Insuficiência lírica II

PSIU!
Nos conhecemos?
Me desculpe a pergunta ambígua.
E direta.
Sou dos que falam na lata.
Andei sumido?
De onde?
Desisti?
De quê?
Poderia supor que você está se referindo a alguém.
A alguém com quem já viveu uma história.
Mas hoje não vou supor nada.
Hoje não serei de suposições.
Se supusesse, suporia que nos conhecemos.
E assim poderia lhe dar um alerta:
Cuidado: transmito germes.
Não muitos. Dependendo do dia, distribuo vírus, espalho bactérias.
Dependendo da noite, vermes.
Num deles me amarro pacas:
O da ideia da morte.
Meu poeta preferido, obviamente, é Augusto dos Anjos.
Como Augusto, me obceca a extinção (a de mim, a dos outros).
Bem como a aniquilação, a destruição, a deterioração, a devastação, a ruína.
Cuidado! É verme invasivo.
Quem conversa comigo por meros dois minutos já sai por aí, por lá, por todo canto cantarolando alegremente as delícias de esticar as canelas.
Tenho outros defeitos mil, bien sûr.
Um deles, essa mania de proferir umas obscenidades.
E sabe o que é pior?
O pior é que profiro obscenidades só pra escandalizar.
No fundo, e no raso, sou um moleque.
Com todas as desvantagens que moleques têm: irresponsabilidade, frivolidade, crueldade, irreverência, vaidade, amor por caprichos, astúcia, arbitrariedade, idade, ade, ad.
Como estou bonzinho esta noite, vou superar minhas deformidades de caráter só por um instante:
Cuidado!
Sou, acima de tudo, eu mesmo.
E quando sou eu mesmo, saio por dentro de mim procurando poesia.
E fazendo.
Ou tentando.

Da série "Lições que não sei aprender" II

Como meus quase quatro leitores sabem, antigamente tinha amizade cum morto, agora resolvi descolar um vivo pra bater uns papos now and then, só pra variar. Não que ache que seja necessário variar, vocês me conhecem. Variar o quê? Pra quê? De que lado? Pois é. E afinal não só variar é desnecessário – tudo é. (Desnecessário, hehehe. Ando tão alegrinho ultimamente. Será efeito do vivo? Bah, claro que não. Lembro direitinho quando me relacionava com eles, não sentia diferença nenhuma (ou alguma, como quer o Prof Pascoalino Nenhuma Beleza. Professor é assim, acham que tudo obedece a alguma regra, norma ou padrão. Se não obedece é porque a ciência ainda descobriu qual padrão, regra ou norma rege a desgraça. Essa mentalidade mesquinha dos professores advém da necessidade de redução metafísica do homem (e de algumas mulheres). Vocês na certa se lembram doutro dia quando citei Gore (que nome, mon dieu) Vidal, para quem “Carter, engenheiro, foi um dos piores presidentes dos EUA porque se entregava aos detalhes tentando fazer com que fizessem sentido”. Pra variar, na mosca. (Não que variar etc.) Fazer sentido é tudo, ou quase, pra nossa cacholinha oca que não tolera o vácuo. Sofremos da compulsão a explicar, aquele papo quando Nhoghimã escutou uma trovoada pela primeira vez na vida, e no mundo, e já arrumou uma razãozinha básica pro “fenômeno”: eram os deuses. Os deuses estavam brabos. Notem que Nhoghimã já entrou no politeísmo de sola. Podia ter pensado “o deus está brabo”, mas aplicou um coletivo que era pra se irmanar com seus chegados Quncundasida, Orencadelontenho, Ogitoueroitis e Amutaqum e seus primos Civosilivam Itiemom, Mialegho, Paiado e Copasogeresas e sua tia por parte de mãe Crousosivios (tudo bem, parece nome de homem mas há 15 milhões de anos nossos avôs e avós não eram sexistas ainda). O coletivismo é outra compulsão de que sofremos. Não toleramos a solidão. (Quer dizer, só estou usando o majestático porque sou um sujeito educado. De minha parte não só tolero a solidão como não aguento gente por perto.) Daí essa tendência horripilante de nos vermos quase obrigados a imitar tudo, ou quase, que os outros fazem e quase tudo que os outros dizem. Obviamente não vou deixar passar essa sem dar uma das minhas cutucadas nos robozinhos facebookianos. Os robozinhos estão todos lá, palrando o eterno blablablá, clicando no eterno botãozinho, exercendo a glória da vida digital, reagindo exatamente como os programadores do Mark querem que reajam. Ou seja – e aí está o horror –, replicando exatamente a mesma experiência qual um imenso exército de clones destituídos de vida interna própria. Os robozinhos facebookianos escrevem lá umas bobagens ou repetem uma boutade sei lá de quem ou duplicam uma fotinho que viram sei lá onde e assim imaginam que estejam exercitando pelo menos alguma individualidade num ambiente absolutamente impessoal e totalitário. Logicamente, não estão. Se estivessem, a desgraceira viraria uma balbúrdia. A uniformidade é o primeiro quesito para que a porcaria funcione. E lá vão todos se entregar alegremente à robotização. Será que devo fechar aqui aquele parêntese que abri lá encima? Por dias das vúvidas, digo.)
Tinha jurado a mim mesmo não cair de novo nesse assunto do face mas adoro quebrar minhas juras. Na próxima vou prometer e fazer como a Dilma, quebrar esplendorosamente, deliciosamente, magnificamente cada uma das promessas feitas. Pra mim é patente o prazer do monstrengo ao infringir uma norma social importante como essa. Lula nem se fala. O maior orgulho do Lula é ser, e se mostrar descaradamente, um porcalhão. Tenho quase certeza que o boçal só não parte para atitudes extremadas como a escatologia porque seria transgressão inaceitável mesmo para os primários que votam nele. O maior barato de Lula é zombar do país, pisotear os pudores e os pruridos das classes médias. Lula já se declarou aideológico mas não é tão simples assim. Cultiva, cultiva “com carinho”, para usar uma expressão dileta sua, o ódio aos abastados. É um ódio fundamental, que faz parte dele qual um órgão vital, um ódio nascido na primeira infância quando cruzava com os mais afortunados e sacava meio subconscientemente que os dados não lhe tinham sido favoráveis. Provavelmente prometeu a si mesmo – e essa promessa vem cumprindo religiosamente – que nunca perdoaria os bons vivants. Foi ali que decidiu desempenhar o papel de vítima eterna. Isto está estampado naquela carranca amarga que não se desfaz nem quando ele ri. Imagino que muitos de seus eleitores e devotos se identifiquem com ele por aí. Uma das maiores curtições do brasileiro é se vitimizar. Muitos não dão lhufas a conceitos civilizados, ou mesmo sofisticados, como dignidade. Estão se lixando para o mau julgamento que os bons vivants possam fazer deles. Como Lula, são arrogantes mas não altivos. Têm a arrogância característica dos ignorantes e dos broncos. Esta estampa, agora quem a ostenta exemplarmente é Dilma. Dilma e sua rispidez preventiva, rechaçando sumariamente todos os approaches alheios para não acionar a reação errada. Mesmo assim, é o que mais acontece com a pobrezinha. É a pessoa mais perdida que todos os brasileiros vivos teremos conhecido em nossas curtas existências de capachos do poder.
Tinha jurado a mim mesmo não cair de novo nesse assunto etc mas sei que não consigo. Como deve estar patente, me amarro em analisar os psicopatas que nos governam. É uma maneira de me vingar e tentar preservar algo da minha sanidade. Porque, pombas, o sanatório geral ficou ainda mais maluco depois dessa gente no Planalto. E pra falar de política tenho outro blog, vocês sabem. Faço o possível para não misturar um e outro mas está ficando mais e mais difícil – os temas se aproximam, se conjuminam, se embaralham e se confundem, exatamente nessa ordem. Alguém disse que somos o que pensamos?
Tô saindo hoje cedinho com minha bendita Zezeí, de quem minha dependência afetivo-emocional cresce a olhos vistos (isso que dá querer meter banca de lone ranger (ou lobo da estepe pros mais literários), você acaba tratando cachorro feito gente e querendo ser tratado feito cachorro), dou de cara com ele.
Ele quem?
Como expliquei acima, o vivo.
Assim que me avista, o vivo ergue o antebraço e parte pra cima de mim com a mão estendida. Esse vivo é um pouco diferente dos demais porque não se deixa impressionar com esta minha carona francamente inamistosa. Esses são os mais perigosos, claro. Atropelam olimpicamente tua primeira linha de defesa, te obrigando a depender apenas com tua retaguarda. Embora possa não parecer pra vocês aí de longe, tenho uma retaguarda até que bem montada e relativamente robusta, com recursos de procedência reconhecida no mercado e que, dependendo da escaramuça, podem ser empregados em posições e funções improvisadas.
Estendo a mão e aperto. O bestão esmaga meus dedos que nasceram para interpretar Bach. É, ô santo deus amado, desses para quem um aperto de mão másculo não deixa dúvidas quanto ao caráter do sujeito. E eu que, ao acordar, pensei que este dia não seria medonho como todos os precedentes.
Tudo bem? pergunto, logrando dissimular a má-vontade neste meu vozeirão eternamente sonolento.
O filho da puta não responde. Ao invés disso, se agacha para fazer agrados em Zezeí.
Vocês devem manjar o tipo. É daqueles “simpáticos” totalmente voltados para dentro. Tenho quase certeza de que não prestaria atenção em minhas palavras nem se o mandasse tomar no rabo. Pior: seria capaz até de registrar meu insulto e fazer de conta de que nada de anormal havia acontecido. Jesus, tenho autêntico pavor desses.
Fico lá parado no meio da calçada enquanto ele adula Zezeí. Sempre que encontro gente que se põe a paparicar minha cadela me pergunto se há alguma segunda intenção na jogada. Será que na verdade o sujeito quer bajular a mim por vias indiretas? Ou estará simplesmente fazendo média? Se estiver, pra quê? Que vantagem ele acha que posso lhe oferecer? Que é que esses diplomatas natos da vida e seus sorrisinhos obsequiosos querem tanto de mim afinal? Não tenho nada que lhes possa interessar. Sou remediado, ensimesmado, não tenho amigos e muito menos “contatos”, “canais” ou porcaria que o valha, não conheço ninguém em posições estratégicas no mercado, sou apenas um sujeito tentando dar a volta no quarteirão com sua cachorrinha que, aliás, é tão antipática quanto o dono.
Então me ocorre pensar no futuro, fico amargurado, a perspectiva é sombria, esse parece mais vivo que os demais, ai que saudade do morto.

Fresta

Vidro sorridente
Última das bocas beijáveis
Raio que pode
Estilhaçar-me
Não há arame farpado
Vesti meu melhor pijama
Pra te receber esta
Noite
(, (mãezinha))
Estátuas no cruzamento
O tempo sopra um assobio desafinado
Por infinitamente menos te
Matei em meu sonho

Ainda sei farejar uma rosa

Tá bom, vou te dizer
Pára a Terra
Dá um fim em todo mundo
Pronto
Só nós dois agora
Me dá tuas mãos
Olha nos meus olhos
Como se a Terra nunca tivesse parado
Como se todo mundo ainda estivesse aqui
E nós dois não pudéssemos nos dar as mãos
Nos olhar nos olhos
Escuta
Vou te dizer
Aperta minhas mãos, enlaça meus dedos
Não olha meus lábios
Só escuta as palavras

Se ela se chamasse Ana seria tão mais fácil

exótico sono
de espantos
e inspiração
a única qu'importa
é a beleza morta
que a dor conforta
além das palavras
a escorrer em
dilúvios ausentes

Até quando terei medo de virar fanático, Susan?

A primeira coisa que se faz é o que sempre se faz ao chegar a uma cidade que não se conhece: se para numa das esquinas mais agitadas da rua principal, o rosto forja cara de quem não quer nada e as costas se arrimam contra um poste.
O centro está quase todo ocupado por uma feira de artesanato inspirada nas feiras paraguayas, muita cerveja servida em canecões avantajados e comida a dar c'o pau. Vendedores tentam chamar aos berros a arredia atenção dos turistas, mas todos continuam indiferentes seus caminhos como se os ambulantes e suas barracas não estivessem ali. Aí, freguês, aproveita que tá barato. Amanhã, responde a boca, pensando a cabeça, amanhã, pois agora temos um compromisso que não podemos adiar. Assim que pensamos, passa por nós um Toyota em baixa velocidade, no volante uma mulher duns 22 anos. Alguém ao lado exclama, olha! é a jornalista Sílvia – Sílvia que está cansada de caçar boatos e perseguir fontes, sempre em busca de furos. Sente-se sozinho, sem chance de ter um diálogo construtivo com ela. Vive-se em guerra, esgaravatando incessantemente os pontos fracos um do outro. Ontem ela riu dos pêlos nas orelhas. A voz respondeu que as tetas delas começam a desistir de lutar contra a força da gravidade. Tchau, precisamos ir, um maluco botou dinamite embaixo da mesa da sala e está ameaçando explodir o apartamento. Quando Sílvia sai, tem-se vontade de ir atrás feito um cão de guarda. Mas a culpa é nossa, acostumou-se ela assim. Olhe, benzinho, estamos vivendo a mais sem-graça das comédias, somos tão ridículos quanto um casal formado por girafa sem pescoço / porco obsedado por limpeza. Vamos parar de fingir que continuamos deslumbrados com o que pudemos tirar dessa Merda. Vamos parar de avançar lentamente pro matadouro.
Colada ao poste há uma propaganda duma escola de tiro. Sabe-se que você nunca viu propaganda de escola de tiro, ainda mais colada a um poste no centro da cidade, mas que há, há. Diz assim: “Aprenda a atirar em apenas quatro aulas. Você logo estará apto(a) a disparar do seu próprio veículo (se tiver um Miata vermelho, então fica até mais fácil), desmontar um FAU em 15 segundos, abrir fogo deslizando pelo corrimão da AML e eliminar até 53% dos acadêmicos rebelados no salão de chá. Empreitamos mão-de-obra por hora”.
Enquanto leem o anúncio da escola de tiro observam discretamente os olhos o rebanho de transeuntes. Até que ele, tipicamente insondável como todos os dias, dobra a esquina e atravessa a rua.
A mão tira rapidamente a agenda do bolso esquerdo do paletó e anota o telefone logo abaixo do número daquele jogador de basquetebol que se conheceu ontem na cidade vizinha. Em cima do número do jogador os olhos veem que se anotaram outros dois números: o do entregador de cerveja clara e pouco malte do Paraguay e o da balconista daquela loja de gravatas daquele shopping de belô.
A balconista era oriental. Origem indecifrável para si. Engraçado como você não consegue identificar o país de nascimento de certos orientais, não é?
— Você faz parte do programa? — pergunta a voz cruzando a garganta e acionando a língua, os lábios e a boca como um todo.
— Faço — ela. — Quer experimentar?
Os olhos olham em volta, meio confusos.
— Temos um provador especial aqui no fundo — ela, apontando.
Tudo bem — os ombros se encolhem e tornam a se estender.
Ele pega e conduz a mão até os fundos da loja e abre uma cortina pesada de linho. Atrás da cortina uma banqueta na qual ela senta, puxando as nádegas até aproximar o ventre de sua boca. Apalpa o saco sem olhar o rosto. Vê que não acontece nada, apalpa novamente. Abre o zíper das calças, expõe a rola mole.
O número de orientais trabalhando como reerguedoras de rola é cada vez maior nas principais cidades. As makakitas vêm tentando imitar a técnica, mas não chegam nem perto. A oriental não chupa, masca, não faz da boca um anel mecânico e inflexível, ativa diversos pontos dos lábios simultaneamente, dando à rola a impressão de estar numa linha excitadora industrial. O trabalho da língua é crítico, serpeando na base próxima ao saco, chamando tua Próstata, convocando teu Cu para uma união bestial e sagrada. O melhor de tudo é, quando você goza — se conseguir, claro —, ela engole como se estivesse sorvendo Choquito, sem o mais leve sinal de nojo, depois te olha pedindo mais. Algumas te fazem acreditar que podem morrer se você não for suficientemente magnânimo para provê-las com as vitais vitaminas da tua Porra gosmenta redentora perfumada de proteína.
Tão logo anota o número da escola de tiro, a mão fecha incontinente a agenda, pois o cérebro sabe que na página ao lado tinha a mão escrito, naquele mesmo dia, algumas horas antes, em letras graúdas — bem graúdas mesmo — um lembrete: “Não fique possesso. Lembre-se de que você age sob efeito de sentimentos primitivos e memórias irrecuperáveis. O olho de Deus tudo vê. Não vá cometer nenhum crime”.
Os olhos olham para o outro lado, de novo a cara emite sinais de quem não quer nada. Assim que o morador típico e insondável de todas as cidades passa por si, segue-se atrás dele, tornando a mão a enfiar a agenda no bolso.
Talvez seja um pistoleiro. Entusiasmadas apertam as pernas o passo procurando combater a cabeça pensamentos que teimavam em emitir um alerta de que aquele pode ser o dia mais desastroso de toda a vida. Quem sabe mesmo da cidade. (Sabe-se que você vai achar que é exagero. Que ache. Que se pode fazer?)
Persegue-se o morador por mais ou menos meio quarteirão, quando subitamente ele toma uma atitude que para si naquele momento parece totalmente estranha: torna a atravessar a rua retornando para o lado de onde viera.
As pernas ficam indecisas. Deveriam insistir com aquele sujeito ou esperar outro?
Os olhos olham em volta. Há um poste a uns três metros de onde as pernas haviam parado. Vão as pernas até ele e recostam-se as costas, dobrando-se o joelho direito e descansando o pé lá. Alguns minutos se passaram enquanto se pospesava contraaliviano. Se continuasse aquela perseguição provavelmente terminaria tudo em algumas poucas horas pois aquele morador levava jeito de ser vendedor ambulante e vendedores ambulantes são o que são. Mas isso também faria com que aquela recomendação escrita em maiúsculas na agenda ficasse martelando estridente dentro. (E, olhe, esse tipo de martelação às vezes deixa o bicho realmente louco, pode crer.)  Por outro lado se se desistisse agora poder-se-ia curtir o azáfama do centro da cidade por mais alguns instantes. (Reconhece-se, é sacanagem recorrer a truque tão rasteiro, ainda mais contra si mesmo mas, sabe, às vezes não se resiste pois também si é humano — mesmo não pareceno.)
Um dos mais deliciosos prazeres da vida é ficar pesando prós e sopesando contras. Raramente o cérebro perde a oportunidade de. Se põe absorto assistindo as parábolas da hesitação se insunuando arredias querendo formar curva definitiva mas retornando ao ponto de partida e reiniciando o percurso, às vezes se bifurcando em novas pontas que pelo turno delas também se bifurcam, trifurcam e retrocedem feito raio cegante que lampeja clareando a noite escura, voltando então com mais ímpeto e com mais ímpeto tornando a se retroceder para reiniciar mais uma vez seu trajeto imprevisível até que pá.
Você pode estar imaginando que na na indecisão acabou-se perdendo o morador de vista. Descanse. Não se perdeu não. Os olhos ficaram grudados na camiseta amarela que ele veste. Para facilitar o trabalho a camiseta tem estampada às costas a inscrição “Polícia Secreta!” (sim, com exclamação) em garrafais letras pesadas vermelhas de bordas escorridas como se do pincel que as pintou pingasse excesso de tinta almejando primeiro prêmio na extinta bienal de SP.
Acha-se nesse afã ora vigiando os olhos o morador que a qualquer instante pode virar uma esquina e se perder definitivamente da vista ora atentando os ouvidos a outros transeuntes que possam identificar como perseguidos potenciais, quando se dá conta de que se está parado exatamente diante dum cinema.
As pálpebras cerram-se prontamente se crispando forte e o cérebro pensa “não vamos olhar o cartaz! não vamos olhar o cartaz!”. Mas o infeliz sabe que a tentativa de forçar os olhos a se abster de olhar será vã. Os olhos jamais — repete-se, jamais — resistem a um cartaz de cinema. Said & done. As pálpebras se abrem e pumba. Lá está o título do filme: “Meu, não demore muito”. Naturalmente acha o título o cérebro assaz interessante e entram as pernas.
(ATENÇÃO ESTE FILME NÃO FOI INSPIRADO PELA AIDS NEM PELO EBOLA. DAFUR: QUE ISSO. E OLHA QUE O INGRESSO TÁ BARATO. VOCÊ NÃO VAI ACHAR POR MENOS POSSIVELMENTE. BEM, BOTA A PANELA DE PRESSÃO NO FOGO QUE JÁ TÔ INO. O CHAVEZ VIROU PASSARINHO, VERDADE?)
Mas eis que avisto outro. Este levava jeito de cúmplice de roubo seguido de assassinato. O torso, as tíbias, as coxas, os pés, fica tudo indeciso.
Esses momentos de indecisão doem feito cólica de rim. Qual seguir?
Então para nossa sorte vimos alguém que nos tirou do nosso dilema: a vítima. Estudei seu rosto e percebemos que, mesmo semiconsciente, se dirigia ao hospital.
Estava acompanhado da esposa, alcoólatra que fazia tratamento para tentar se livrar do vício.
Alguns metros atrás do casal seguia outro homem. Precisei de apenas um segundo para ver que se tratava dum colega de trabalho da vítima. O colega fazia anos esperava a morte da vítima para lhe tomar o cargo na firma pois que se tratava de posto de diretoria com altos salários e benefícios adicionais. Os olhos olham para a vítima e percebo que teria de submeter-se a lavagem estomacal.
Nesse momento passou outro homem que nos fez desistir imediatamente da vítima e da sua esposa e do seu colega. Era um ex-pugilista. Tipo durão, rosto deformado pelas porradas, couro grosso qual de jacaré. Passara a infância numa favela e aos oito anos fora atingido por bala perdida. O disparo não causara danos físicos irreparáveis. Pegara apenas de raspão. Mas o suficiente para o futuro pugilista, mesmo imaturo e inexperiente, decidir que não valia a pena levar a vida a sério.
No dia seguinte ele sumira do barraco onde morava com a mãe e oito irmãos fugindo para a zona de meretrício. Perambulou uns dias resolvido a escolher a dedo uma prostituta que lhe satisfizesse todas as fantasias sexuais.
Mantendo os passos ainda apertados avancei uns cinco ou seis metros adiante do pugilista e o ultrapassei. Quando o cérebro achou mais ou menos seguro apanhei o diário que trazia no bolso direito do paletó. Voltei-me ligeiramente para a parede e simulei um ar perdido. Ergui o diário como fosse ler um conto do Jack London e abri na página em que estava a foto. Assim o pugilista passou, chamamos, levantando um braço na direção dele:
— Por gentileza, sabe onde fica a rua Mario de Andrade?
Ele parou entre sobressaltado e confuso com a repentina abordagem. Nos olhou uns segundos depois desviou os olhos para cima e para baixo na rua tentando se localizar geograficamente. Passaram-se segundos. Entrementes eu alternava nosso olhar entre ele e a fotografia no diário.
Por fim ele coçou a cabeça e desistiu:
— Não, moço. Nunca ouvi falar.
— Tem certeza? Aqui no nosso guia diz que fica perto da Lagerkvist...
— Lage... o quê?
— ...rkvist.
— Essa conhecemos menos ainda...
Apertamos os lábios simulando sinal de contrariedade e sacudimos a cabeça.
— Pombas, a mente acha que nos enganaram.
— Só — riu. — Brasileiro curte informar errado. Pra que judiar dos outros assim.
Apertamos ainda mais os lábios. Sacudimos ainda mais a cabeça. As mãos fecham raivosamente os dois punhos encenando estar com ganas de esmurrar o safado que nos passara a perna.
— Mas aquele sujeito ali deve saber — o pugilista disse subitamente.
Os olhos olham para ele e a alma saponácea vê que aponta um sujeito magro que vem atravessando a rua mais ou menos em nossa direção.
— Será? — coço o cocuruto erguendo as sobrancelhas para o pugilista.
— Temos quase certeza — ele meneia afirmativamente a cabeça.
— Não custa tentar. Obrigado pela força.
— Disponha.
Enquanto o pugilista retoma seu caminho começamos a caminhar atrás do sujeito magro que já seguia alguns metros à nossa frente.
“Magro” era muito pouco para descrever o cara. Se dissesse “esquelético” não estaríamos exagerando. Se estivesse pelado temos certeza de que seria facilmente tomado por caveira ambulante. Usava um terno azul-marinho que provavelmente lhe assentaria bem se tivesse uns vinte quilos a mais. A cada passo o paletó chacoalhava para os lados e as pernas das calças com listras em tom azul mais forte que o terno pareciam querer rodopiar em torno dos gambitos ósseos. Mas apesar da aparente fragilidade tinha porte bem ereto e transmitia uma insólita sensação de energia física.
É tísico, deduzo. Se aidético não mostraria tanto vigor.
Dizem que morrem 10 milhões de tísicos a cada ano. E outros 10 milhões ficam cegos. E outros 10, impotentes.
Apertamos o passo e logo o alcançamos. Quando nos emparelhamos lhe se dá um tapinha no ombro e dissemos:
— Com licença.
Para no meio da calçada e nos olhou sem interesse. Como esperávamos teria o rosto chupado e os glóbulos saltados entre as pálpebras intumecidas.
— Pois não.
— O senhor é pintor né? — Alguma familiaridade como se o conhecêssemos de outras ocasiões.
— Não senhor — respondeu polido. — Somos vendedor. Alfredo às suas ordens. —  Estendeu a mão, que apertamos dignamente.


Fhhhh hhh hhh hh h h h

Triunfo. Hoje decidi que serei meu amigo. Não me pergunto até que horas. Estou enfeitiçado de mim e as palavras que estes meus irrepousáveis dedos produzem neste teclado desconectado do mundo para me aprisionar, me destruindo para recomeçar. Enquanto digito, uma vozinha débil brotando quase inaudível lá do fundo me diz que não serei poupado. Estou cativo, nem mesmo sei se quero de volta minha liberdade. Pois ela, liberdade, se gastou qual a sola dum sapato velho. Descumpro sem cessar minhas autopromessas de me aceitar como sou e me preparar para o que posso fazer. Busco meu esquecimento.

I did it

Médicos, professores e especialistas na vida em geral recomendam que “um pouco de modéstia e humildade” faz bem ao espírito.
Mesmo aos que pensam não ter por que ser modestos ou humildes.
Para ser humilde e modesto basta ser modesto e humilde. Caso contrário você corre o risco de soar imodesto e jactancioso, o que no Brasil, é pecado.
Devemos todos ser cordiais e cordatos.
Outro segredo da felicidade é não intelectualizar. Explicando melhor: use a cabeça mas não dê bandeira de que está usando o intelecto. As pessoas também não gostam.
Embora seja bastante possível – e mesmo fácil – exercer certas atividades humanas aparentemente complexas. Literatura, por exemplo. É possível fazê-la sem usar o dito-cujo. Em certos casos, até aconselhável. Só tome cuidado para não fazer literatura de alta qualidade – aí podem pensar que você tá dando uma de gostoso.
Em geral, os literatos pretendem apenas espairecer e seus consumidores, curtir uma onda. Você sabe, a vida lá fora é uma pedreira. Por que não relaxar e gozar? E esse papo de levar literatura a sério é tão maçante.
Não sejamos perfeccionistas correndo feito bobos atrás do fogo fátuo. Levantemos as mãos agradecidos, aceitemos a alegoria da fruição e vivamos em estado de deleite.
Embora também adepto do lema... (que lema? você de certo perguntará; o lema, ora, aquele da modéstia e humildade)... ...gostaria de fazer propaganda do meu bloguinho.
Como alguns de vocês provavelmente sabem, o link da desgracera é
Você que sabe apreciar uns versinhos arretados não vai se arrepender.
Lá haverá de encontrar artigos para toda a família:
·        Texteronas para o papaizão
·        Consolos para a mamãezinha
·        Desbundices para o garotão
·        Bengaladinhas para a garotinha
E o melhor: sempre no bom sentido do ramo
Nesse nosso blogue o freguês pode ir lendo assim como quem desbrava a Floresta Amazônica descendo a Oscar Freire.
É tudo muito lindinho e fofo, exatamente ao gosto dos leitores da Vejinha e da Caras. Outro dia até falamos do Gugu e adjacências. Não somos esnobes como certos blogueros por aí que se pretendem poetas. Na verdade, morríamos de medo quando atravessávamos a Ponte Pênsil rumo à ponta (epa!) da praia enquanto envergávamos nosso estado infantil.
Nesse nosso blogue (com licença, precisamos rir hehehehehe hehehehehe hehehehehe), em suma, esse papo de pessoalidade já deu faz tempo. Já não bastam os chinas no espelho retrovisor?
Se ler nosso blogue com atenção, você verá que nossa taxa de imitação do Pessoa é de apenas 34,91%.
Seguramente a mais baixa do mercado.

Fugaz II

Procuro organizar as palavras
Do último pensamento, antes
Que o tempo me permita
Erguer os olhos para o céu

Eterno VIII

Se me calar agora, não haverão de me julgar. Se me torturassem agora, confessaria que estou morrendo de preguiça. Claro, esse tipo de confissão é fatal e nenhum escritor faz. Quantos milhares de textos não desisti de ler já na primeira linha por sacar de cara que o escritor o escreveu doido de vontade de dormir? É preciso ter muito, muito cuidado com essas desistências, obviamente. Primeiro, considere que quem está caindo de sono pode ser você, não o pobre do escritor. O mesmo se aplica àqueles que você achou embananados ou pernósticos ou engaratujados, atirando o texto a escanteio sem maiores (ai que preguiça de completar a frase). Também passei por isso, logicamente. Centenas, milhares de vezes.
O silêncio é o mais prolífico dos reprodutores. Você já imaginou quantos gozos desde que este mundo existe poderiam ter atingido o ápice da volúpia se tivessem sido perpetrados em silêncio?
Quantas vezes gozei sem querer gozar. Não, nada a ver com o simulacro levado a cabo pelas mulheres. Foram gozos no duro, duramente gozados. E até hoje não faço a mínima do por quê. Por que os gozei, gozos? Só por gozá-los?
Minha Zezeí tá rumando a passadas largas rumo à insignificância da história. Sigo atrás, obediente. Ali fora a cidade convulsionada se recusa a notar. Me sinto tão espetacularmente minúsculo nas ruas da cidade. Zezeí segue na boa. Embora eu já tenha comprovado que ela também sofre de ataques de metafísica. Vai apressada uns cinco metros à minha frente, farejando montes de bosta alheios. Uau, terei descoberto minha metáfora perfeita?
Ninguém ri das minhas piadas like myself. Você já reparou que mais ou menos uns sete bilhões e meio dentre os oito bilhões que somos hoje ri das próprias piadas? Não trabalho no Datafolha nem no Ibope mas é fácil verificar. Todo mundo que conheço cai na gargalhada após dizer algo que acha engraçado. É um cair fervoroso, aliciante, daqueles que procuram envolver os que estão em volta no clima. A gargalhada prossegue impávida por uns poucos segundos, até perder força ante a indiferença dos terceiros. O gargalhante, porém, não se dá por achado nem se constrange, pois é apenas mais um entre os sete bilhões e meio dentre os oito bi que fazem o mesmo. Quanto a mim não me incluo nem entre aqueles nem entre estes. Simplesmente não me incluo, apesar do verbinho exigindo complemento. Cansei de ser exigido.

Fugaz I

Se minha espera é sem tempo
Eternidade não há
Sou eterno neste momento

Ainda não

Os olhos não verão mais
E as imagens não serão mais vistas
A voz não pronunciará mais palavras
E as palavras não serão mais pronunciadas
A cabeça não ficará mais vazia e o diabo perderá a magia
Que pena
Ninguém mais sonhará com seu narizinho
Quando ela abria seu sorriso convidativo e publicitário
Nem em nenhum outro lugar do mundo
Se fará de conta que seu cabelo não se esparramava pela escápula
Semicobrindo o colo
(tais fenômenos voltarão a dormir além dos poderes da ciência)
O rapazola prosseguirá incomunicável
Por vontade e incapacidade próprias
Ele bem que avisou, olha, é um perigo
Despistando, se disse covarde
Prometendo que ficaria ali em seu lugar
Só imaginando (é o que mais fazem os covardes)
Pelo menos não enlouqueceria mais do que já estava
Tudo começara quando se lamentou
Que pena
Os olhos não verão mais
Ela não seria mais vista
Por que afinal não arrumara o que fazer além de enlouquecer pobres rapazolas como ele?
Colaborando com os novos tempos
Ajudando a reciclar um fóssil atolado na areia movediça da contemplação
A memória não mais se lembraria daquela alça negra que sustentava seu seio esquerdo
E não haveria mais nenhuma vontade de rompê-la a dentadas
Nem predador que bebesse aqueles brinquinhos pingando dos lóbulos de loba
Chegara a hora de dormir
Profundamente