Até quando terei medo de virar fanático, Susan?

A primeira coisa que se faz é o que sempre se faz ao chegar a uma cidade que não se conhece: se para numa das esquinas mais agitadas da rua principal, o rosto forja cara de quem não quer nada e as costas se arrimam contra um poste.
O centro está quase todo ocupado por uma feira de artesanato inspirada nas feiras paraguayas, muita cerveja servida em canecões avantajados e comida a dar c'o pau. Vendedores tentam chamar aos berros a arredia atenção dos turistas, mas todos continuam indiferentes seus caminhos como se os ambulantes e suas barracas não estivessem ali. Aí, freguês, aproveita que tá barato. Amanhã, responde a boca, pensando a cabeça, amanhã, pois agora temos um compromisso que não podemos adiar. Assim que pensamos, passa por nós um Toyota em baixa velocidade, no volante uma mulher duns 22 anos. Alguém ao lado exclama, olha! é a jornalista Sílvia – Sílvia que está cansada de caçar boatos e perseguir fontes, sempre em busca de furos. Sente-se sozinho, sem chance de ter um diálogo construtivo com ela. Vive-se em guerra, esgaravatando incessantemente os pontos fracos um do outro. Ontem ela riu dos pêlos nas orelhas. A voz respondeu que as tetas delas começam a desistir de lutar contra a força da gravidade. Tchau, precisamos ir, um maluco botou dinamite embaixo da mesa da sala e está ameaçando explodir o apartamento. Quando Sílvia sai, tem-se vontade de ir atrás feito um cão de guarda. Mas a culpa é nossa, acostumou-se ela assim. Olhe, benzinho, estamos vivendo a mais sem-graça das comédias, somos tão ridículos quanto um casal formado por girafa sem pescoço / porco obsedado por limpeza. Vamos parar de fingir que continuamos deslumbrados com o que pudemos tirar dessa Merda. Vamos parar de avançar lentamente pro matadouro.
Colada ao poste há uma propaganda duma escola de tiro. Sabe-se que você nunca viu propaganda de escola de tiro, ainda mais colada a um poste no centro da cidade, mas que há, há. Diz assim: “Aprenda a atirar em apenas quatro aulas. Você logo estará apto(a) a disparar do seu próprio veículo (se tiver um Miata vermelho, então fica até mais fácil), desmontar um FAU em 15 segundos, abrir fogo deslizando pelo corrimão da AML e eliminar até 53% dos acadêmicos rebelados no salão de chá. Empreitamos mão-de-obra por hora”.
Enquanto leem o anúncio da escola de tiro observam discretamente os olhos o rebanho de transeuntes. Até que ele, tipicamente insondável como todos os dias, dobra a esquina e atravessa a rua.
A mão tira rapidamente a agenda do bolso esquerdo do paletó e anota o telefone logo abaixo do número daquele jogador de basquetebol que se conheceu ontem na cidade vizinha. Em cima do número do jogador os olhos veem que se anotaram outros dois números: o do entregador de cerveja clara e pouco malte do Paraguay e o da balconista daquela loja de gravatas daquele shopping de belô.
A balconista era oriental. Origem indecifrável para si. Engraçado como você não consegue identificar o país de nascimento de certos orientais, não é?
— Você faz parte do programa? — pergunta a voz cruzando a garganta e acionando a língua, os lábios e a boca como um todo.
— Faço — ela. — Quer experimentar?
Os olhos olham em volta, meio confusos.
— Temos um provador especial aqui no fundo — ela, apontando.
Tudo bem — os ombros se encolhem e tornam a se estender.
Ele pega e conduz a mão até os fundos da loja e abre uma cortina pesada de linho. Atrás da cortina uma banqueta na qual ela senta, puxando as nádegas até aproximar o ventre de sua boca. Apalpa o saco sem olhar o rosto. Vê que não acontece nada, apalpa novamente. Abre o zíper das calças, expõe a rola mole.
O número de orientais trabalhando como reerguedoras de rola é cada vez maior nas principais cidades. As makakitas vêm tentando imitar a técnica, mas não chegam nem perto. A oriental não chupa, masca, não faz da boca um anel mecânico e inflexível, ativa diversos pontos dos lábios simultaneamente, dando à rola a impressão de estar numa linha excitadora industrial. O trabalho da língua é crítico, serpeando na base próxima ao saco, chamando tua Próstata, convocando teu Cu para uma união bestial e sagrada. O melhor de tudo é, quando você goza — se conseguir, claro —, ela engole como se estivesse sorvendo Choquito, sem o mais leve sinal de nojo, depois te olha pedindo mais. Algumas te fazem acreditar que podem morrer se você não for suficientemente magnânimo para provê-las com as vitais vitaminas da tua Porra gosmenta redentora perfumada de proteína.
Tão logo anota o número da escola de tiro, a mão fecha incontinente a agenda, pois o cérebro sabe que na página ao lado tinha a mão escrito, naquele mesmo dia, algumas horas antes, em letras graúdas — bem graúdas mesmo — um lembrete: “Não fique possesso. Lembre-se de que você age sob efeito de sentimentos primitivos e memórias irrecuperáveis. O olho de Deus tudo vê. Não vá cometer nenhum crime”.
Os olhos olham para o outro lado, de novo a cara emite sinais de quem não quer nada. Assim que o morador típico e insondável de todas as cidades passa por si, segue-se atrás dele, tornando a mão a enfiar a agenda no bolso.
Talvez seja um pistoleiro. Entusiasmadas apertam as pernas o passo procurando combater a cabeça pensamentos que teimavam em emitir um alerta de que aquele pode ser o dia mais desastroso de toda a vida. Quem sabe mesmo da cidade. (Sabe-se que você vai achar que é exagero. Que ache. Que se pode fazer?)
Persegue-se o morador por mais ou menos meio quarteirão, quando subitamente ele toma uma atitude que para si naquele momento parece totalmente estranha: torna a atravessar a rua retornando para o lado de onde viera.
As pernas ficam indecisas. Deveriam insistir com aquele sujeito ou esperar outro?
Os olhos olham em volta. Há um poste a uns três metros de onde as pernas haviam parado. Vão as pernas até ele e recostam-se as costas, dobrando-se o joelho direito e descansando o pé lá. Alguns minutos se passaram enquanto se pospesava contraaliviano. Se continuasse aquela perseguição provavelmente terminaria tudo em algumas poucas horas pois aquele morador levava jeito de ser vendedor ambulante e vendedores ambulantes são o que são. Mas isso também faria com que aquela recomendação escrita em maiúsculas na agenda ficasse martelando estridente dentro. (E, olhe, esse tipo de martelação às vezes deixa o bicho realmente louco, pode crer.)  Por outro lado se se desistisse agora poder-se-ia curtir o azáfama do centro da cidade por mais alguns instantes. (Reconhece-se, é sacanagem recorrer a truque tão rasteiro, ainda mais contra si mesmo mas, sabe, às vezes não se resiste pois também si é humano — mesmo não pareceno.)
Um dos mais deliciosos prazeres da vida é ficar pesando prós e sopesando contras. Raramente o cérebro perde a oportunidade de. Se põe absorto assistindo as parábolas da hesitação se insunuando arredias querendo formar curva definitiva mas retornando ao ponto de partida e reiniciando o percurso, às vezes se bifurcando em novas pontas que pelo turno delas também se bifurcam, trifurcam e retrocedem feito raio cegante que lampeja clareando a noite escura, voltando então com mais ímpeto e com mais ímpeto tornando a se retroceder para reiniciar mais uma vez seu trajeto imprevisível até que pá.
Você pode estar imaginando que na na indecisão acabou-se perdendo o morador de vista. Descanse. Não se perdeu não. Os olhos ficaram grudados na camiseta amarela que ele veste. Para facilitar o trabalho a camiseta tem estampada às costas a inscrição “Polícia Secreta!” (sim, com exclamação) em garrafais letras pesadas vermelhas de bordas escorridas como se do pincel que as pintou pingasse excesso de tinta almejando primeiro prêmio na extinta bienal de SP.
Acha-se nesse afã ora vigiando os olhos o morador que a qualquer instante pode virar uma esquina e se perder definitivamente da vista ora atentando os ouvidos a outros transeuntes que possam identificar como perseguidos potenciais, quando se dá conta de que se está parado exatamente diante dum cinema.
As pálpebras cerram-se prontamente se crispando forte e o cérebro pensa “não vamos olhar o cartaz! não vamos olhar o cartaz!”. Mas o infeliz sabe que a tentativa de forçar os olhos a se abster de olhar será vã. Os olhos jamais — repete-se, jamais — resistem a um cartaz de cinema. Said & done. As pálpebras se abrem e pumba. Lá está o título do filme: “Meu, não demore muito”. Naturalmente acha o título o cérebro assaz interessante e entram as pernas.
(ATENÇÃO ESTE FILME NÃO FOI INSPIRADO PELA AIDS NEM PELO EBOLA. DAFUR: QUE ISSO. E OLHA QUE O INGRESSO TÁ BARATO. VOCÊ NÃO VAI ACHAR POR MENOS POSSIVELMENTE. BEM, BOTA A PANELA DE PRESSÃO NO FOGO QUE JÁ TÔ INO. O CHAVEZ VIROU PASSARINHO, VERDADE?)
Mas eis que avisto outro. Este levava jeito de cúmplice de roubo seguido de assassinato. O torso, as tíbias, as coxas, os pés, fica tudo indeciso.
Esses momentos de indecisão doem feito cólica de rim. Qual seguir?
Então para nossa sorte vimos alguém que nos tirou do nosso dilema: a vítima. Estudei seu rosto e percebemos que, mesmo semiconsciente, se dirigia ao hospital.
Estava acompanhado da esposa, alcoólatra que fazia tratamento para tentar se livrar do vício.
Alguns metros atrás do casal seguia outro homem. Precisei de apenas um segundo para ver que se tratava dum colega de trabalho da vítima. O colega fazia anos esperava a morte da vítima para lhe tomar o cargo na firma pois que se tratava de posto de diretoria com altos salários e benefícios adicionais. Os olhos olham para a vítima e percebo que teria de submeter-se a lavagem estomacal.
Nesse momento passou outro homem que nos fez desistir imediatamente da vítima e da sua esposa e do seu colega. Era um ex-pugilista. Tipo durão, rosto deformado pelas porradas, couro grosso qual de jacaré. Passara a infância numa favela e aos oito anos fora atingido por bala perdida. O disparo não causara danos físicos irreparáveis. Pegara apenas de raspão. Mas o suficiente para o futuro pugilista, mesmo imaturo e inexperiente, decidir que não valia a pena levar a vida a sério.
No dia seguinte ele sumira do barraco onde morava com a mãe e oito irmãos fugindo para a zona de meretrício. Perambulou uns dias resolvido a escolher a dedo uma prostituta que lhe satisfizesse todas as fantasias sexuais.
Mantendo os passos ainda apertados avancei uns cinco ou seis metros adiante do pugilista e o ultrapassei. Quando o cérebro achou mais ou menos seguro apanhei o diário que trazia no bolso direito do paletó. Voltei-me ligeiramente para a parede e simulei um ar perdido. Ergui o diário como fosse ler um conto do Jack London e abri na página em que estava a foto. Assim o pugilista passou, chamamos, levantando um braço na direção dele:
— Por gentileza, sabe onde fica a rua Mario de Andrade?
Ele parou entre sobressaltado e confuso com a repentina abordagem. Nos olhou uns segundos depois desviou os olhos para cima e para baixo na rua tentando se localizar geograficamente. Passaram-se segundos. Entrementes eu alternava nosso olhar entre ele e a fotografia no diário.
Por fim ele coçou a cabeça e desistiu:
— Não, moço. Nunca ouvi falar.
— Tem certeza? Aqui no nosso guia diz que fica perto da Lagerkvist...
— Lage... o quê?
— ...rkvist.
— Essa conhecemos menos ainda...
Apertamos os lábios simulando sinal de contrariedade e sacudimos a cabeça.
— Pombas, a mente acha que nos enganaram.
— Só — riu. — Brasileiro curte informar errado. Pra que judiar dos outros assim.
Apertamos ainda mais os lábios. Sacudimos ainda mais a cabeça. As mãos fecham raivosamente os dois punhos encenando estar com ganas de esmurrar o safado que nos passara a perna.
— Mas aquele sujeito ali deve saber — o pugilista disse subitamente.
Os olhos olham para ele e a alma saponácea vê que aponta um sujeito magro que vem atravessando a rua mais ou menos em nossa direção.
— Será? — coço o cocuruto erguendo as sobrancelhas para o pugilista.
— Temos quase certeza — ele meneia afirmativamente a cabeça.
— Não custa tentar. Obrigado pela força.
— Disponha.
Enquanto o pugilista retoma seu caminho começamos a caminhar atrás do sujeito magro que já seguia alguns metros à nossa frente.
“Magro” era muito pouco para descrever o cara. Se dissesse “esquelético” não estaríamos exagerando. Se estivesse pelado temos certeza de que seria facilmente tomado por caveira ambulante. Usava um terno azul-marinho que provavelmente lhe assentaria bem se tivesse uns vinte quilos a mais. A cada passo o paletó chacoalhava para os lados e as pernas das calças com listras em tom azul mais forte que o terno pareciam querer rodopiar em torno dos gambitos ósseos. Mas apesar da aparente fragilidade tinha porte bem ereto e transmitia uma insólita sensação de energia física.
É tísico, deduzo. Se aidético não mostraria tanto vigor.
Dizem que morrem 10 milhões de tísicos a cada ano. E outros 10 milhões ficam cegos. E outros 10, impotentes.
Apertamos o passo e logo o alcançamos. Quando nos emparelhamos lhe se dá um tapinha no ombro e dissemos:
— Com licença.
Para no meio da calçada e nos olhou sem interesse. Como esperávamos teria o rosto chupado e os glóbulos saltados entre as pálpebras intumecidas.
— Pois não.
— O senhor é pintor né? — Alguma familiaridade como se o conhecêssemos de outras ocasiões.
— Não senhor — respondeu polido. — Somos vendedor. Alfredo às suas ordens. —  Estendeu a mão, que apertamos dignamente.


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