Ontem, domingo, dezenove de outubro de
dois mil e quinze, minha pequena pitangueira deu o primeiro fruto. Deambulava pelo
quintal, passeando distraído o olhar pelo céu, quando o vi. Não foi
propriamente ver, porém, e sim um vislumbre apenas; que, quase no
mesmo ato, foi aspirado pelo exaustor da consciência, se dissipando na neblina da
memória. Ainda distraído, dei meia-volta, passei pela porta da cozinha, fui
cuidar distraidamente da minha vida de que não sei cuidar.
Hoje cedo perambulando pelas ruas me
lembrei da pequena pitanga e a angústia me riscou o estômago num golpe gelado. Teria
sido sonho? Não, se apressou a negar o que ainda me resta de consciência. A pitanguinha
existe de fato. Ainda tenho nas retinas o pontinho colorido oculto por sob as
folhas do arbusto.
Se existe de fato, ponderou o resquício
de lucidez, que é que vamos fazer com a pequenina? A primeira hipótese a subir à
escorregadia superfície do meu cérebro foi: deixemos a pobre exatamente onde
está. Que se deixou imediatamente substituir pela segunda: vamos chupar a
coitada só pra ver que gosto tem. Vai ver, nem é pitanga. Vai ver, ocorreu um
acidente genético causado pelo buraco de ozônio ou pelos eflúvios malignos
exsudados pelo lulopetismo. Esta foi logo soterrada pela terceira: arranquemos
a porcaria sem dó nem piedade e a arremessemos por sobre o telhado e paremos
com essa frescura que periga resvalar num estéril exercício de metafísica.
Voltei correndo para casa e fui averiguar
se a pitanga de fato existia. E se ainda estava lá.
Existia. E estava.
Afrouxei o nó no peito, aliviado.
Já tive árvores frutíferas em minha vida,
quando morei em minha xácara no Embu. Herdada de papai, como contei dia desses.
Em sua maioria eram bananeiras e limoeiros. Mais precisamente, sessenta das
primeiras, oito dos segundos. Por uns tempos tentei outras espécies, que não
vingaram, em parte por causa do clima serrano demasiado quente para peras e maçãs
e demasiado frio para frutas tropicais como abacate, manga e hmmm maracujá,
especialmente criado por deus para compor a kaipiroska; e em parte em razão
da minha inépcia agrícola. Não sou nem nunca fui cultivador competente, nem de
frutas nem do que quer que seja. Me faltam as principais qualidades para tal, a
começar da paciência, a continuar com a capacidade de atenção para os detalhes
e a terminar com essa minha crença meio alegórica e nebulosa de que o êxito no
trato das coisas tem algo a ver com um lance de dados. Me lembro direitinho de
quando plantei a primeira muda de laranjeira, de pouco mais de meio metro de
altura. Acordei cedo na manhã seguinte e fui lá ver se a primeira laranja já
tinha brotado. Só faltou levar o espremedor. E logo vieram as pragas, dos mais vários
tipos e colorações. Meio decepcionado corri para a cidade e o dono da lojinha me
recomendou um ou dois pós brancos, que precisaria diluir em água e aplicar c’um
borrifador. Entusiasmado com a simplicidade da solução, segui as instruções. Duas
semanas depois a laranjeira amareleceu, perdeu todas as folhas e começou a
secar. Excesso de defensivo, me explicou o rapaz. O senhor acabou matando as
pragas e a planta junto. Excesso de sofreguidão, expliquei a mim mesmo, em vozinha
baixa. Que vem me matando aos poucos desde patati patatá.
Minha pequena pitangueira está num vaso grande
de plástico preto. A transplantei dum vaso menor quando nos mudamos de São
Caetano. Em São Caetano brotara silvestre em meio a centenas de outras mudas de
pitangueira e amora, há mais ou menos dez anos. Desde então venho tentando mantê-la
viva, num misto de diligência e apreensão. Ano passado quase morreu de sequidão
sob a canícula trazida pelo El Niño e a crise hídrica protagonizada pelo bonachão
molengão Alckmin. Puxei o vaso para a sombra e dobrei a dose de água. Aparentemente
deu certo. Hoje minha pequena pitangueira viceja numa miríade de folhas planas
e amplas dum verde forte e sólido e saudável. Até me deu um frutinho. Quando voltei
para me certificar se ainda estava lá, senti os olhos úmidos. Obrigado, minha
bela, agradeci mentalmente, me detendo em seguida antes de cometer um novo Meu pé de laranja-lima.
Tal como em meu quintal sulsancaetanense,
há pitangueiras por toda parte nesta área de Sampeia, trazidas pelos meus
amigos sabiás-laranjeiras. Algumas esquinas estão literalmente forradas dum
tapete cuja cor não pode ser definida senão como de pitanga. Não é de laranja
nem de abóbora. Passamos, eu, Zezeí e Quico, pisando nos frutinhos lamentando não
poder colhê-los. Daria pra montar uma barraca de feira. O sumo colorido, de dar
água na boca, enodoa a calçada de manchas escuras. Olho para o alto desapontado
qual a raposa da fábula a namorar as uvas. Uma ou outra até seria alcançável, se
desse uma trepadinha no muro, se não tivesse de segurar a guia do Erro de Deus.
Mais adiante este pé de amoreira, em baixo, desgalhado e desfalcado de frutos pela
turba de paulistanos esfomeados por sabor e poesia, em cima, abarrotado de
amoras espigadas, escuras e fartas de sumo, que desabam rumo ao piso de cimento
já arroxeado mal toco no galho na tentativa de as apanhar.
É uma pena que a vida nos imponha a mecânica
do devore-ou-seja-devorado sem choro nem vela. Esquerdistas pensam que há saída
possível desse imperativo. Talvez possa haver em paisinhos minúsculos e riquíssimos
como os nórdicos, sem grandes preocupações com desemprego e outras doenças
insanáveis de países de populações pobres como todos os que têm mais de cem
milhões de habitantes exceto EUA, Japão e quejandos.
Darwin foi o mais frio dos cientistas e por
isso mesmo o mais certeiro. E o mais desprezado por religiosos despeitados
dados à fraude. Fraud, digo, Freud, mais sagaz e mais genial, não pôde acertar
tanto quanto Charles, pois seu campo de estudo, a mente humana, é inconcebivelmente
mais vasto que a biologia e certamente infinito. Quem ousaria pensar – e proclamar
– que o homem não passa dum joguete entre duas pulsões, a da vida e a da morte?
Vivemos, tudo leva a crer, em estado constante de pingue-pongue entre essas duas
inexoráveis senhoras. A partida, em casos perdidos como eu, pode chegar a
alucinante e mesmo perigosa. Minha pulsão da vida está sempre levando de goleada.
Se dependesse do meu instinto de sobrevivência, a humanidade não teria resistido
duas semanas. Os dinossauros se foram mas hoje dispomos de empreiteiros e
lullopetistas no lugar, o que é incalculavelmente pior.
A pequena pitanga aguarda humildemente na
sombra das folhas que seu destino se cumpra. Observo-a intrigado. Mais,
confuso. Ainda não tomei minha decisão. Serei mesmo obrigado a? Por que o mundo
simplesmente não deixa, ou espera, que as coisas se resolvam por si mesmas? A
Grande Mecânica por trás de Todas as Coisas bem que podia falhar só desta vez.
Posso abandoná-la à sua própria sorte,
deixar que caia de madura ou sirva de alimento para um dos meus camaradas
alados. Posso cometer o insensatez de atirá-la por cima do telhado, mas essa
alternativa, graças àquele ser a quem todos louvamos por sua insondável
sabedoria, já a descartei. Ou posso, ai que martírio, comê-la. Só de
curiosidade de saber que gosto tem minha primeira pitanga.
Enquanto a última opção brinca em meus
pensamentos, a frutinha parece adquirir um colorido ainda mais intenso, como se
corasse de vergonha ou de aflição, se iluminando feito uma lanterninha japonesa.
De repente se apaga. Não, concluo, não está preocupada com meu dilema. Nasceu sabendo
que esse tipo de dúvida não presta para nada. Veio a este mundo para ser comida,
propiciar um tico de vitamina para anêmicos e afins. Não sentirá dor, sendo desprovida
de sistema nervoso.
Eu, porém, não sou. Nem por isso sou
poupado quando escuto asas a adejar pouco metros acima de mim. Um sabiá-laranjeira
gigante, de bico duas vezes o meu tamanho, num voo rasante pelo quintal, de
repente me agarra pelos ombros, me carregando para o alto do edifício do outro
lado da rua. No ninho, meia dúzia de filhotes aguardam a refeição. Para sorte dos
pequerruchos colossais, estou acima, bem acima do peso. Mamãe-sabiá me destroça
em pedaços miúdos, que distribui entre a prole: cabeça, que vai para o primogênito,
braços, pernas e por fim o tronco, subdividido e repartido.
É começo de primavera, a espécie está em
plena temporada de reprodução. Espero não fazer mal para os esfomeados espantalhinhos
que ainda nem trinar sabem. Isso que dá ficar tecendo filosofice em torno duma
pitanga. Calma! Calma que tem pra todo mundo...
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