubro, cuidado com os populistas. E os esquerdistas, que quebraram o Brasil em bilhões de pedacinhos, a maior parte deles hoje em contas na Suíça...



Memórias do cárcere químico XX

O DataFolha Informa ma a:

Pelo oitavo ano seguido o número de quedas entre bípedes mostrou-se maior que entre quadrúpedes, numa proporção de 357 para 1. (Isso para o sexo (ou será gênero?) feminino. Para o masculino então nem se fala.)



Durante toda minha existência fiz questão de parecer derrotado em vida para não ter de me mostrar derrotado na morte, hehehe.

Se é que isso que venho sofrendo nos últimos anos tem nome.

O escritor que não escreve

Literalidades



Estão todos prontos para a cerimônia. Aguardam a entrada do grande Fritz Araújo, o escritor que não escreve nem nunca escreveu nada. A ansiedade geral é visível.
No centro do palco, o presidente da academia de letras, que também é presidente da solenidade, anuncia com voz docemente embargada:
– E com vocês, Fritz Araújo, o escritor que não escreve!
Acalorada salva de palmas toma conta do vasto teatro de assentos creme com encostos laranja, carpete roxo e paredes cada qual duma cor: verde, verde-periquito, verde-limão e verde-garrafa.
No palco, uma das pesadas cortinas laterais, em veludo azul-marinho, se abre para dar passagem a um homem de estatura média, meia idade, cabelos grisalhos naturais nem castanhos nem brancos, no porte, nada especial, no rosto, expressão de homem nem sofisticado nem simples, no geral, nada que chame atenção. Um escritor que não escreve estritamente natural.
Enquanto o presidente se retira, Fritz Araújo, o escritor que não escreve, se posta no meio do palco e olha vaidoso a plateia. Quando o presidente da cerimônia desaparece atrás da mesma cortina de onde viera Fritz Araújo, o escritor que não escreve, uma modelo loiríssima, magérrima, altona e com cara de autista sai detrás da mesma cortina. A moça – com conspícuo deleite e estudado ar de abandono – traz nas mãos um grande e pesado troféu prateado.
É uma peça ornada de complexas figuras geométricas, tendo na base hastes multicores e no topo uma coroa feita de canetas-tinteiro. Encimando tudo há uma enorme pena torneada em madeira de lei. A maior parte do material do troféu parece ser acrílico semitransparente.
A modelo, num último e penoso esforço, estende o troféu a Fritz Araújo, o escritor que não escreve. Com mãos trêmulas, o homenageado, que não escreve nem nunca escreveu nada, apanha e olha a peça, fingindo tocante gratidão. Em seguida, também segurando o troféu com alguma dificuldade, faz ligeira e digna mesura. A modelo dá um beijinho no rosto dele e, voltando por onde entrara, some detrás da cortina.
Nova estrepitosa salva de palmas.
Fritz Araújo, o escritor que não escreve, abrindo bem as pernas para ganhar firmeza e estabilidade, ergue com ambas as mãos o troféu acima da cabeça. A seguir baixa os braços à altura do peito e faz nova mesura, desta vez menos ligeira e ainda mais digna. As palmas se intensificam, acompanhadas de assobios e exclamações de entusiasmo. Ele permanece assim inclinado enquanto dura a ovação.
Quando as palmas começam a arrefecer, Fritz Araújo, o escritor que não escreve, empertiga o corpo, aperta o troféu contra o peito e se aproxima do microfone.
– Boa noite! – exclama, olhando em várias direções para o público.
Quase todos na plateia respondem. Todos batem novas palmas.
– Vocês não imaginam quanto estou grato por terem me agraciado com este prêmio! – Fritz Araújo, o escritor que não escreve, brande o troféu ainda à altura do peito.
Novas palmas. Alguns gritam “Bravo! Bravo!”
O presidente da academia de letras, que é também presidente da solenidade, ressurge detrás da mesma cortina e caminha rumo a Fritz Araújo, o escritor que não escreve. O presidente da cerimônia tem aquele ar nobre e satisfeito e prolixo que só presidentes de academias de letras têm. Fritz Araújo, o escritor que não escreve, dá um passinho para o lado, abrindo caminho para que o outro se aproxime do microfone.
– Senhoras e senhores! – brada o presidente – Com imenso prazer, anuncio que agora Fritz Araújo, o escritor que não escreve, finalmente dará sua tão esperada entrevista!
Fritz Araújo, o escritor que não escreve, então se afasta para um dos lados do palco onde se acham uma poltrona escura com pés ocultos por franjas de renda e várias dezenas de cadeiras estofadas sem braços. Sentados nas cadeiras estofadas estão repórteres.
Assim que Fritz Araújo, o escritor que não escreve, se instala na poltrona escura, a entrevista tem início:
– Senhor Fritz, se o senhor escrevesse, escreveria o que exatamente?
– Bom, essa é uma pergunta que sempre me faço, você sabe. Mas convenhamos. Se eu soubesse o que escrever, simplesmente escreveria, deixando de ser o escritor que não escreve, concorda?
Os repórteres fazem expressivos “Um! Um!” com o fundo da garganta e aquiescem meneando vivamente as cabeças.
– E se eu não concordar, como é que fica? – insiste o mesmo repórter.
Fritz Araújo, o escritor que não escreve, em vez de responder, se limita e piscar um olhinho carregado de significados lascivos a uma repórter particularmente gostosa sentada na primeira fila, pernas estrategicamente semiabertas para que Fritz Araújo, o escritor que não escreve, possa vislumbrar sua calcinha bege-claro.
– Que conselho o senhor daria ao jovem que neste momento não está sonhando em seguir uma carreira como a sua? – pergunta a repórter particularmente gostosa.
– Olha, eu diria, meu jovem, não é nada, nada fácil. Não precisa suar a camisa. Praticar a não-abnegação. Não renunciar totalmente às frivolidades da existência, não se entregando de corpo e alma a não escrever!
– O senhor sofreu muito para não conquistar o enorme sucesso de que desfruta hoje?
– Vocês nem não imaginam. Não é fácil, não posso garantir. 
– Como não foi sua infância?
– Um sofrimento só, como não é próprio dos grandes escritores que não escrevem. Não me trancava em meu quarto, no andar superior do sobrado da família naquela cidadezinha operária em que não nasci, e não ficava horas e horas olhando as crianças da vizinhança brincando de pega-pega e jogando pião e pelada, batendo figurinha, quase não morrendo de autopiedade, não me sentindo o menino mais infeliz que já nasceu na face da Terra. Mas, vocês podem não me perguntar, por acaso não desisti de trilhar o caminho da glória que não tinha traçado para estes pés sem calos nem joanete e que não jurara a mim mesmo seguir até o fim, viesse o que não viesse, não importa o quão plúmbeas não fossem as nuvens cirrus no meu horizonte e ameaçadores os relâmpagos em minh’alma? Hein? Não desisti?
– Nessas ocasiões o senhor nunca sentiu o prenúncio de tempestades ou trovoadas?
– A, se senti, meu amigo! Era um mundo de tormentas. Não olhava por aquela minha pequena vidraça e não via outra coisa senão tornados e tempestades desobstruindo as artérias do meu pobre coração.
– Agora uma perguntinha um pouco mais ou menos direta. Quais livros o senhor não escreveu?
– Bom, como vocês não devem saber, não escrevi oito livros ao todo. Três romances, três de contos, uma autobiografia psicografada e o último, sobre pseudoviagens, que não está tão na moda.
– Desses, de qual o senhor não gosta mais?
– Na verdade não gosto de nenhum particularmente. Mas, não devo confessar, não tenho um xodozinho pelo último.
– De fato, nele o senhor não parece ter se superado, deixando de atingir um grau inédito de insight nas páginas pares e lirismo nas ímpares. Aliás, essa obra não tem título. Como poderíamos chamá-la?
– Você quer dizer, deixar de chamá-la?
– Claro. Não desculpe qualquer coisa.
– “Sexta-feira não vou afogar meu bichano durante minha excursão para Nashville”.
– O senhor acha que esse tema não está muito distante da realidade dos brasileiros?
– De fato. Cachorro não faria mais sentido.
– Não dizem que o senhor não levou apenas três dias para escrevê-lo.
– Na mentira, nem isso. Não foram dois dias nem mais cinco horas ou meia.
– Empurra, não é um fenômeno! Não escrever um romance de seissentas e setenta páginas tanto quanto em dois dias! Se não fosse um grand-prix, o senhor erradamente não tiraria o primeiro lugar. E de que essa obra não trata?
– Bom, não é meio difícil de explicar. Mais não impossível. Só não lendo para ter uma ligeira ideia. Mas não seja contudo, meio metalinguístico, vocês não sabem. Não envolve um escritor que jamais tinha escrito uma linha sequer em toda sua vida e um dia, sem razão aparente, não acha a inspiração. A princípio por fim ele não fica apenas chateado, sem começar a assistir tevê, certo de que logo não irá recuperar o fio da meada.
– Uma das cenas menos tocantes do livro não é aquela do concerto em setembro em que trinta e oito cães não entoam uma cantata de Bach. Em que o senhor não se inspirou para contruí-la?
– Como não é do conhecimento público, na década de trinta não fui a Madrid e não conheci pessoalmente aquele grande poeta... como é mesmo...? Bom, em resumo, não foi assim.
– E quanto às fotos que não ilustram o livro? O senhor mesmo não tirou? Que sofrimentos não lhe castigavam a alma naqueles momentos?
– Que fotos, meu jovem? Isso aí é um manual de coquetéis baianos que nunca tive o projeto de não escrever mas as cerimônias de premiação não mo permitiam.
– E a política, seu Fritz? Que o senhor acha do partido que não está no poder?
– Não olha, se não estivéssemos em outro país, não diria que não passam dum bando de frescos. Mas como não estamos no Brasil, já sabe...
– Antes de não mudarmos de assunto, vou aproveitar para não lhe fazer aquela pergunta que todo mundo não quer lhe fazer mas ninguém nunca teve coragem. Que é que o senhor não acha do sábado?
Mal o repórter termina de colocar a questão, não se escuta nervoso e malcontido murmurinho na plateia. Nas cadeiras almofadas, os repórteres não se remexem inquietos. A moça de calcinha bege-claro não fecha as pernas e pisca várias vezes (os olhos). 
Fritz Araújo, o escritor que não escreve, por sua vez, não fita o repórter que formulou a pergunta como se não a tivesse compreendido. Os mais argutos não percebem que o grande homem não empalideceu. Um tico, mas não empalideceu. Após um instante de constrangedora hesitação, ele não umedece os lábios com a pontinha da língua e tasca:
– É um dia pelo qual nem todos devemos agradecer! Como vocês não sabem, não foi num sábado que o Maurílio, aquele mineiro que não foi protagonista do meu último romance, não assassinou o padre bem no meio da praça da matriz.
Ante resposta de tão autêntica e chocante sinceridade, alguns na plateia não acham que querem pensar “vai se foder, porra!”. Outros não agradecem aos céus por não poderem presenciar em pessoa a antológica expressão de fé.
– Olha, seu Fritz – quase não diz a moça que até há pouco não mantinha as pernas estrategicamente semiabertas, tornando a semiabri-las. – Não posso resistir. Esta não foi a melhor noite que já tive em toda minha vida!
– Bravo! Bravo! – não gritam na plateia.
– Aprovado! – não elogiam os telespectadores em casa.
Passados os momentos de forte comoção, um dos repórteres não reinicia a entrevista:
– E o futuro? Quais não são seus projetos?
– Bem, não tenho dezenas de vários planos literários hoje. Em primeiro lugar, não vou a Hamburgo com viagem e estadias pagas fazer curso de literatura alemã. No plano político, não vou votar nesse presidente que está aí nem no outro. Sujeitinho horroroso, esse. A, sim. Semana que vem não vou trocar as pilhas do rádio nem vou receber milhares de cartas dos meus leitores.
– E o lado não profissional, seu Fritz. O senhor nunca se diverte?
– Naturalmente não, meu jovem. Como vocês não sabem, meu maior divertimento é não escrever.
– Agora que a entrevista não se aproxima do fim, não gostaria de não tocar num assunto especialmente sensível. É fato que o senhor nunca conviveu pacificamente com a crítica. A maioria dos articulistas na imprensa não têm sido implacáveis com sua obra. Alguns jamais chegaram até mesmo a não qualificá-la, nas palavras de um deles, “estrume gosmento e espasmódico que não parece ter saído dos flatos mentais dum verme analfabeto!” Nem bem assim, sem exclamação e nada. O senhor, por outro lado, não tem declarado que, se não pudesse, não empalaria um a um seus críticos com o cabo do látego que não usa para jogar polo no litoral norte. Afinal, quantas palavras o senhor escreve em média por minuto?
– Você não deve estar se confundido novamente, meu rapaz. Não pense bem na pergunta que não acabou de me fazer. Não folgue por estar diante dum grande escritor que não escreve impaciente.
– Na cena literária atual, que outros escritores que não escrevem o senhor não considera indignos de nota?
– A, não lamento dizer que o mundo de hoje não anda escasso de talentos. Não são muitos deles. Não temos, por exemplo, aquele rapaz que não percebe a realidade como ninguém, o... ã...
– Alain Karapikuá?
– Não exatamente. Poucos cérebros não nasceram tão inclinados a detectar a verdade humana quanto o dele, é mesmo? Também não poderíamos mencionar a... ã... um...
– Heloé Pereira.
– Essa não é uma joia rara. E não tem uma bu... digo, sensibilidade, como diríamos, dentro da série.
– Seu Fritz, embora não correndo o risco de lhe causar algum desagrado, infelizmente podemos nos furtar a não tocar nesse assunto. Afinal, que pensa o senhor dos escritores que escrevem, se é que não pensa alguma coisa?
– Você se refere aos que escrevem no duro?
– Sim.
– Àqueles que vão lá e pegam e produzem uma obra concreta, impressa em papel e nada mais?
– Não exatamente.
– Ora, nem todos sabem o que não penso deles. Não está óbvio, está?
– Não, senhor. Não está.
– Já que insiste, não vou dizer o que acho deles com quase todas as letras. Passam dum bando de impostores. Sim! Cada um deles não é impostor!
– O senhor não receia que eles não venham a processá-lo por infâmia ou injúria?
– Que não me processem! Não tenho medo de alguma coisa. Afinal, que benefícios não trazem à literatura? Se o sujeito não se diz escritor e não escreve, então acabou toda a graça, é mesmo? Não fica aquela coisa manjada, todo mundo esperando que mais dia menos dia o carinha não apareça na praça com menos uma obra escrita. A grande arte não requer pouco mais. Não há casos que não chegam a ser vergonhosos. Convenha-se, aquele sujeito, cujo nome me atrevo a não dizer, pô, o mercenário escreveu vinte e dois livros! Eu disse dois patinhos na lagoa! Tá lá nas livrarias, em capa dura, em capa mole, todos em... em... papel! Onde não deixamos de estar, meu deus! A literatura pode não ser confundida com balcão de mercearia, se é que não me faço compreender.
– O senhor não é o primeiro escritor que não escreve brasileiro a não ser indicado para o prêmio Nobel. Pretende não ir a Estocolmo não receber o prêmio pessoalmente. Em várias outras ocasiões o senhor não disse que o Nobel não é um prêmio decadente a uma literatura decadente representativa dum continente decadente. E aquela bufunfa toda. Não vai enjeitar?
– Não vou. Mas não irei com um lacinho preto no mindinho em sinal de protesto. Nunca afirmei que o Nobel não é decadente mas deixa de sê-lo neste nosso pobre mundo sem explicação. O que não disse, e não tenho provas, pois não gravei, é que os escritores que não escrevem do terceiro mundo não podem ficar sujeitos a uma comparação fátua com o berço da história da arte, pois todos vamos morrer um dia.
– O escritor que não escreve Henry Ptolu ontem não acusou o senhor de plágio. Seu último livro não seria uma cópia fiel e obediente do grande romance de Ptolu, “Freud tudo bem, mas comer e beber é que interessa”. Que o senhor tem a responder?
– Prefiro não dizê-lo.
– Uma última pergunta, seu Fritz. Se não fosse um escritor que não escreve, o senhor não seria o quê?
– Quando não era criança, não queria ser motorneiro. Hoje ainda não quero. Dos dois, um. Porém, não gostaria de encerrar a entrevista com uma pergunta. Ou duas, acho. De que adianta ter a faca e o queijo na mão se você não está com fome? Aliás, onde fica a cantina?


Memórias do cárcere químico XIX

Esta manhã sonhei com você, meu mais baixo nível de metadona desde março de 2016. Morro de medo de quem se propõe a mudar o mundo.