Umpf!
para Joana D'Gleyse
O tempo passa (uma citação de Fiori Gigliotti não vai fazer mal além do necessário). E o
pessoal está cada vez mais jovem. Alguns chegaram quase a ninfetas e apolos.
A tecnologia, deusa da moda cultuada pelo novo ser do século 21, salvará
do inferno da velhice e da feiura a gente aditivada e seus estranhos
deslumbres. Basta uma visitinha ao consultório do cirurgião plástico, o mágico
confessionário em que revelamos nossa podridão, para que o doutor nos facilite
acesso ao reino da juventude.
Em 1904, quando sei lá quem escreveu Peter Pan, o menino que não crescia
(criança, me aterrorizava a ideia de não crescer), ainda nos contentávamos em
fantasiar, confinando nossos desejos mais proibidos ao pensamento. Peter Pan
não correu o mundo apenas porque teve uma mãozinha de Walt Disney. Como tudo
que sai da cabeça dum artista é o que ele vive embora se pense que invente, o
boyzinho eterno não poderia ter vindo à luz em outro século que não o 20,
quando se estabeleceu a ideia de indivíduo contra a do rebanho que existia para
servir ao deus prevalente até então. Nem Shakespeare no século 16 teria
imaginado um pirralho perenemente condenado à infância. O tempora o mores,
xará.
Fantasia hoje não basta ─ precisamos ser os protagonistas do nosso
próprio filme. Mais: precisamos ser nosso próprio filme.
─ Veja, doutor. Apareceu esta ruguinha aqui. E
outra aqui. Por que a vida é tão injusta comigo?
─ Calma, dona Marta. Nada em que o old good raio
gama não dê jeito. E pelos próximos trinta anos aplicamos de novo.
Enfim chegamos à cirurgia sem cortes, sangue e traumas. Gratificação
instantânea ou outra cirurgia amanhã. Eis a tão esperada abolição dos ditos
populares: pau que nasce torto não morre mais torto.
A essa altura ─ a altura em que nos preocupamos apenas com as rugas ─,
dona Marta já foi submetida a recauchutagem de cabo a, com perdão da palavra,
rabo: reduziu o naso italiano, afilou as narinas à la Michael Jackson (aquele
sui generis negro de cara nórdica, paradigma da sincrética Nova Beleza, que planejou
e executou o próprio suicídio praticamente ao vivo nas telas das tevês, num
ritual insano que se estendeu por anos a fio), eliminou pés-de-galinha,
cotovelos-de-foca e focinhos-de-porco, alisou papinhas e papões, diminuiu a
envergadura das orelhas, pôs um belo enchimento no queixo de Noel Rosa,
suavizou os pomos de Henry Silva (essa fica para cinéfilos mais
fanáticos).
Convenhamos: antes das 170 cirurgias, dona Marta era um belo dum canhão.
E só conseguira laçar seu Dudu porque seu Dudu também não era lá grande coisa.
Passada a metamorfose, aposentou o carão de bruxa, transfigurando-se num
escaravelho cibernético: rosto de pele retesada do Oiapoque à Marilena Chauí, olhar
estranhamente assimétrico à la Rita buarqueana e sorriso mais misterioso que o
da Monalisa, que, dizem as incansáveis más línguas revisionistas, na verdade
era travesti, judia, negra e ninfomaníaca.
A mãe de todas as conversões, porém, parece ser a que ocorre no pudor ─
ou falta dele ─ dessa gente transformista. Era engraçado e ao mesmo tempo
triste ver o paradigmático Mr. Jackson dando entrevista à imprensa. O rapaz
parlava, mirando a câmera como se fora o mais natural espécime animal do mundo,
casual, fuça andrógina coberta por máscara tutancamonense. Parecia pensar que
nós telespectadores temos um botãozinho mágico que automaticamente pulverizaria
de nossos cérebros a incômoda sensação de estarmos vendo o mais esquisito dos
alienígenas cuja semelhança com o ser humano nos causava um choque, mesmo que
não admitido. Ficávamos olhando encafifados, será que é gente? convictos de
estarmos diante do nosso bisavô tentando falar do passado através do que devem
ter sido nossas micagens uns cinco milhões de anos antes.
Na nova ordem do politicamente correto (nova historicamente; já quase
ultrapassada para quem nasceu ontem), dia chegará em que esse tipo de dúvida
será classificado como preconceito e nós duvidantes, permanentemente céticos e
abismados com as novidades que vivem pondo o mundo de ponta-cabeça, poderemos
ser processados e presos por não acreditar no que vemos (ou no que sentimos
(embora já estejamos sendo “alienados” há pelos menos uns cinco mil anos
sob o processo civilizatório)). A sanção ainda não está no código penal porque
os correcionais não decidiram que tipo de preconceito configuraria a ojeriza a
transformistas renegadores do próprio sexo e da própria raça. Bem que nossos
valorosos políticos podiam incorporar à Constituição um artigo permitindo que o
povo seja definitivamente feliz, proibindo terminantemente duvidar da
humanidade de quem quer que se autoproclame humano.
─ Voalá, dona Marta! ─ entusiasma-se o doutor,
equilibrando um espelho diante do nariz do camaleão. ─ Rosto novinho em folha.
E, de brinde, uma baita duma cara de pau!
─Ora, doutor. Não precisava. Essa ganhei de
nascença.
Nos meus tempos de criança ─ ou seja, quando as pessoas nasciam,
cresciam, envelheciam e morriam naturalmente ─, a mutação era privilégio de
deus e prerrogativa de ídolos de Hollywood.
─ Ava Gardner fez cirurgia para endireitar a boca!
─ anunciava o homem do Repórter Esso. ─ E Brigitte Bardot desenrugou as
pálpebras!
(Ainda éramos pudicos e omitiam as partes mais interessantes, as
pudendas.)
Arregalávamos nossos pequeninos olhos que nunca se cansavam do ofuscamento,
tentando clarear a densa mas ainda impoluta névoa que aquelas novidades
enfiavam em nossas cabecinhas caipiras. E “plástica” fazia soar um sininho lá
no fundo do poço entrevado em que vivíamos, passando a integrar os Grandes
Mistérios da Infância. Só marmanjo vim a ter ideia do que se tratava e acho que
mesmo hoje não entendo direito. E a misteriosa operação nunca envolvia alguém
que conhecêssemos pessoalmente ou uma prima distante. Era negócio de milhões de
dólares, conduzido em necromântica torre aveludada de Beverly Hills, métier exclusivo
das divindades do cinema e mil anos luz fora do alcance da baixa classe média
em permanente estado de deslumbre.
O resultado do fosso intransponível era que ficávamos impossibilitados
de fazer avaliações morais das ninfas transmudantes. E aquela gente pertencia a
outra dimensão, mundo que invejávamos numa boa: não temíamos que pudessem nos
destruir em nossa insignificância operária nem tínhamos a veleidade de almejar
àquele universo utópico, que ─ alívio ─ diluía as tormentas que chacoalhavam
nossos corações.
Não que em nossa vidinha sob o lema Trabalho e Dignidade não houvesse
lugar para frivolidades. Havia. Mas obviamente dentro do que em nosso meio era
tido como bom-senso. Às meninas e moçoilas em geral permitia-se maquiagem
segura e discreta que não transfigurasse o rosto da dona. A suave máscara de pó
de arroz devia protegê-la dum perigoso contato com sentimentos com que ela
talvez não soubesse lidar ─ e que, principalmente, não desse azo a ideias
malucas a nós, glutões sexuais que nada tínhamos de belos adormecidos. Olhando hoje
fotografias das décadas de 30 a 60, com mulheres de braços e pernas
rechonchudas e tetas túrgidas e lábios carnudos pintados de carmim, pedindo
para ser beijadas mas cientes de que a disciplina moral reinante impediria que
caíssemos na lascívia, mulheres elegantes e ao mesmo tempo apetitosas, sóbrias
e decorosas e ao mesmo tempo desejáveis, que nada têm a ver com a esculachada
fauna de hoje, maltrapilhas anoréxicas pulando feito saguis fornicadores de mão
em mão a cacarejantes e emperiquitadas assexuadas de indisfarçável aura de
eterna menopausa, hoje, vendo aquelas fotografias, pombas, penso, porra,
vivíamos à beira de vulcões congestionados de sexo contido mas nem por isso,
quando irrompiam, irrompiam nessa boçalidade pretensamente sensual que virou
praga.
Aquelas é que eram fêmeas, mon ami. A atual acessibilidade à beleza de
laboratório, facilitada pela liberdade de costumes, na prática, em vez de fazer
de nós seres mais livres, apenas acabou com o barato com que idolatrávamos as dríades
agraciadas pelos deuses genéticos com a sorte de nascer com carinhas de anjo.
Eu vivia caindo de amores por elas. Quando estava conseguindo me levantar,
vinha outra, me levando de novo para o meu solitário mergulho na paixão não
correspondida. Não ousava chegar perto das deusdedes. “Abordar”, jamais. A
beleza hereditária é como o gênio: nos perturba porque está acima de nós, inatingível.
De quebra, a beleza de laboratório dizimou os ideais estéticos perseguidos
desde os gregos até as vésperas da Semana de 22. (Oxente, terá Monteiro Lobato
tido razão?)
Quando os limites ainda não tinham sido excedidos e não nos achávamos
deuses, desesperados, egos hipertrofiados, peso intolerável, quando eu e minha
irmã ainda pedíamos benção ao meu pai e à minha mãe antes de dormir (até que um
dia meu cunhado, tendo ido dormir em casa e presenciado a cena que depois
qualificou de humilhante submissão, me chamou a um canto e ordenou, de hoje em
diante nada de benção, isso é coisa de criança, embora eu ainda tivesse uns
oito anos, já velho para a época), antes sabíamos que nossa vã natureza
guardava contradições intratáveis. Estas talvez pudessem ser ligeiramente
tocadas nos altos círculos da aristocracia culta, que sabe tintim por tintim o
que pode perder se confundir alhos e caralhos. Para a plebe que não tem onde
cair morta nem viva e para quem viver é ficar eternamente à espreita das
migalhas caídas das toalhas rendadas sobre as quais os ricaços celebram o
júbilo de existir, as contradições humanas deveriam ter continuado
intocáveis.
A ciência veio mostrar que tudo é possível. Freud acabou (psiquiatras e
neurologistas são ensinados a desdenhar do pai da psicanálise, produzindo mais
dúvidas que certezas num tiroteio feroz entre os que se proclamam herdeiros
genuínos e dissidentes por justa causa) com a conversa fiada de que a alma é
indevassável. A Revolução Francesa já provara que nem só os ricos podem ter
vida de rei. E a mídia (pulo a discussão hodierna sobre essa palavra; é
aplicável como qualquer outra) escancarou os portões do paraíso para os
plebeus, permitindo que roubassem o fogo dos deuses. Maravilhados,
resfolegantes, de olhos vidrados, a working
class passou a brincar com o fogo proibido e todos nos queimamos.
O humanismo democracista populista desencadeado pela Revolução Francesa
pariu a mosca azul que picou a caboclada. Em eras feudais, servos, cavalariços
e roceiros estavam satisfeitos em receber tratamento de mula e manter distância
dos mistérios do céu e da terra, obedecendo ao senhor e temendo a deus. A aia
que trabalhava vinte horas por dia no castelo, muito antes de fazer a redentora
bronha em Marx três vezes ao dia, provavelmente não reclamava da esporádica
enrabada infligida pelo patrão. Não havia opção. E também parecia não haver
alternativa à revolução burguesa. A grana produzida pelos descobrimentos, com o
perdão da palavra, abundava ─ as cortes tiveram de abrir para os novos
mercadores e deu-se então a degringolada.
Os bolcheviques perderam o foguete da história porque tiveram o azar (e,
para o resto de nós, a sorte) de a Europa estar metida na Primeira Guerra, que
determinou o fim do século 19, o declínio do Império Britânico, o fim dum ciclo
da Revolução Industrial e a ascensão do Império Americano.
Assim como a Francesa foi a culminância duma ordem que teve origem nos
descobrimentos, a Revolução Russa foi resultado natural das estonteantes
perturbações causadas pela Revolução Industrial e cujos espertíssimos
intérpretes e arautos incluíram Newton, Voltaire e, quem diria?, Marx e suas
geniais sacadas sobre os movimentos intestinos do capitalismo, juntamente com o
funeral do Classicismo e da obra integral, dos romances com começo, meio e fim
escritos sob as magistralmente insuperáveis e organicamente inteligíveis
sinfonias de Beethoven e, antes, das divinas fugas e cantatas de Bach, que ─
não pode haver outra explicação ─, lhe foram sopradas aos ouvidos diretamente
por deus, muito antes d'este ser diagnosticado morto por Kant, com certidão de
óbito testemunhada por Nietzsche. O Romantismo e sua angst existencial foram o reflexo mais discernível desse vendaval.
Marx, embora do escambau, conseguiu botar o dedo apenas em algumas contradições
da nova era ─ a reviravolta foi acachapantemente colossal, não dando sopa nem
para o igualmente colossal barbudinho que jamais imaginou que um dia estaria na
foto de cabeceira de Lulla, o Metalúrgico Deslumbrado. E, depois, ele, Marx,
também era humano ─ como todo bom patrão, precisava dar umas paradas para comer
a empregada que culturalmente ainda vivia sob o Feudalismo e condenar a
história a ser eternamente repetida.
Uma revolução que pegou a rabeira do destempero delirante de Wagner e
suas óperas quilométricas que tentaram unir o sombrio folclore germânico aos horrores
do mais trágicos dos séculos, que terminou em Hitler e inaugurou a nova era sob
os bills gates do Vale do Silício, uma revolução que perdeu o rumo sonoro sob o
anarquismo da música dodecafônica, contemporânea das dezenas de movimentos
estéticos que a cada dia se produziam na Europa convulsa tentando se firmar
exatamente quando Joyce, Proust, Kafka, Picasso e outros menos votados
iniciavam um retrato fugidio dos trilhões de pedacinhos em havia se convertido
a amorfia da realidade, procurando rugir quando Freud começava a demonstrar ─
para quem estivesse a fim de ver ─ que estamos longe de ser donos do nosso
destino (embora se tivesse inspirado literariamente nos anacrônicos insights seiscentistas
de Shakespeare, que por sua vez desencavara umas lendas imperecíveis da
mitologia grega), bem, essa revolução não podia dar certo.
O momento propício passou e a oportunidade não volta mais. Parece que a
luta de classes morreu na Paris de 1789, bem antes que Marx pudesse balbuciar “só
sei que não sou marxista”. A Revolução da Informação provavelmente botará um
fim na classe operária. Agora todos somos mestres, donos do nosso próprio
nariz. A internet, o celular e toda a tralha eletrônica nos concede a liberdade
absoluta de ser o que quisermos, onde quisermos, à hora que quisermos. Noventa e
nove por cento da fantástica e ao mesmo tempo soporífera “experiência” on-line
é lixo, claro, mas who cares? Cada um de nós tem o poder na ponta dos dedos,
mesmo que a maioria acabe sem dinheiro para pagar a conta do provedor depois
que a desenfreada corrida tecnológica abolir todos os empregos.
O mundo sem fronteiras perpetrado pela informática nos distancia dos
problemas que nos afligiam até ontem e que hoje retornam esporadicamente para
nos atormentar qual pesadelos longínquos. O delírio de grandeza vislumbrado por
Freud, a confusão entre querer e poder que invariavelmente nos faz quebrar a
cara na vida, está se pulverizando frente à mágica ciberespacial. O inventor da
psicanálise, provavelmente uma das três ou quatro cabeças dignas do nome no
século 20, está sendo “revisto” pelos ianques, que não estão a fim de ouvir
falar em limitações para o xaxado do homem na Terra. E, logo, no Universo.
Onipotência deixou de ser delírio.
─ Sabe duma coisa, doutor? Cansei de ser hetero.
Quero ser sapato. Quero, quero, quero!
─ Absolutely, dona Marta! Absolutely!
─ Como assim, absolutely, doutor? E escritora,
doutor? Posso também? Sempre me amarrei naquele ar blasé-chique da Virginia Woolf.
─ Não tem problema, dona Marta. Hoje em dia, com a
internet, qualquer um escreve a porcaria que quiser.
O zé-ninguém de hoje se pensa capaz de ter acesso à felicidade e
derivados tais como bem-estar, elegância, conforto, luxo, beleza. A democracia
irrestrita, confusa, sobrecarregada de direitos imerecidos porque não
conquistados a ferro e sangue como antes, que, imerecida, leva na conversa os cabeças
de vento de que a lei de Darwin foi finalmente abolida e podemos finalmente nos
assenhorear do mundo, com o bônus do prazer infinito como manda nosso
igualmente intratável senso de solidão, culminou na balbúrdia dos ismos do
século 20, o século da libertinagem e da falta de compostura. É claro que “compostura”
e termos que tais não foram incluídos entre a meia-dúzia de zurros que compõem
o linguajar dos semiliteratos libertários que reverberam nos meios de
comunicação e nas redes sociais e dos analfabetos que fazem nossas leis que,
juntos, nos impõe um inferno pior que o feudal. Para eles, na mais infame das
inversões de valores que ditam nossos destinos e seus rebanhos, nada é mais
natural que a felicidade absoluta e nada é mais legítimo que obtê-la a qualquer
preço.
Os próceres do paraíso podem passar a perna em Freud mas não em Darwin.
E nem interessa. Somos atochados desde criancinhas com quiméricos ideais
democráticos propalados a quatro ventos mas praticados apenas na medida que
beneficie o Poderzão com Maiúscula, aquele dos sarneys, lullas, collors e
quejandos, de cuja essência apenas Kafka logrou tirar uma fina ao transportar
as encrencas que arrumara com o pai para o plano mais geral da rupturas das
gerações em particular e dos relacionamentos humanos em geral. (Peço humildes
desculpas aos estruturalistas pela heresia de misturar a vida e a obra do sr. K.).
Enquanto Eles espargem a cortina de fumaça de que todos temos direito a
tudo, dezenas de worldtradecenters atulhados de crianças desmoronam todo santo
dia nos países pobres. Não bastassem os quatro de julho e sete de setembro e
todo o asneirol democrático-patriótico, agora temos de engolir a maldição do
onze de setembro, glória de numerólogos asnáticos e dos maníacos por
efemérides, apresentadores canastraços do jornacional choramingando a vileza
dos islamitas que ainda estão nas trevas das Mil e uma noites esfregando a lâmpada esperando aparecer do nada um
miraculoso gênio como provavelmente não seria possível esperar em outro país
sob qualquer outra civilização mais pragmática, horror dos herdeiros dos
comedores de biguemeque, porcalhões a atulhar oceanos de lixo, rios de metais
pesados e o ar com o perfume da morte, leitores de Veja, inventores do fogão de
acendimento automático que usaram duas cidades dos subservientes japoneses para
estudar os efeitos da bomba atômica sobre a população civil, escandalizados com
os selvagens mulçumanos e seu deus de araque, gente que obriga suas mulheres à
burca, que vive num plano espiritual sem efeitos especiais, que não conhece as
consequências da semana de sete dias de trabalho sobre as vilezas da realidade,
da disciplina e da capacidade protestante em vencer a natureza, primitivos que
fizeram picadinho dos magníficos duplos símbolos fálicos da América.
─ Veja só que bilauzinho, doutor! Eu queria era uma
bazuca, um míssil intercontinental... uma... uma... Coisa! Que a Marta
desmaiasse de ver. Que fizesse ela parar de sonhar com o negão frentista do
posto da esquina.
─ Não se preocupe, seu Dudu. Estas pílulas vão
resolver seu problema. De que tamanho estamos falando exatamente?
─ Hum... Uns quatro metros talvez. Que o senhor
acha?
─ Quantas cabeças?
Que mulçumanos, latinos, budistas, bramanistas e outras raças/religiões
dogmáticas que dão mais importância à castidade espiritual e à mitologia
religiosa que pararam no tempo há três mil anos que à conta bancária e uma
cozinha superautomatizada permanecem voltados para rituais tribais, adorando
totens e cultuando o tio de Maomé, estão fadados ao extermínio, é óbvio. Os
alemães, vivendo até a semana retrasada numa confederação de estados mais ou
menos independentes sob distintos níveis de encantamento letárgico produzido
pelo cravo diabólico de Bach e o sublime, demolidor piano de Beethoven, tiveram
de levar duas monumentais sovas para esquecer a busca do ideal grego da beleza
e entrar rapidinho na corrida tecnológica (tecnicismo que Hörderlin já
criticava nos alemães de seu tempo) antes que fossem deixados para trás pelos
americanos com sua congênita vocação para “fazer” dinheiro e com ele acumular
poder e desenvolver tecnologia para garantir o conforto tão merecido pelos
conquistadores modernos.
O pragmatismo americano, insondável para os outros povos, desabrochou na
Guerra de Secessão sob a civilização saxã e a ética protestante do trabalho
sacada magistralmente por outro cabeça do século 20, Weber, cujas ideias são
anátema no nosso tolamente libertário Berção, cujos universitários, eternamente
resolvendo os problemas do mundo com as barrigas flácidas encostadas em balcões
de botequins, copo de cerveja na mão lisa de quem nunca pegou no pesado,
maldizendo o infortúnio da senzala e fazendo greve contra cortes das verbas que
irão sustentá-los num futuro próximo quando entrarem para o funcionalismo
público, enquanto um pistolão amigo de papai não descola a vaga de escriturário
na caixa econômica, onde ele, o universitário esquerdista, vai coçar o saco até
morrer, metendo a mão na grana que não é dele sempre que surgir a oportunidade
enquanto se prepara para ingressar num partido e repetir as práticas de
gatunagem aprendidas na universidade, bem, o pragmatismo americano se
consolidou na Guerra de Secessão sob o ar fresco da nova terra onde podiam
fechar os olhos para o fardo cultural-histórico da Europa ainda sufocada pelo
ranço da queda do Império Romano e as sucessivas encrencas que aparentemente
nunca se resolveram, com a eterna pendenga França-Alemanha-Inglaterra e, em
menor escala, Itália, útero do Império e onde os primeiros efeitos dos
descobrimentos resultaram no Iluminismo pós-auge do poder político supremo da
Igreja. O século 20, que começou a despertar na Revolução Industrial inglesa e
amadurecer em 1865 nos EUA, não podia esperar. A Guerra Civil americana, que estabeleceu
de vez a unidade e a identidade do país, durou quatro anos e matou mais de 600
mil soldados (ou 10% da população economicamente ativa), com bestialidade para
nenhum Gêngis Khan botar defeito, a quase concomitante guerra austro-prussiana,
igualmente decisiva para a unificação alemã, foi batizada de Guerra das sete
semanas e consumiu pífios 30 mil, entre alemães, austríacos, italianos e
húngaros, enquanto do lado debaixo do rio Grande a também concomitante Guerra
do Paraguai, travada por seis anos, dizimava 90 por cento dos homens paraguaios.
Uns vinte anos antes da Guerra Civil, os EUA tinham abiscoitado do
México nada menos que o estado do Texas. Os tataravôs de Carlos Fuentes, Chaves
e Quico já haviam vendido o Norte da Califórnia para os ianques, mas bateram o
pé quando estes disseram que também estavam a fim de um dos maiores depósitos
de óleo do planeta. Em dois anos o papo estava resolvido.
Será que teríamos enfiado o Paraguai no bolso e aberto uma comunicação
com o Pacífico, engolindo o Chile se preciso, se fôssemos como os americanos?
quem sabe estendendo o império brasílico até a Terra do Fogo e, aproveitando o
embalo, anexando as demais republiquetas, viveiros de miseráveis manipulados
por espertalhões de ONGs financiados com muita grana por canadenses, americanos
e europeus que precisam descontar imposto de renda em programas sociais e
sustentação de matas em perigo de extinção no Terceiro Mundo?
É curioso o desconhecimento quase total de nós não estudantes e não
historiadores brasileiros sobre a guerra que travamos contra nosso vizinho hoje
entreposto comercial da China. Os ianques, em estado permanente de devaneio
militarista, ano a ano produzem bateladas de filmes e livros sobre a Guerra
Civil que dividiu os estados nortistas e sulistas. Nós não ousamos falar do
nosso passado bélico. Para eles é um passado de glória. Para nós, inexistente.
Os Estados Unidos se metem em algum tipo de guerra há 150 anos. Não
pararam mais quando sacaram que podiam se tornar império numa relativa maciota.
“Incorporaram” o belicismo. “Veterano de guerra” faz parte do cotidiano deles
como “o luar do meu sertão” para nós. Eles têm veterano da Segunda Guerra,
veterano da Guerra da Coreia, do Vietnã, da Guerra do Golfo e já da Guerra do
Iraque. Não se avexam nem mesmo de ter invadido Granada. (Quem sabe em algumas
décadas terão também veteranos da Guerra do Brasil, quando finalmente decidirem
acabar com o carnaval na Amazônia, que caboclos incompetentes estão dizimando à
desertificação.)
Enquanto isso, o que ocorre na Europa? Há algum tempo um punhado de
agricultores gauleses com bigode de Asterix atiraram algumas pelotas de queijo
de leite de cabra contra a vitrine dum Mcdonalds no interior da França. Devem
ter se imbuído do mesmo espírito com que cantaram a Marselhesa enquanto os
chucrutes atravessavam desdenhosamente o Arco do Triunfo para ocupar Paris em
junho de 1940. À parte torcerem o nariz para o incontornável domínio do inglês
no mundo e terem se escondido atrás da Comunidade Europeia e da Alemanha quando
peitaram a agressão americana contra o Iraque, tudo que os franceses produzem
de importante no mundo são intelectuais que vêm aqui bajular Lulla porque se
amarram num sindicato que garanta a todos os xeiques sindicalizados direitos
eternos e aposentadorias incomensuráveis sustentadas por vassalos e odaliscas
tropicais sob apoplético ataque carnavalesco. (Quando o peetê ganhou, franceses
fizeram fila para homenagear o barbudinho e os “novos tempos”. Chô, frogs!)
Eis que a China assomou no horizonte. Provavelmente em 20 anos serão os
novos mandarins dos reinos entulhados de lixo e oceanos assoreados de dióxido
de carbono. Até lá a execução de criminosos e dissentes políticos pela bala na
nuca talvez esteja implantada mundo afora. Seria bom ou ruim? Não tenho tempo
nem vontade de decorar aqueles três mil ideogramas da língua deles. Comecei a
aprender inglês, o idioma mais moleza que há, aos cinco anos. Não quero saber
como se diz bom dia em mandarim. A simplicidade do inglês decerto azeitou o
predomínio político, econômico e cultural americano. Talvez devêssemos começar
a rezar para que os chinas tenham tempo de fazer em 20 anos todas as revoluções
que culminaram no Ocidente que conhecemos hoje. Não acho que dona Marta e
congêneres se dessem o luxo das 170 plásticas sob os novos patrões de olhinhos
puxados ávidos por macaquear a América, absolutamente indiferentes à emporcalhação
do planeta. O deus cristão talvez esteja dando graças a Kant por tê-lo matado ─
Ele não seria páreo para o Buda comunista.