Os ensimesmados

Somos os ensimesmados.
Tão ensimesmados, que, além de viver voltados para dentro, não fazemos conta de dar explicações supérfluas.
Não damos conta de muitas outras coisas. Pois somos os ensimesmados.
Vivemos tão embebidos de nós mesmos, que não damos importância às nossas redundâncias. E, tem hora, ficamos tão, mas tão ensimesmados, que ficamos martelando para nós mesmos que somos ensimesmados sem sequer perceber que estamos martelando seja lá o que for para nós mesmos ou para quem quer que seja.
No mundo, formamos um time.
O time dos... ensimesmados.
Você, obviamente, já deve estar rindo por dentro – e se não for dado ou dada a pudores, até mesmo por fora.
Que maravilha! você está se divertindo. Um time composto de membros que não tomam conhecimento uns dos outros.
Se pensou isso de fato, me regozijo. Pois acertou na mosca.
Vou avançando pela calçada. Cabisbaixo, como gosto de avançar pelas calçadas do mundo. Totalmente antenado nos meus próprios pensamentos. Completamente alheio ao que se passa à minha volta – sempre tomando o cuidado, claro, de verificar, a cada dois ou três minutos, quais diabruras Zezeí, minha mescla de dobermann e chiuauaua, anda aprontando pelo mundo. Se me certifico então de que nem ela nem nenhum transeunte corre maiores perigos do que é lícito correr nesta vida, prontamente reassumo meu auto-embebimento. Às vezes retomo o fio de onde parei antes da inspeção, outras simplesmente me entrego àquele a quem tenho me entregado desde que nasci sem precisar erguer os braços em sinal de rendição – eu mesmo.
Vou avançando pela calçada. Cabisbaixo, como gosto de avançar pelas calçadas do mundo. O treino de ensimesmado veterano me permite perceber, pelo rabo da orelha, que Zezeí me acompanha a distância segura uns três passos atrás.
De repente cruzo cum vulto. Prendo a respiração para não sentir seu cheiro. Nunca se sabe. Poucas coisas me dão mais repulsa que cheiro de estranhos na rua. Cheiro de certos conhecidos onde quer que seja é uma delas. Sigo em frente, o vulto segue em frente no sentido oposto.
Com base em minha reputação que bocas maledicentes andam enxovalhando pela cidade, você na certa está a imaginar que só me dei conta do vulto porque este pertencia a uma ninfa matinal recém saída do banho com sais de ervas e olivas gregas. Cujo aroma devastadoramente embriagador eu não deixaria de sentir mesmo se travasse as narinas cum pregador plástico.
Se foi isso que imaginou, lamento lhe informar que se enganou.
Continuo avançando pela calçada, cabisbaixo coisa e tal. Atrás de mim ou à minha frente, na mesma calçada ou na do outro lado da rua, os que me olham não notaram nada de anormal em minhas feições ou de diferente em meu andar.
Quero crer que você saiba a razão.
Dou mais uns trinta segundos, estaco como raramente tenho estacado, dou meia-volta.
Lá longe o dono do vulto, vejo sem surpresa, me imita. Não, não é imitação de papagaio e sim mero ritual  de quem não é afeito a rituais.
Ele imediatamente desfaz a meia-volta, retoma seu rumo.
Faço o mesmo.
Foram dois segundos, no máximo, três. Insuficientes para coletar informações mútuas. (Devia aqui dar graças a deus.)
Não sei se ele é apreciador dum gole ou outro ao longo da tarde, no crepúsculo do dia, ao cair da noitinha. Se for, talvez nos cruzemos por um buteco da vida. Se for, talvez troquemos impressões sobre isso e aquilo diante dum balcão a fervilhar dessas mariposas ávidas por experiências inusitadas que são os ébrios. (E às que entregam de bel prazer suas existências que, aos olhos dos que os olham lá da rua, parecem inúteis.)
Você está esperando um desfecho, bem sei.
Você é desses, você é dessas que esperam, e esperam desfechos.

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