Tomografia lírica

Quando for feliz, quero ter uma casinha de um quarto, sala, cozinha e banheiro.
Cada cômodo com espaço apenas para os restritos movimentos do ocupante. Mobília, a mais frugal possível. Na sala, quatro quadros, um em cada parede, todos de paisagens exóticas. Nenhum retrato.
Entrada, uma. Porta, não muito alta. Se precisar abaixar a cabeça para passar, não farei caso. Minhas passagens por ela serão raras.
A janela da sala, módica e modesta, de vidraça pequena e veneziana de correr lateralmente, dará para o gramado da frente. A grama, a manterei sempre bem aparada desde a soleira até a cerca frontal. Esta, pintarei de bege ou marrom.
Não haverá no gramado roseiras, crisântemos nem qualquer outra flor. Cactos tampouco. No centro do gramado, apenas uma árvore, cujo nome vulgar ou científico não saberei.
Quando for feliz, vou sair a caminhar pela minha rua e uma diminuta semente caída na sarjeta atrairá meu olhar distraído. Agacharei para apanhá-la, a enfiarei no bolso e, quando for feliz, voltarei para casa e a plantarei numa latinha de ervilhas. E, quando brotar, transferirei a mudinha para o gramado. No centro, mas não precisamente.
A planta, nunca a regarei. E quando ela passar a arbusto e depois a árvore frondosa, jamais me deitarei à sua sombra.
Quando for feliz, em que cômodo da minha casinha ficarei não estou bem certo. E durante as chuvas torrenciais do verão não escutarei os pintos grossos a tamborilar no telhado.
Através da janela, olharei apenas quando for feliz. Vislumbres, tentarei evitá-los.
No dia em que for feliz sairei pela porta da frente e caminharei pelas pequenas lajes quadradas que formarão o passeio na lateral do gramado e, abrindo o portão baixo construído de ripas pontiagudas de madeira bege ou qualquer outra cor neutra, ganharei a calçada de cimento bruto, envelhecido e recoberto de musgo nas beiradas.
Então não subirei nem descerei minha rua, pois a rua da minha pequena casa será plana.
Nesse dia, dobrarei a primeira esquina e esquinas outras aleatoriamente dobrarei enquanto for feliz.

Meditações caninas

Sou um cachorro.
Não metaforicamente, como costumam dizer por aí para se referir a canalha, cafajeste, etc. Não: sou cachorro na acepção da palavra, sem tirar nem pôr, com focinho, patas, rabo (que abano ocasionalmente para demonstrar alegria, como qualquer outro da turma).
Ao contrário de muitos dos meus parentes, lato apenas para fazer média com meus donos. Ou quando é preciso impor respeito. Ou condenar algo que mereça ser condenado.
Lato, não nego. Mas sempre com moderação. Tanta, que às vezes nem o pessoal da casa escuta. Fico irritado com certos primos meus que armam um carnaval para o entregador de gás, o sujeito que faz a leitura da luz, o que lê o relógio d'água. Tanto espalhafato para quê? Por acaso precisam provar que são cães? Que servem para alguma coisa? Só se for para atazanar a vida dos vizinhos.
Sei de muito cão falaz (ou seria "ladraz"?) por aí que late para a lua, para as nuvens, para as moscas e inutilidades que tais. Mas dorme feito anjo quando um ladrão entra na casa.
Pois é, só marketing. Pulgueiros embromadores.
Quanto a mim, sou sóbrio. As pessoas, quando me conhecem, se enganam com este meu ar quase bonachão. Alguns me vêem pela primeira vez e fazem pouco caso, me acham meio apalermado. Vai achando, penso cá comigo. Pisa no quintal às onze da noite para ver com quantos dentes se faz uma mordida na batata da perna.
Tenho um colega, que mora a três casas subindo a rua, que não tolera ser mal interpretado assim.
Costumo aconselhar a ele:
— Os humanos não têm obrigação de demonstrar deferência, Godói. (Também estranhei o nome quando conheci o Godói. Fazer o quê?) São muito ocupados. Nós existimos só para servi-los.
— Servir é pleonasmo! — Godói se exaspera. — É escravidão deslavada. Se existissem meia dúzia de pitbulls feito eu, quem estaria tomando conta do portão, coçando as pulgas e latindo feito besta seria o folgado do meu dono. E tem mais: visita não sai da casa do patrão sem levar uma boa avançada. Comigo é assim. E quanto mais pálido neguinho ficar, melhor.
A, penso resignado cá no meu canto: outro infeliz a praticar cegamente o lema do olho por olho, dente por dente. Quantos coitados sofrem assim sem saber? O quadrúpede escolhe meia dúzia de ditos e aplica em toda e qualquer situação, como se fossem pau para toda obra. Já tentei dissuadir o Godói, mas qual. O inocente não me escuta. Afinal, pergunto cá com minhas com minhas pulgas, para que servem ouvidos tão sensíveis?
Por isso, sempre digo: se quiser ser um bom cão-de-guarda, precisa balancear braveza e companheirismo. Nas horas de folga, manter a calma, passar segurança, mostrar aplomb. Os donos ficam intranqüilos quando têm em casa um pulguento traiçoeiro capaz de atacar a primeira canela desconhecida que lhe surgir pela frente. Ser pacato é a alma do negócio. Sem perder de vista, naturalmente, nosso maior objetivo, que é ganhar a simpatia da família.
Afinal, pergunto quando um dos meus colegas chega no portão de casa com focinho de quem levou um ponta-pé, o que é um cão pelo qual ninguém nutre simpatia alguma? E eu mesmo respondo: é um vadio, sem-dono, zanzando pelas ruas sem osso depois da janta, sem ração e, principalmente, sem cafuné.
Quando menciono esta última possibilidade, meus amigos deixam cair as orelhas e tremem de pavor.
Até que tudo bem perambular por aí sem território para demarcar ou ser chamado o tempo todo de Rex por desconhecidos na rua sendo que seu nome é Newton. Mas penar neste pulgatório, digo, purgatório sem nunca ganhar um afago na cabeça ou uma alisadinha nas costas (mesmo que seja com a sola suja dum sapato)? Ai! É impensável.
Mas de que forma conciliar essa necessidade básica e atávica de carinho com a ferocidade e o espírito vigilante que os humanos exigem? Cá pra nós: perto deste, o dilema daquele príncipe dinarmarquês que escuta fantasmas e não sabe se é ou se não é não passa de bobagem, não é mesmo?
Por isso, sempre aconselho: há que conciliar esses dois extremos, senão...
— Bah! — alguns coleguinhas rosnam — nenhum dono vai te dar um pé no rabo se você distribuir umas dentadas indevidas de vez em quando.
— Vai nessa! — respondo, meneando a cabeça e chacoalhando as orelhas.
Tem dono capaz de tudo. Nessa relação, quem é fiel é você. Tem cachorro que se engana, ou por ingenuidade ou porque gosta de se enganar. Pensa que está garantido, que a família não vive sem ele, que será um relacionamento para toda a vida, que não corre riscos, que não vão se livrar do bicho de estimação só por causa de uns excessozinhos de vez em quando, que auauau, blablablá...
Pura racionalização. Mania de confundir desejo e realidade. Muitos incorrem nesse erro.
Conheço uns indivíduos de quatro patas por aí que mal sonham com um filé e já sentem o cheiro de carne na cumbuca. Confusos, pensam que suas vontades se realizam por encanto. Que querer é poder. Não sei se é ledo, mas não tenho dúvida de que é engano. No mundo canino tem até um depoimento histórico, feito pelo cachorro do Freud, sobre isso de delirar com desejos supostamente atendidos. Continue dando uma mancada atrás da outra assim, que você vai ver onde é que a porca torce o rabo ou o galo canta. (Para ficarmos no reino animal, se mo permitem.)
Já vi casos de dono muito bonzinho, carinhoso, assíduo nas vacinas, petichope toda semana com xampu importado e coisa e tal, de repente tu caga no carpete ou rói o mocassim alemão e tchau e bença. Lá se foi o belo relacionamento que era por toda a vida. Tudo bem, tais casos são duros, mas não deixam de ter uma explicação.
O pior mesmo é o caso do vira-lata cuja dona de repente cai de amores por um desses pooddles afrescalhados que estão invadindo a praça. Com a mesma repentinidade o infeliz se vê doado à empregada. E, como cachorrada pouca é bobagem, a dita ainda mora numa favela.
Então pondero: se é com esse tipo de risco que você quer brincar, pois brinque. Quanto a mim, seguro morreu de velho.
Por ladrar nisso, certa vez travei o seguinte diálogo com o Bernardão, que apesar do nome não é um são-bernardo e sim um vistoso e bem-nutrido dobermann que mora aqui pertinho. Ele estava inconformado com a sina de ter de ceder o que existe de mais forte em sua alma em troca dum quintal onde morar:
— O maior problema nisso tudo, Chapinha — (A sim, já ia esquecendo de dizer que o nome do fofinho aqui, modéstia à parte, é esse.) — O maior problema é nosso instinto de territorialidade. Diz aí, tu que é tão entendido no caráter canino: como é que fica? Alguns humanos fingem esquecer o profundo apego que temos pelo nosso lugar. Outros sequer fingem. Simplesmente não tomam conhecimento.
— Não me venha com fricotes — fui obrigado a ser um tanto duro, pois já estava enfadado com aquele tipo de comportamento de vira-lata carente. — Me responda, Bernardão: sem teu dono tu teria todas essas mordomias de que desfruta? Comidinha limpa e saudável servida regularmente? Não é alcatra todo dia, bem sei, mas pelo menos não precisa fuçar sacos de lixos nas ruas para não morrer de fome. E tem cobertor particular, colete de lã no inverno. Se não está satisfeito e acha melhor viver sem eira nem beira, basta pular o muro e cair no mundo.
Bem, seria supérfluo ladrar que com isso calei o focinho do Bernardão. (Seria supérfluo, mas ladrei-o mesmo assim. Afinal, esta crônica — ou seria uma fábula? — é minha e ladro o que me aprouver.)
Aliás, lanço mão (ou pata, no meu caso) desse mesmo argumento quando alguns coleguinhas me vêm torrar a paciência com a história de que só servem para segurar a onda dos seus donos.
— O cara é de lua! — gane um.
— A perua só brinca comigo quando lhe dá na telha! — geme outro.
— Queriam o quê? — ralho, já à beira do destempero. — Gente é esquizofrênica mesmo. Ora está bem, ora está mal, ora alisa nossa orelha, ora chuta. Procure ver o lado positivo. Temos uma função nobre, qual seja: com nossa submissão às mudanças de humor dos seres humanos nós os ajudamos a suportar os terríveis fardos que lhes foram impostos pela natureza. E vocês que convivem com eles todos os dias sabem do que estou falando. Eles se acham os bacanas do pedaço, mas quem faz o mundo girar de fato somos nós. (Reconheço que isso às vezes não compensa muito o tratamento de cão que recebemos, mas serve de algum consolo.)
Em resumo, há que balancear as coisas. Ser equilibradamente dócil e feroz. E, sobretudo, saber tratar as pessoas certas. Eis um dos erros mais comuns cometidos por certos focinhudos doidivanas — trocar as bolas. Abanam o rabo pros amigos do alheio (pois é assim que os humanos às vezes chamam os larápios) e arreganham os dentes pros que vêm em paz. Quando flagro o desastrado nesse erro, estalo a língua, sacudo negativamente a cabeça e rosno esganido: não, não, não! Assim você vai acabar no olho da rua, sua anta farejadora! Ou no canil municipal, candidato a virar cobaia na Veterinária da USP. Ou, se tiver um pouco de sorte, condenado a exílio eterno no quintal, em absoluto ostracismo, para sempre proibido de se esticar embaixo da mesa enquanto o pessoal almoça. Quem sabe até destino pior: vedado de dormir no tapete da sala!
Bem, já são duas da madruga e tenho muitos latidos a dar. Se não bater o ponto de vez quando, os dorminhocos dos meus patrões são capazes de achar que estou amolecendo. Mas, ao contrário do que as pessoas imaginam quando escutam um cachorro ladrar na noite, meus latidos têm destino certo. A uns dois ou três quarteirões daqui mora um rapaz que noite após noite, sempre a essa hora, está tentando pegar no sono. Mas o diabo do sono não vem porque o coitado sofre terríveis ataques de tédio, que o fazem virar e revirar dum lado pra outro, sem cessar, incapaz de mitigar a intranqüilidade que o perturba. É nessa hora que me ponho a latir. Mas com cuidado. Pausadamente. Noites há em que ele se deixa afundar com tamanho peso sob a angústia, que demora uma eternidade até perceber meu latido. E, quando percebe, pensa: "Toda noite escuto um cão ladrar ao longe, onde quer que eu esteja". E assim vai pensando, embalado pela cadência do meu latido. Até finalmente dormir.





Meu guardião

Alta madrugada. O sono não vem. Escuta-se um latido ao longe. Terá existido noite intocada por um cão irrequieto? Sempre escutarei um onde quer que me deite - seja balançando num navio sob o troar das ondas do Atlântico, seja vasculhando o fundo da memória enquanto me aconchego entre os frios rochedos dum dos mares secos de Saturno.
Mas para que ou para quem são os latidos no meio da noite quando ninguém está disposto a escutá-los? Talvez para um gato, tentando chamar a atenção duma fêmea, miando sob o céu que de dia é azul. Ou quem sabe para um galho de árvore movido pelo vento num sussurro farfalhado.
Há noites em que se assombra por uma lua repentinamente exposta pelas nuvens. Há outras em que uma pedra que passou o dia imprecisamente equilibrada sobre outra resolve rolar às duas da manhã só para sobressaltá-lo. E há aquelas em que ladra simplesmente por querer, sem que precise se deixar iludir por um prosaico toque de magia.
Mas além dessas, noites há em que late para mim. Identifico o tom de urgência, como se me avisasse de algo. Em tais noites - algumas, não todas - ele se recusa a silenciar. A aflição dele me aflige também a mim e desisto de esperar o sono. Levanto da cama e vou zanzar pela casa, enfim rendido ao guardião da minha paz de espírito.

Minhas definições - a retomada II

Morte: rendição incondicional ao tempo que passou.

Jejum indigesto

Ontem, domingo, dezenove de outubro de dois mil e quinze, minha pequena pitangueira deu o primeiro fruto. Deambulava pelo quintal, passeando distraído o olhar pelo céu, quando o vi. Não foi propriamente ver, porém, e sim um vislumbre apenas; que, quase no mesmo ato, foi aspirado pelo exaustor da consciência, se dissipando na neblina da memória. Ainda distraído, dei meia-volta, passei pela porta da cozinha, fui cuidar distraidamente da minha vida de que não sei cuidar.
Hoje cedo perambulando pelas ruas me lembrei da pequena pitanga e a angústia me riscou o estômago num golpe gelado. Teria sido sonho? Não, se apressou a negar o que ainda me resta de consciência. A pitanguinha existe de fato. Ainda tenho nas retinas o pontinho colorido oculto por sob as folhas do arbusto.
Se existe de fato, ponderou o resquício de lucidez, que é que vamos fazer com a pequenina? A primeira hipótese a subir à escorregadia superfície do meu cérebro foi: deixemos a pobre exatamente onde está. Que se deixou imediatamente substituir pela segunda: vamos chupar a coitada só pra ver que gosto tem. Vai ver, nem é pitanga. Vai ver, ocorreu um acidente genético causado pelo buraco de ozônio ou pelos eflúvios malignos exsudados pelo lulopetismo. Esta foi logo soterrada pela terceira: arranquemos a porcaria sem dó nem piedade e a arremessemos por sobre o telhado e paremos com essa frescura que periga resvalar num estéril exercício de metafísica.
Voltei correndo para casa e fui averiguar se a pitanga de fato existia. E se ainda estava lá.
Existia. E estava.
Afrouxei o nó no peito, aliviado.
Já tive árvores frutíferas em minha vida, quando morei em minha xácara no Embu. Herdada de papai, como contei dia desses. Em sua maioria eram bananeiras e limoeiros. Mais precisamente, sessenta das primeiras, oito dos segundos. Por uns tempos tentei outras espécies, que não vingaram, em parte por causa do clima serrano demasiado quente para peras e maçãs e demasiado frio para frutas tropicais como abacate, manga e hmmm maracujá, especialmente criado por deus para compor a kaipiroska; e em parte em razão da minha inépcia agrícola. Não sou nem nunca fui cultivador competente, nem de frutas nem do que quer que seja. Me faltam as principais qualidades para tal, a começar da paciência, a continuar com a capacidade de atenção para os detalhes e a terminar com essa minha crença meio alegórica e nebulosa de que o êxito no trato das coisas tem algo a ver com um lance de dados. Me lembro direitinho de quando plantei a primeira muda de laranjeira, de pouco mais de meio metro de altura. Acordei cedo na manhã seguinte e fui lá ver se a primeira laranja já tinha brotado. Só faltou levar o espremedor. E logo vieram as pragas, dos mais vários tipos e colorações. Meio decepcionado corri para a cidade e o dono da lojinha me recomendou um ou dois pós brancos, que precisaria diluir em água e aplicar c’um borrifador. Entusiasmado com a simplicidade da solução, segui as instruções. Duas semanas depois a laranjeira amareleceu, perdeu todas as folhas e começou a secar. Excesso de defensivo, me explicou o rapaz. O senhor acabou matando as pragas e a planta junto. Excesso de sofreguidão, expliquei a mim mesmo, em vozinha baixa. Que vem me matando aos poucos desde patati patatá.
Minha pequena pitangueira está num vaso grande de plástico preto. A transplantei dum vaso menor quando nos mudamos de São Caetano. Em São Caetano brotara silvestre em meio a centenas de outras mudas de pitangueira e amora, há mais ou menos dez anos. Desde então venho tentando mantê-la viva, num misto de diligência e apreensão. Ano passado quase morreu de sequidão sob a canícula trazida pelo El Niño e a crise hídrica protagonizada pelo bonachão molengão Alckmin. Puxei o vaso para a sombra e dobrei a dose de água. Aparentemente deu certo. Hoje minha pequena pitangueira viceja numa miríade de folhas planas e amplas dum verde forte e sólido e saudável. Até me deu um frutinho. Quando voltei para me certificar se ainda estava lá, senti os olhos úmidos. Obrigado, minha bela, agradeci mentalmente, me detendo em seguida antes de cometer um novo Meu pé de laranja-lima.
Tal como em meu quintal sulsancaetanense, há pitangueiras por toda parte nesta área de Sampeia, trazidas pelos meus amigos sabiás-laranjeiras. Algumas esquinas estão literalmente forradas dum tapete cuja cor não pode ser definida senão como de pitanga. Não é de laranja nem de abóbora. Passamos, eu, Zezeí e Quico, pisando nos frutinhos lamentando não poder colhê-los. Daria pra montar uma barraca de feira. O sumo colorido, de dar água na boca, enodoa a calçada de manchas escuras. Olho para o alto desapontado qual a raposa da fábula a namorar as uvas. Uma ou outra até seria alcançável, se desse uma trepadinha no muro, se não tivesse de segurar a guia do Erro de Deus. Mais adiante este pé de amoreira, em baixo, desgalhado e desfalcado de frutos pela turba de paulistanos esfomeados por sabor e poesia, em cima, abarrotado de amoras espigadas, escuras e fartas de sumo, que desabam rumo ao piso de cimento já arroxeado mal toco no galho na tentativa de as apanhar.
É uma pena que a vida nos imponha a mecânica do devore-ou-seja-devorado sem choro nem vela. Esquerdistas pensam que há saída possível desse imperativo. Talvez possa haver em paisinhos minúsculos e riquíssimos como os nórdicos, sem grandes preocupações com desemprego e outras doenças insanáveis de países de populações pobres como todos os que têm mais de cem milhões de habitantes exceto EUA, Japão e quejandos.
Darwin foi o mais frio dos cientistas e por isso mesmo o mais certeiro. E o mais desprezado por religiosos despeitados dados à fraude. Fraud, digo, Freud, mais sagaz e mais genial, não pôde acertar tanto quanto Charles, pois seu campo de estudo, a mente humana, é inconcebivelmente mais vasto que a biologia e certamente infinito. Quem ousaria pensar – e proclamar – que o homem não passa dum joguete entre duas pulsões, a da vida e a da morte? Vivemos, tudo leva a crer, em estado constante de pingue-pongue entre essas duas inexoráveis senhoras. A partida, em casos perdidos como eu, pode chegar a alucinante e mesmo perigosa. Minha pulsão da vida está sempre levando de goleada. Se dependesse do meu instinto de sobrevivência, a humanidade não teria resistido duas semanas. Os dinossauros se foram mas hoje dispomos de empreiteiros e lullopetistas no lugar, o que é incalculavelmente pior.
A pequena pitanga aguarda humildemente na sombra das folhas que seu destino se cumpra. Observo-a intrigado. Mais, confuso. Ainda não tomei minha decisão. Serei mesmo obrigado a? Por que o mundo simplesmente não deixa, ou espera, que as coisas se resolvam por si mesmas? A Grande Mecânica por trás de Todas as Coisas bem que podia falhar só desta vez.
Posso abandoná-la à sua própria sorte, deixar que caia de madura ou sirva de alimento para um dos meus camaradas alados. Posso cometer o insensatez de atirá-la por cima do telhado, mas essa alternativa, graças àquele ser a quem todos louvamos por sua insondável sabedoria, já a descartei. Ou posso, ai que martírio, comê-la. Só de curiosidade de saber que gosto tem minha primeira pitanga.
Enquanto a última opção brinca em meus pensamentos, a frutinha parece adquirir um colorido ainda mais intenso, como se corasse de vergonha ou de aflição, se iluminando feito uma lanterninha japonesa. De repente se apaga. Não, concluo, não está preocupada com meu dilema. Nasceu sabendo que esse tipo de dúvida não presta para nada. Veio a este mundo para ser comida, propiciar um tico de vitamina para anêmicos e afins. Não sentirá dor, sendo desprovida de sistema nervoso.
Eu, porém, não sou. Nem por isso sou poupado quando escuto asas a adejar pouco metros acima de mim. Um sabiá-laranjeira gigante, de bico duas vezes o meu tamanho, num voo rasante pelo quintal, de repente me agarra pelos ombros, me carregando para o alto do edifício do outro lado da rua. No ninho, meia dúzia de filhotes aguardam a refeição. Para sorte dos pequerruchos colossais, estou acima, bem acima do peso. Mamãe-sabiá me destroça em pedaços miúdos, que distribui entre a prole: cabeça, que vai para o primogênito, braços, pernas e por fim o tronco, subdividido e repartido.
É começo de primavera, a espécie está em plena temporada de reprodução. Espero não fazer mal para os esfomeados espantalhinhos que ainda nem trinar sabem. Isso que dá ficar tecendo filosofice em torno duma pitanga. Calma! Calma que tem pra todo mundo...

E pensar que bastava folhear um livro

Escapadinha sabática básica no crepúsculo hehehe. Olho Zezeí, Zezeí me olha, estamos entendidos. Sim, vamos dar uma sacaneada no bixho adoidado, o demônio encarnado em Sampeia, Mr. Preta e Marrom Brown Black Shadow, a mais nefasta combinação de cores do arco-íris que não vejo desde aquele verão de 1969. Sim, Zezeí, vamos deixar o Quico em casa, saravá. Hoje à tarde o Furacão Orelhudo escapuliu portão afora outra vez. Correr atrás se mostra insanamente inútil. Tentar cercar, a desgraça pensa que é folguedo e aí que sapequeia. O único remédio, e quando digo único bidu, é me soltar lasso na beira da calçada, vulgo sarjeta, mostrando que não tenho segundas, i.e., estou nessa. A Praga do Inferno parece sensibilizar-se ante tamanha demonstração de humildade e submissão e se detém por um segundo. Então, com cara de quem explodiria na mais espalhafatosa gargalhada do planeta se soubesse e se pudesse, parte feito um zéfiro para a calçada do outro lado da avenida, zunindo por entre três ou quatro carros que freiam e tentam não passar por cima daquele estranho vulto dotado de rabo e narigão que repentinamente cruza sua frente. Um dos motoristas se assusta e detém o veículo no meio da rua, instantaneamente provocando um freadaço seguido dum buzinaço. Todos voltam a cabeça para mim, não sei se apiedados por ser o feliz proprietário da Besta Comprida ou irados por ser, em última instância, o causador dum quase engavetamento. Absolutamente alheio ao drama humano que transcorre a apenas três metros dali, o Insano Cometa toma a direção da esquina, abandonando atrás de si apenas seu nada brilhante halo. Então, de novo, em desastrosa decisão que, de tão ilógica, não dá tempo nem mesmo de ser tomada, concluo que devo atravessar a avenida atrás da Peste. Assim que me detecta do mesmo lado, o Flagelo do Apocalipse retorna à primeira calçada, aquela onde fica minha casa, aquela onde tudo começou. Ciclicamente, retoma-se a comoção no trânsito, mais ou menos com os mesmos incidentes, com os mesmos riscos de tragédia e sangue. Um casalzinho de namorados vem subindo a avenida com aquele entusiasmo de viver típico da juventude. O rapaz, talvez por ser ainda mais jovial que a namorada, assistindo ao drama em que Quico é o supremo protagonista e eu, apenas figurante a contragosto, me pergunta, de longe, sempre animado, se preciso de ajuda. Sem força para acionar a língua, que se converteu em apêndice plúmbeo e gelatinoso como que por encanto, meneio a cabeçorra afirmativamente, tomando cuidado para não exagerar no gesto, pois, vocês sabem, minha cabeça vive me botando nas mais improváveis e angustiantes enrascadas. Assim que assinto, o rapazola parte lampeiro para a outra calçada, velejando nas asas da autoconfiança, certo de que aquela coisa escura orelhuda que nos observa zombeteira já está no papo. O jovem nem bem alcança a calçada oposta, o Suplício de Todos os Dias da Semana queima o chão de volta, reiniciando o Ciclo da Flagelação, o freadaço, o buzinaço, o metafísico arrependimento. Por meu magnânimo turno, é minha vez de assistir. E, conformado com meu papel de telespectador da vida, deixo que a desesperança configure os músculos e os traços do meu rosto. E assim desacorçoado qual o Luís da Silva de Angústia, assisto enquanto os deuses do trânsito, mancomunados com os malditos engenheiros de tráfego do Haddad, vão jogando solertes seus dados elétricos. O cassino está inteiramente às escuras, só minha mesa de asfalto iluminada por um holofote diabólico.
De repente sinto algo, alguém, alguma coisa em meu colo. Ainda estou sentado na sarjeta, se bem se recordam. Meu pescoço se dobra um tico, meus olhos céticos enxergam a Mortificação Quadrúpede em meus braços. O monstrengo parece rir. Rio também, só por solidariedade, me dói o peito imaginar que ele se sinta só neste mundo insolúvel. Aperto a Calamidade Canina contra o peito com toda a exígua força de que disponho. Posso ter um treco e morrer aqui e agora mas o FDP não me escapa.
Uns copos de água e açúcar e umas gotas de florais de Bach depois, Zezeí e este cristão ateu que vos fala — e que, embora ateu, de joelhos rezou um bocado durante a carnificina que enfim não se concretizou, pedindo pro trânsito ficar sem fluir — nos vemos subindo a ladeira. Zezeí aparentemente já se recuperou do trauma. Ou, pra variar, está se fazendo de desentendida. Até agora não sei com razoável precisão até que ponto a intempestiva chegada do Quico perturbou a linha do horizonte da minha Esbirigueta, que até ontem parecia, ela, a linha, tão regular e previsível. Sou caçula, não me resta senão especular sobre o estrago causado por intrusos indesejados em nossos respectivos paraísos para sempre perdidos.
Pelas ruas não vemos mais que pedestres distribuídos esparsamente, como se também fizessem papel de figurantes. Talvez seja coincidência, mas estão todos desacompanhados. Vamos passando por cada um deles e cada uma delas indo e vindo sabe lá aonde e de onde e um agudo sentimento de solidão me cutuca a alma lá no fundo. Olho Zezeí, procuro conforto, gosh, me sinto impossivelmente só. Até há um segundo vinha escrevendo mentalmente a história dum sujeito que pega o carro e desce a Anchieta e aluga um barco e parte para alto-mar. Venho escrevendo essa história há pelo menos quarenta anos e não consigo chegar ao fim.

Ele voltou XIII

...continuação de...

— Começa exatamente como termina — dito, microfone na mão, cara de feto feliz insciente de ter acabado de ser expulso do útero. — Os eventos se desenrolam até a palavra que ocupa ordinalmente a posição central no livro. Precisão matematicamente determinada. Depois dessa, eventos, sentenças e parágrafos sofrem reversão, retornando inversamente simetricamente até o restabelecimento virtual da primeira frase. E sabe que é? Nada gratuito. Aleatório. Tudo se encaixa. Programa. Se você tira uma palavra, desaba. Quer definição? Então vai: desafio. Irresistível. E engraçado. — Passo o microfone ao nossossanchopança, que o coloca em seu suporte no painel do Miata.
— Você sempre detestou essa gente — o nossossanchopança diz. — Por que  ajudar?
— Somos solidário. Okay, muitos deixam de lado seu ideal. Só pensam em digerir brócolis e germe de trigo. E uma conta bancária abarrotada.
— O que nos irrita é esse cosmopolitismo. De relações-públicas.
— Somos todos refugiados. Dê aqui o microfone de novo. — Pigarreio e disserto. — Estamos localizados entre o Céu e o Inferno. Oeste e Sul. Ocidente e Oriente. Inglês e espanhol. Rio grande do sul e a Coisa Morna. Brancos e negros. Portugueses e índios. Cuz-cuz e biguemaques. Sonho secreto morar em Luxemburgo. Estamos no meio dum incessante fogo-cruzado que nos ensurdece e que nos impede de escutar. Eternamente espremidos entre ontem e amanhã. O ontem passa mas o amanhã não chega. Nos consideramos mais racionais, mais profundos, mais próximos a deus que hindus, muçulmanos, budistas e protestantes. Sobretudo estes últimos, com sua falas mansas e higiênicas mãos branquinhas que nos cagamos de medo de tocar. Somos os proprietários por excelência dos mais belos atos de amor e portanto do reino dos céus.
Os olhos olham o nossossanchopança, que vai fazendo que sim com a cabeça.
Prossigo:
— Mas algo cresceu entre nós de que não nos se deu conta. Uma flor. Flor inodora, incolor, brotada no jardim que não nos pertence. A ela dedicamos o pouco de diligência que nos foi facultado. Não descuidamos de adubá-la, aguá-la, não queremos que deixe nosso mundo. E o corpo fica aqui parados à espera que desabroche, a flor que a ideia não sabe existir. Somos profundamente certos. Profundamente certos. — Devolvo o microfone ao nossossanchopança, que o encaixa no suporte.
— O importante é não fazer concessões — ele diz. — Custe o que custar.
— Nunca fez-se. Não vamos começar agora. Toque a fita mais uma vez.
O nossossanchopança tira a fita que eu acabara de gravar, insere outra na fenda do gravador, pressiona rewind, depois play. A voz de Giraldi torna a ocupar o compartimento de passageiros do Miata.
“A partir de agora nada mais acontecerá. Ao longo de todos os milênios que já vimosvemos nos dedicamos a desenvolver essa fantástica capacidade de organização que temos hoje. Para quê? Para depletar as reservas disponíveis.”
— Depletar.
“Nunca fomos tão bem-treinados, dotados e capazes. Finalmente derrotamos deus.”
— Derrotamos nossa própria natureza.
“Teremos derrotado nossa própria natureza? O homem sempre primou pelo hiato entre suas palavras e suas ações. Hoje estamos convicto, cientificamente, de ser esse o vazio de que nos queixamos desde sempre.”
— Que não enxergamos.
“Eis a flor do vazio. Que não enxergamos. Que viceja em nossos corações. Chegou a hora de decepar.”
— Pode desligar.
Os olhos olham para o carro ao lado e indico com um gesto de cabeça:
— Olha ela aí.
— Ela mesma.
— Ordens são ordens.
O nossossanchopança apanha o cel e tecla. Alguns segundos depois os olhos veem a meninota ao volante do outro carro atender.
— Olá. Como estás? — o nossossanchopança diz com sotaque colombiano. — Si. Si. Nos conoscemos na buate, te recuerdas? Dançamos la rumba por la noche. Me deste tu teléfono. No te recuerdas pero si. Estávamos eu e mi amigo paseando por estas partes quando os olhos olham para o lado e quienes veo? Mira, no es Izildita? pregunto e mi amigo contesta, si, si. Si, estamos bem de tu lado. Mira.
A moça olha em nossa direção. O rosto se ilumina e ela acena.
— Encoste o carro ali adiante. Vamos tocar un papito.
Alguns minutos depois estamos os três no Miata, o nossossanchopança sentado no banco de trás com izildinha, tengo un barato muy rico,  deixa eu experimentar. Enxarco um chumaço de estopa em clorofórmio e passo pelo lado do banco. O nossossanchopança imobiliza os braços da moça e pressiona a estopa contra o rosto dela, cobrindo a boca e o nariz. Quando a izildinha desmaia o nossossanchopança a ajeita no banco. Sai do Miata, dirige-se ao carro da izildinha parado à frente, entra, dá partida e arranca. Giro a chave de ignição do Miata e seguimos atrás.
Quarenta e cinco minutos depois estamos no labirinto do Ipsius Ego. Atrás do espelho observamos izildinha, filha de norberto coelho, elogiadíssimo escritor da atualidade, autor dos mais mirabolantes thrillers. A menina está prestes a ser…
Bem, agora um desses escritores abastados, cafonas e preguiçosos vai ver com quantas emoções se faz um romance.




“É como ter um braço arrancado e ouvir o mozart fazendo de conta que não sente a dor”.
Está na tela quando começo a digitar.
Começamos: “Roberto sempre fora alvo de piadas de seus colegas.”
A tela exibe: “Ainda moço percebeu que não daria para os negócios como seu pai.”
Digitamos: “Os negócios já eram tradição familiar. Ninguém se atreveria a enveredar por outra profissão.”
A tela exibe: “Sequer nutriam-se expectativas quanto a ele, pois fazê-lo seria admitir que Roberto poderia seguir outro caminho que não o esperado.”
Digitamos: “Você é um peso para a família. É infantil essa sua pretensão de querer ser diferente da maioria.”
“E vocês são patéticos. Querem apenas o que esperam. Veja. Quase nada em nossa vida é nosso. Mas o pouco me basta. Não precisamos ficar doente de preocupação em não perder o que não temos. Vocês são loucos por ter. A obsessão pela propriedade. E tudo o que conseguiram com isso foi ser mesquinhos.”
Digitamos: “Não nos condene por buscarmos a satisfação dos nossos desejos. O conforto do nosso espírito. Que mal há nisso? Você se acha um messias que está aqui para nos redimir. Mas não passa dum moralista. Um tolo moralista.
“Não me interessa a opinião de gente como você. Sim, somos moralista, com muito orgulho. Não finjo para mim mesmo que renunciei aos princípios éticos para não sentir a culpa que fingem não ter. O fato de serem maioria não prova coisa alguma.”
Digitamos: “Prova, simssenhor. Prova que você não é capaz de comungar com seus iguais. Não é capaz de estender a mão nem para dar nem para pedir. Não é capaz da humildade. Não é capaz de admitir que está sozinho.”
“Não. Não estamos sozinho. Temos nossas certezas do nosso lado. Podemos não ser o melhor dos homens, quem sabe nossa verdade esteja errada e eu não viva para outra coisa senão para prová-la. Esse é nosso sacrifício. Pelo menos não somos um ator cínico representando um hamlet que não tem a alma torturada.”
Digitamos: “Enough”
“Você é um mecanicista que se crê dotado duma função…”
Digitamos: “Enough”
“…que precisa executar a todo custo. Tantos jovens deixam…”
Digitamos: “Enough”


Contato Giraldi.
“Não está obedecendo ao comando de novo.”
“… deixam a família para tentar seguir sozinhos, perseguindo o sonho da independência, mas terminam apenas solitários.”
“Não está obedecendo ao comando enough”.
“Não se preocupe. É efeito do último bombardeio. Deverá passar em alguns minutos”.
“Quantos?”
“Seis”.
Digitamos: “Seis”.
“Unidade?”
“Minutos”.
Digitamos: “Passados”.
“Ontem o comando para passar quinze deu pau”.
“Pouco antes do meio-dia, não foi? Efeito de fogo de artilharia pesada da guerra na Coisa Morna. Também notei”.
“Os biguemaquianos também, provavelmente. Nossa defesa automática está de pé”.
“Notei aqui. Apesar das respostas diferentes, pudemos detectar. Essa é a vantagem”.
“Filho, temos de confessar, você não foi desejado. Quando nasceu, não foi amado.”
Digitamos: “who”
“Por isso hoje acha que é o jesus sob disfarce. Ficou meio esquizofrênico”.
“Vê? Interferência. Não responde who. Associaram uma nova forma variável ao estado pregnant.”
“Pode ser que estejam operando a partir da costa do pacífico. Obviamente não estão conseguindo explorar as moléculas unilaterais. Essas moléculas tendem a produzir uma ocupação integral da capacidade de cálculo e assim deixam de atender às necessidades mais pragmáticas.
Então testemunho o seguinte diálogo:
“Olha, parece algo muito mais importante. Mais excitante que política, arte, leitura. Caótica e conservadora ao mesmo tempo. Tática do nãoconfronto, parece.”
“Note a distinção. Um rato grande. Mas é mais que um.”
“Cinquenta ao todo: vinte e cinco para cada uma. Ainda há o perigo de que as mulheres sejam devoradas. Depende muito do papel que vão depesempenhar.”
“Ainda a mente acha que deviam ser banidos.”
Digitamos: “Veja, sotaque paraguayo.”
— Sim — Giraldi.
O diálogo continua:
“É exatamente esse o problema: não passa de mera representação de papéis. Desincumbência de obrigações.”
“Agora estão executando o processo de restabelecimento de algumas das conexões: processo de reunião.”
“Alguém mais sabe?”
“Há quem.”
“Quer dizer que tem alguém assistindo neste momento?”
“Bem, esse é um dos tabus. Não se preocupe. Os nandeílsones receberam treinamento para filtrar esse comportamento. Foram dotados de alguma sensibilidade. Com eles o risco que as mulheres correm é outro.”
“Hoje não se fala muito disso mas foram eles que deram um impulso decisivo no projeto.”
“O Escritor de Sucesso admite ter sido ganancioso, que se deixou arrastar. Que não passa dum deformador. Agora tenta alegar visão do universo mais antropológica, não rigorosamente filosófica. Mas não há mais tempo, não lhe parece?”
“Sim. Pior que a diversidade pellegriniana, o que inebria hoje é a variedade. Pior: variabilidade.”
“Oração traduzida em ação.”
“Escrever, ato saneador. Poder de cura. Mas não pode se limitar a quem escreve. Deve servir às pessoas. Um jardim que você se prepara a vida toda para cultivar, cada dia mais treinado a identificar as ervas daninhas, mais atento para distingui-las das plantas nobres. E principalmente estado de alerta permanente para não se deixar enganar pelas flores. O maior perigo: as flores. Ofuscam os olhos, te deixam cego para o que realmente importa: embelezar o mundo. Mas todos caem na armadilha hipnotizados pela façanha de terem produzido flores belas and the next minute se acham proprietários. Alegam não ter culpa. Mas não sabem fugir do encantamento. Requer disciplina. Incomensuravelmente.”
“O Escritor de Sucesso não quis acreditar.”
“Então cometeu o pecado capital: cultivar a flor de plástico. Pode-se perdoar isso a todos, menos a gente como ele. Descarado. Ainda quer que enfeitemos a mesa da sala com ela. Sabia que levaríamos em conta sua reputação de bom jardineiro. O que é um pecado ainda mais grave. Infâmia das infâmias. O Decorador da Vida emporcalhou nossa mesa de centro.”


“Seu papel de jardineiro é definido pela forma como ele reage aos eventos. Por isso não lhe cabe reivindicar coisa alguma pelo que faz. Mais que todos, ele deve se munir dum espírito de respeito em relação a todos nós. Tal como um militar que se prepara para obedecer ordens: seu dever não é perguntar por que, mas apenas obedecer. Cegamente. Irrefletidamente.


Estamos preocupado com as atitudes de Giraldi. Não queremos ofendê-lo mas a forma como o testamento foi redigido…
Finalmente surgiu a oportunidade para destruir a “casa”. Ele fica o tempo todo nu. É o trabalho dele. O Escritor de Sucesso tem as pálpebras sujeitadas por presilhas para impedir que feche os olhos. Os nervososimpacientesávidos coelhos gigantes correm dum lado a outro dentro da cela. A precisão é a marca que está em tudo — uma precisão que você não está acostumado no diadia.
— Dinheiro não tem nada a ver com isto — O Ipsius Ego diz. — Estamos buscando afeto. O afeto doce dos braços duma mãe. O afeto terno dum pai que agradece o filho por ter nascido. O resto não interessa.
— Tudo é acidental. — O Escritor de Sucesso suplica. — O que somos, onde nascemos, onde vivemos, a língua que falamos, a profissão que escolhemos. Tudo. Você quer me punir pelo que as leis do universo fizeram ou deixaram de fazer?
— Pode-se dizer que sim. — O Ipsius Ego repousa uma das mãos no corpo da jovem. — Puxa, está morta. Os olhos frios na cabeça decepada já não refletem o mundo. Mas o corpo ainda está morno. O calor deve perdurar uns oito minutos. Quer aproveitar essa nesga de vida? Se quiser mando levarem o corpo até aí.
— Aaaaaaaaaah. Pelo amor de Deus.
Dois assistentes recolhem o corpo e saem da sala enquanto o Escritor de Sucesso é desamarrado. Pela tela observamos os assistentes entrar na cela com o corpo, depositando-o no chão em frente ao Escritor de Sucesso, que se agacha, introduz os braços por sob o corpo, deita-o no colo e o abraça, tombando a cabeça sobre o peito.
— Quer agradecer a deus agora? — O Ipsius Ego pergunta. — Você tem razão, tudo é acidental. Tudo é acidental. Mas por que as coisas ruins só acontecem com os outros, nunca com você?
Embora atordoado de dor, o Escritor de Sucesso tem forças para espantar-se:
— Isto não é ruim?
— Surpresinha.
De repente todas as telas exibem a izildinha ainda amarrada dentro da câmara. O Escritor de Sucesso põe-se em pé repugnado dum salto, tentando atirar longe o corpo que tem no colo.
— De quem é este corpo?
— Não tem importância. O que interessa é que sua linda princesa ainda está viva.
— Pelo amor de deus, me deixe falar com ela.
— Ainda não. Primeiro temos uma obra a criar.
— Que tipo de obra?
— Um romance. Parecido com as dezenas que você já escreveu.
— Sobre o quê?
— Sobre uma jovem que está nas garras dum facínora doente sanguinário ansioso por disseminar a dor por toda parte.
— Deus, não. Não brinque com nosso coração dessa maneira. Me mate. Suplico. Me mate sem me torturar assim.
— Neinneinneinneinnein. Você é um cara inteligente, meticuloso e organizado, caso contrário não teria escrito os belos livros que escreveu, e portanto sabe que a criação requer algumas formalidades. Não sabe?
— Parâmetros...
— Que seja. Discussão velha. Sempre haverá quem defenda a predominância da forma patati patatá e quem advogue the other way around. Tipo da chiquenandeguesitueichion. O que deve ficar claro é que a beleza não é produto do aleatório. Concorda?
— Sim.
— Que temos essa mania besta de atribuir ao aleatório toda beleza de cuja existência estamos certos mas que não podemos compreender. Concorda?
— Sim.
— Você mesmo em seus livros deu pouca importância a conceitos como sorte, azar, destino, fortuna, etc. Grande parte do fascínio que suas tramas exercem nos leitores provém da consistência. Lógica. Coesão. Coerência. Continuidade…
— Por favor, não faça mais enumerações. Apesar de tudo nossa sensibilidade ainda está viva.
— Sempre houve consenso de que suas soluções literárias eram satisfatórias. Mas a razão por que estamos aqui é outra: os problemas da sociedade, o reequilíbrio das forças sociais, a revisão das políticas existentes.
— O que um escritor tem a ver com tudo isso? Nosso trabalho é escrever, não dar de comer aos pobres.
— Neinneinneinneinnein. Todos temos a obrigação de dar de comer aos pobres.
— Mas já fazemos a nossa parte. Nossos livros contribuem para a conscientização dos robervaílsones, o que por sua vez contribui…
— Quando ouço falar em contribuição temos ganas de sacar nossa seringa de eliessedê. Papo mais furado. Mesma cascata usada pelos padres. Ó, nossa missão é proclamar a palavra de deus. Que por sua vez disseminará a bondade e a solidariedade. Que por sua vez o Caralho. Enquanto nos embromam eles vão comendo nossas mulheres, nossas filhas, nossos filhos. Estamos de saco cheio dessa teoria da missão sagrada. Ou passamos fome todos ou ninguém.
— Ou todos passamos ou ninguém passa fome seria melhor.
— Fica meio desequilibrado. Melhor ainda: ou a fome é para todos ou para ninguém. Isonômico. Mas assim não vamos chegar a lugar algum.
— Não. Tudo bem. Aceito dar de comer aos pobres. Aceito qualquer coisa. Basta dizer.
— Quisera fosse tão fácil. A questão é verossimilhança, o último termo que ia enumerar antes de ser interrompido. Como bem sabe, a ficção deve ser verossímil para ser considerada de qualidade. O que significa isso? Significa simplesmente que para o beócio do leitor só têm sentido os eventos que ele acha ser verdadeiros. Isso obviamente nada tem a ver a com a vida como ela é, Uóxito. Pouca gente dá atenção quando os grandes poetas colocam o dedo naquele lugarzinho que o dedo foi feito para ser colocado. Vamos fazer de conta que ninguém é de ferro. Mas tem uma coisa que faz tempo, muito tempo, queremos dizer a você e seus pares. Sabe o quê? É esse privilégio de tirar vantagem da própria dor. O que mais acabrunha um candidato é ver um verdadeiro artista alimentar-se da própria dor. Então o candidato, invejando essa capacidade de sublimação, tenta imitá-lo, rabisca asneiras no papel, mancha telas com borrões incôngruos, pega um violão e toca a esmo, fingindo saber o que sente, pior, fingindo expressar o que sabe, mente aos outros e a si, mas a necessidade estética nunca é satisfeita, pois ele passa a mil quilômetros do que finge sentir, e por isso olha o artista genuíno feito você e não entende e fica puto. O Filhodaputa sofre e ainda ganha grana e fama e Buceta com isso, rosna desacorçoado. Eis a grande injustiça. O que, cá pra quem diz esse tipo de bosta, também a mente acha. Os verdadeiros heróis da humanidade não são os goethes nem os shakespeares nem os wagners nem os schuberts que ensinam a todos os demais o que é a beleza. Heróis são os pobre-coitados que guardam o incêndio dos infernos no peito mas não sabem emitir sequer uma fumacinha pra mamãe se orgulhar.
A teoria da gratificação em gráfico que cobre em grupos o separador integrante mínimo dum umbral linear arborescente e cíclico circular formal por caminhos mais curtos com complexidade e problemas dinâmicos.
Há pecados que devem permanecer intactos. Se tivesse nascido em outro século outro país não teria tropeçado na crise política na qual a mente se acha agora. Eles são, muito, mais, serão ego-crítico, escutarão? a crítica. tropicais. A alegria dos janaílsones pobres é tão limpa, tão claro. independente. público. Por que não estão mudando a doutrina deles/delas? Desconfiança.



Giraldi escreveu L'impossibile à luz dos preceitos paraguayos com algumas pitadas da estética regional, frases que se alternam em incessante intercâmbio de tensão e relaxamento como se competissem por determinar o estado de espírito do leitor. Que nunca tem oportunidade de descansar da leitura para ver como isso o afeta por dentro.
— A competição mortevida — Giraldi explica. — Também a compensação mortevida. Eterna atração mortevida. O pensamento inovador que fechará o vazio entre literatura e matemática, ciência e filosofia. O intelectual não diretamente ligado a pesquisas ou experimentações finalmente ocupará uma função digna do nome na sociedade. Unidade entre palavra e ação, enfim. O artista converter-se-á em ser concretamente atuante que de fato mudará o destino dos homens. Chega de especulação infrutífera. Basta aceitar meramente o primado da razão. Não foram cinco mil anos de busca? Pois chegou o momento de acolhê-la e converter-se. Estamos ciente de que a transformação não será fácil assim mas agora que conseguimos isolar a alma tudo será diferente. Está decretado o fim da luta contra a natureza. O fim dos ciclos. Chega da ansiedade por raízes. Acaba aqui a incerteza sobre a verdadeira validade de tudo que já foi pensado antes de nós. Não haverá mais razão para os tradicionais conflitos entre masculino ou feminino, natural ou sintético, couro ou plástico, preto ou branco. Podemos dizer que todo o passado hoje é uma ficção. Já imaginou um mundo sem o mínimo risco duma guerra nuclear? O novo sistema anula automaticamente essa possibilidade. E não há, repito, não há como o burlar, pois só funciona de acordo com suas próprias regras. Se alguém tentar mudá-las, o sistema prontamente identificará a alterações e reassumirá seu estado natural. Sua conversão ao movimento antibélico não se deveu ao emocionalismo ou a pressões de colegas. Isso é certo. Há mais confiança entre nossos países, mas infelizmente não eliminamos completamente a desconfiança. Você tem de amar. Tem de querer. O que aconteceu foi um incidente isolado. Alguns intelectuais podem aprovar as mudanças, outros não. Não importa se está quente, e é para os convidados. O poder político é ilusório. Hoje em dia comentário satírico é tinta desperdiçada. Galvanizado por uma sensação de grande nacionalismo desesperado. Hoje somos pessoas diferentes.
Estamos totalmente felizes. Amanhã e depois. Abolimos a ideia de ligar a ideologia às relações humanas. Há pessoas assim. Há coisas piores para ser. Associaria a cachorros. O mundo tem a quantidade certa de poetas. Por razões de pesquisa tivemos que comprar um barco. Quando necessitam de intimidade, eles têm de escolher. Com exceção de armas nucleares, um inimigo não pode alcançar a affelandrepublik. Revelar a loucura que fingimos não existir. Nossos parentes, claro, nos imaginam um bolo de carne biguemaquiano assado semana passado. A ideologia de Los Angeles está à beira da cova. Todos devem ser iguais. Os janaílsones e os roquefellas.
Se tiverem de nos extinguir, que nos arranquem o coração.

continua em...