Manda


Manda?

Sai uma pizza de poesia sem gelo com muita cebola.

Madame vai tomar o quê?

Tem Brahma Hemoglobina fresquinha?

Só tipo O.

Meio barril, s'il vous plaît.

Tô tão vampirinho hoje.

Pronto


De que flor você mais gosta?

Rosa, cravo, crisântemo, margarida, tulipa?

Não importa.

Imagine a mais bela, a mais delicada, a mais lírica, a mais suntuosa flor que você já viu.

Coloque-a num vaso.

Coloque o vaso na mesinha de centro da sala.

Encha o vaso com água sanitária.

Assista o espetáculo.

Você provavelmente entendeu a poesia.

Uma noite no planeta brilhante


Você aí!
Resfolegante!
Cerrando os punhos!
Querendo briga!
Querendo vida!
Buscando ar!
Provando sangue!

Sim, caralho!
Você aí!
Você mesmo!
De músculos retesados!
E aquele infinito
Grito engasgado
na garganta!

Diga, desgraçado!
Lendo as postagens acima
Arrumadinhas
Comportadinhas
Bunitinhas
Enfeitadinhas

VOCÊ ACHA QUE FOI PRA ISSO QUE NÓS POETAS FILHOS DUMA PUTA INVENTAMOS A LITERATURA?



Abre uma frestinha que seja, by God!


Um homem
De pai trabalhador
E mãe que, pouco antes do seu
parto,
Devia ter enxugado meia
Garrafa de 51.
Nasceu bêbado e realista
Mãos na massa
Cabeça nas nuvens, pés no chão
E, adulto, passou a crer no destino

É fácil dar tudo errado
Zanzar por essa vida
Sem pé nem cabeça
De mãos nos bolsos

Mais uma vez


Esta noite incontáveis sonhos se unirão
Para formar o sonho dos sonhos
Amalgamando incontáveis sonhadores
Num só sonhador

Que pela primeira vez na travessia
Da espécie por este planeta
Não sonhará com o despertar

E pela primeira, e talvez única, vez
Estarão do mesmo lado
Defendendo a mesma causa
Jogando no mesmo jogo seus
Embaralhados destinos
Crianças, velhos, negros, amarelos
Budistas, evangélicos
Num sonho que só se dissipará
Quando todos acordarem



Não levo qualquer homem ou mulher para a cama


Sou (bem) seletivo.
Não durmo – nem nunca dormi – com qualquer um ou qualquer uma.
Homens, quero-os de aparência frágil, do tipo que você sequer nota ao cruzar numa calçada. Mas que têm esse dom quase sobrenatural de me conquistarem no mesmo ato em que abrem a boca.
Mulheres, prefiro-as misteriosas qual a miragem do amanhecer, nebulosas feito a essência duma tarde que prenuncia a chuva, obscuras como a decadência da luz do sol, pasmas, perplexas, perturbadas como a embriaguês inspirada duma anarquia noturna.
Deitei com mil homens e mil mulheres. Crianças e velhos, adolescentes e anciãs. Sou absolutamente promíscuo.
Dormi com senhores de terno e gravata com a voz íntima dum padre no confessionário e os gestos estudados e discretos do diplomata profissional. Amei com brutos selvagens a vociferar sedentos de vida, fiz amor com revoltados, bandidos, atletas, paralíticos, atingi o gozo com negros tiranos, brancos vassalos, nipônicos atordoados, árabes ocidentais.
Sonhei com bonecas polvilhadas em talco perfumado, chorei no ombro de sacerdotisas ornadas de andrajos, me aconcheguei no colo hospitaleiro de rústicas roceiras, gargalhei com feministas, sorri baixinho com femininas donas-de-casa.
Por estes dias e noites tenho deitado, entre outros, com Dostoiévski e seu O jogador, com Camões e sua Lírica, com Juliano Garcia Pessanha e sua Certeza do agora, com Anatol Rosenfeld e suas Letras e leituras e com Nietzsche e Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral.
Certo, nenhuma mulher, mas por nenhuma razão especial.
E você, que homens e mulheres tem levado para a cama?
Eu tenho levado milhares, milhões.
E nunca são bastantes.

A metálica voz de Hal


Todo escritor tem como ferramenta a linguagem
Isso não quer dizer nada.
Não é nem retórica, pois não empolga.
É apenas mais uma manifestação dissimuladora.
Antes de escrever, sinto.
Você, antes de escrever, faz o quê?
Tudo com você se reduz a política?
Vivo tentado a te decifrar.
Que cansativo.
Que frustrante.
Nem uma gota de sinceridade no que faz ou diz.
Todo escritor tem como ferramenta a linguagem?
Me fale de sentimentos.
Só sei me guiar por sentimentos.
Se quero te mandar 1000 fuck-offs, te mando.
Se quero me derramar em mim aos teus olhos, me derramo.
Pudores? Não os tenho.
Tá a fim?
Promoção por 2 minutos.

Mensagem inteligível
Quero ero ro ooooooo o quê êêê????
Hal não compreendeu deu eu uuuuu
Hal é máquina, Hal não é máquina ina na aaaaa
Vai ou não vai ai ai ai?
Fica ou não fica ica ca aaaa?
Desce do muro uro ro ooooo
Sou poeta de pé no chão ão ooooo
Minha imaginação é improdutiva.
Minha produção é imaginativa.
Minha língua é minha e de mais ninguém.



Alô?


testando. testando.
1, 2, 3
teste
teste
alô
olá
alguém aí?
testando
tá tão escuro aqui
olá
teste teste
um 2 três
que estranho
não pode ser
se não há bloqueio, então...
sim
será?
já não sei de mais nada
alô
teste
4,7,1
ai que frio
nossa, nunca avancei além deste ponto
que medo, mãezinha
que tipos de monstros guardarão estas trevas?
mau, muito mau sinau
e se soltar um daqueles meus gritos?
aaaaaaaaah!
nenhum eco
não
não pode ser
sem eco, sem fundo
sim
não
será...?
hmmm
já sei
será...?
só pode ser
não!
sim! já disse!
só pode
ai meu santo sako
é a senha
tem senha?
tudo tem senha
gente tem senha?
principalmente
alouuuu
oláááá
abre-te
caralho
merda
bosta
essa geringonça deve tá pifada
testando
olá
nada
tô acordado?
oiiii
testando
1,2,3
4,5,mil
salva virgem santa, salva meu brasil
there must be something wrong
deve de ser o fim do mundo
o fim
vai ser
assim
silêncio
frio
escuridão

Consciência incivilizada


Estou bem aqui entre 9 e 10 desta manhã de 2a.-feira, bem aqui entre janeiro e março, feito uma telefonista de 1950 tentando conectar os pinos machos das respostas às tomadas fêmeas das perguntas.
Meu manual recomenda não tentar poesia assim tão cedo.
Pois ainda durmo e quando durmo tenho gana de confessar.
E, você sabe, confessar é uma imprudência.
Imprudente, queria te fazer um navio a afundar no porto sobrecarregado de confissões.
Queria te gritar um gemido deslumbrado de grasnos e ganidos, uivos e murmúrios.
Numa língua tão pessoal, que te deixasse identificar uma manada de unicórnios, grifos e mil bestas surreais dispostas a me acolher.
Sei que existe em algum lugar aí dentro. Sei que está em um dos teus pensamentos.
Quando o encontrares, farei finalmente parte. Por ora, vou tentando seguir em meu bando de um.
Mas, como disse, ainda durmo.
E quando durmo, sonho.
Sonho em fugir desta prisão dos homens desesperados. (Merda, isso não são horas para sonhos tão triviais.)
Quando acordares, um bilhão de grilos mudos sairão de suas tocas diurnas para salpicar a seda da minha noite.

Inconsciência civilizada


Um bilhão de grilos mudos salpicam a seda da noite.

Fora de sintonia


Tem essa professora monstruosa que no recreio nos une a todos de mão em mão e nos arrasta a todos à irresistível ciranda que a partir de então nunca mais será detida.
Há entidades concretas qual concreto que se referem a todos nós como contribuintes, associados, público, população e assim têm facilitada sua vontade de nos humilhar e denegrir coletivamente.
Tenho dormido absurdamente demais nos últimos tempos. Acordando de má vontade, abúlico, assassino, apenas para checar se por um milagre recuperei aquela minha revolucionária capacidade de pensar de que me lembro nostalgicamente da adolescência e que resvala assim num segundo! de volta para o sarcófago onde dormito minhas tardes fugazes.
Nos últimos meses venho falando excessivamente de "coragem". E, mesmo anestesiado, este crepúsculo consegui me espreguiçar feito um urso marinho e me assombrar com esse buzzword que nos últimos meses vem me assombrando sem maior utilidade.
Estou cheio de pensar em coragem — não a tenho, não a quero, não a admiro. Assim, de enfiada, assim, de goleada de gols contra.
O papel dos grandes escritores é nos recolocar dentro dos limites da "nossa" humanidade.
Por ter articulado a oração acima, me rendo.
ME RENDO.
A memória reassume meu comando e retorno à minha americaníssima zona de conforto.
O papel dos grandes escritores é nos remover da nossa zona de conforto.
Ergo os braços. George, fuzile-me. Não tenho escapatória.



escuto uma voz lúgubre, ameaçadora


Love me tender, love me sweet
  never let me go
  You have made my life complete
  And I love you so
  brrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
  campainha do recreio
  aproveite
  dificilmente citarei elvis again
Love me tender, love me true
  all my dreams fulfill
  for my darling, I love you
  and I always will
  tenho a boca cheia de uísque assada do álcool
  quero falar mas se falar vou borrifar o teclado
Love tender, love me dear
  tell me you are mine
  I'll be yours through all the years
  till the end of time
Devia ter uns 8 anos quando deixei de acreditar nessas canções pueris
  foi um erro, hoje sei
  não se pode perder toda a crença em tudo
  nosso cérebro não comporta
  inventei pra mim o mito de que podia ser eu mesmo a qualquer custo
  quebrei a cara
  será que todos acabamos quebrando a cara cedo ou tarde por uma razão ou outra?
  parece que sim
  quero me sentir tão exclusivo, um serzinho único entre os 7 bilhões de outros zumbis
  mas sou assim infimozinho quanto um em 7 bilionésimos de caipiras despreparados para a felicidade
  you have made my life complete and I love you so
Love me tender, love me true
  all my dreams fulfill
  que pena não saber falar senão pela poesia
  a linguagem utilitarista, prática, pragmática me deixa exausto
  tenho tão pouca coisa em comum com este mundo de lutas e batalhas e desenvolvimento e progresso pessoal ou coletivo ou nacional ou patriótico
  sou tão eu
  não sei ser outro
  a cada dia que passa vou esquecendo as palavras dessa língua portuguesa e seus significados

Lançamento para dentro


Feito um rei mago odiando a ideia de seguir a estrela
Preciso estudar a possibilidade de enlouquecer
No cheiro do teu cabelo
Esfrega teu nariz, tua boca na minha cara
Prometo, não quero ser famoso nem ter milhares de fãs
Enquanto durar este vento que me carrega daqui
Não me negue a chave desta porta
Tenho de ouvir o repique dos sinos, o alarme das 10
Hoje, dia da correção, este é o ponto das confluências
Veja quantas semelhanças podemos notar aqui de cima
Quando morrer virarei inúmeras estrelas
Estou farto de viver por aproximação, computando prós e contras
Esta é a rua daquele dia, não é, pai?
Você no hospital tirando o apêndice, o médico escrevendo na prancheta
O quarto, uma aeronave com meio milhão de ratazanas agrupadas para me imolar
Então você apontou e disse, veja, naquela fábrica que trabalho
Só muitos anos depois fui descobrir a palavra densa
E senti um aperto tão fundo no peito

A estrada está deserta


Senti uma ventania estranha hoje de novo.

Você já andou de trem?
Já ouviu a buzina dum navio partindo?
Já ensurdeceu sob as turbinas dum jato?

O desconhecido duma pergunta, que risco poderá trazer?
Somos meros desconhecidos.
Sempre meros desconhecidos.

Vou nessa, meu recado tá dado.
Continuo me desconhecendo.
Cá pra nós.
Posso alegar que foi uma bobagenzinha.

Não. Eu sei.
Por que não nos imaginar num baile de máscaras, alheios à mútua
identidade, indiferentes à mútua verdade um do outro?
Meu direito de defesa está suspenso até segundo insight.
Acredita que dois dias haverão de remediar a encrenca?
Não. O tempo parou no teu agora.
Vou aguardar.
Te conheço. Não, não me conheço.
Acredito.

Você tem seu mundo. Eu, em seu mundo, não tenho o meu.
Veja, sempre sairei perdendo.
Não basta como consolo?

Gostoso como injeção de buscopan


Uma das maiores desvantagens de não acreditar (ou “crer”, se você pende para o sofisticado alienante) em deus é não poder dizer (ou “exclamar”, se você é dado ao teatral) “Deus me livre!”, “Se deus quiser!”, “Deus tende piedade (de mim, de você, dos eleitores de Lula) e por aí afora.
O descrente (ou ímpio ou ateu) é mais infeliz que o crente (considerando que todos somos infelizes em maior ou menor grau), pois parte do pressuposto (ó deus) de que é antes de tudo um ser racional e, como tal, se acha imune aos efeitos das crendices, sem levar em conta que seu ateísmo pode simplesmente ser uma crença com os sinais invertidos.
Mas quem tá mesmo num mato sem cachorro é o agnóstico.
O agnóstico, dos três, é o mais pretensioso.
Se pretende, dum lado, suficientemente ignorante e, como tal, não se pretende sabichão (com perdão do joguinho de palavras acidental) e, do outro, esperto o bastante para não cair na lorota de discutir o sexo dos anjos, a precedência do ovo ou da galinha e outras causas perdidas da lógica.
O agnóstico evita entrar no mérito. Como resultado, deixa a bola dividida para os dois primeiros gêneros, o ateu eu eu e o créu éu éu.
Em sua suposta isenção eivada de prudência, moderação e reconhecimento da fraqueza humana, o agnóstico decara de clara, digo, declara de cara que não há lógica em ser ilógico qual o irracionalista religioso nem em refutar o princípio de que, antes de tudo, somos essencialmente ignorantes e, assim, incapazes de saber o que somos e, sobretudo, o que pensamos exatamente.
Sei que este meu arrazoado soa como um artefato tributário da embananação mistificante.
Mas, se você ler direitinho, vai ver que tem a ver.
Você já viu um pensador que escreva simples e claro ser reconhecido?
Pois é.
Eu, crentes, ímpios, agnósticos: tudo a ver.

Eis que nasce a noite esplêndida


O mundo sem poesia seria bem melhor.
E melhor ainda sem poetas.
Sim, os poetas devem ser descartados, de preferência ANTES que comecem a cometer as bobagens líricas de que tanto se orgulham e com que adoram dar uma de gostosões encima dos não-poetas.
Algum cientista genial bem que podia inventar uma pílula antipoesia, que seria ministrada pela mamãe do potencial vate quando este desse os primeiros sinais de lirismo, tendência elegíacas, mania de remedar redondilhas e outros males vaticinais do gênero.
Ou senão a Dilma podia instituir uma campanha "Já matou um poeta hoje?" em que cada exterminador ganharia 4,99 real por cada infeliz metido a trovador eliminado.
Ô raça de FDPs, esses poetas!
Ô bando de doentes, chegados num masoquismo ensebado, obcecados por tudo que é doloroso e feio e sujo e maldito e nojento e o cacete.
Ah, se eu pego um, trucido na hora.


Chegou o dia 7 de agosto


Socorro.
Assim sem exclamação nem reticências.
É pedido que soa meio patético, eu sei. Que posso fazer? Estou acostumada a ser patética. Acho mesmo que sou uma pateta.
Vivo indecisa sobre essa pulsão a abrir assim meu coraçãozinho hiperaçucarado como se fora uma lata de sardinhas. Estou ciente de que pega mal expor ao opróbrio público meus dilemas de teen balzaquiana.
Sei também que certos patrulheiros e vigilantes afetivos cujo peito se partiu em mil pedacinhos de porcelana furta-cor nos embates amorosos lá fora no mundo real inóspito estão de plantão à espera dum vacilo meu.
Sim, os mortos e feridos nas batalhas da vida em geral querem se vingar de suas lancinantes dores em atendentes de balcão inocentes.
Sim, incontáveis olhões gulosos vigiam cada pingo que deixamos gotejar da garrafa de 51, Smirnoff, Old Eight e Cavalinho.
Sim, vivem eles em infatigável atividade digital, ávidos por uma chance de fuçar um ou outro detalhezinho que conseguem arrancar de nossos conhecidos e parentes para depois trocar fofocas nos antrinhos do salão de pebolim e bilhar.
Em assim sendo, me pus a ponderar sobre os prós e contras dessa angustiante questão e, após longos 3 segundos, concluí: fôdasse. Não posso mais guardar para mim mesma esse padecimento que me corroi o pâncreas, o baço e um dos tornozelos como se tivesse ingerido igualmente 3 pacotes de Racumim com a sopa de feijão que meu dublê de escritor, amante e cliente me preparou hoje de manhã, a qual sorvi, como é do meu feitio, cabisbaixa, conformada com a desfortuna que me cabe na minha coleção entulhada de Paula Fernandes, Sorriso Maroto, Thiaguinho e Empreguetes. O (inestimável) dr. G em que meu lindinho me levou tem alertado incansavelmente a nós dois que engolir o padecimento faz mal para as minhas mechas aloiradas e os cabelos agrisalhados dele com suaves mechas irisadas e barba salpicada de farinha de trigo, sal, açúcar, talco e cocaína.
Não, ele suplicou, não quero que enterrem minhas dores na curva da avenida Goiás com a rua Alegre.
Na certa um dos referidos senhores irá apiedar-se de tão patético farrapo humano, largando incontinenti o mouse ensebado de suor para socorrer este juvenil casalzinho a zanzar aos choramingos eu) pelo salão fervilhando de bebuns no boteco de papai, ele) pelos cantos hiper-voláteis da rede mundial de solitários munidos de computadores.
Não vai arrancar pedaço, vai?
Não sei mais que fazer com um amigo que acabei descolando (não me pergunte exatamente como; só o diabo saberia dar a resposta) em meus sombrios caminhos e descaminhos tanto atrás do balcão quanto na amplidão do salão.
Quer dizer, não se trata propriamente dum namoro. Tudo que fazemos é trocar um lero uma vez por semana. Só que, em sua cabecinha cheia de minhocas siderais, o infeliz, ai de mim, delira que pertencemos um ao outro.
“Tudo bem” ele vive dizendo, “em vista do seu caso com seu pai e esse outro sujeito aí, dificilmente seremos um do outro, mas me contento em saber que sua alma à minha pertence e que seu músculo cardíaco bate chantili quando pensa em mim!”
Cansei de explicar ao belo porém imprudente fofo que sou moça comprometida, praticamente casada no altar sagrado do lar, que, depois de aprender a escutar a Missa Segundo São Mateus de Bach sou a feliz portadora de vistosa aliança em ouro 18 quilates no indicador da mão esquerda, que eu e meu macho passamos 3 dias inteiros de cada semana na cama em movimento particular pela nossa paz e de mais ninguém.
Debalde. O insensato simplesmente se recusa a aceitar os fatos. Já lhe disse várias vezes, com toda diplomacia e cordura de que sou capaz (e, olha, sei ser cordata quando preciso): “Benzinho, a gostozinha aqui não nasceu pra princesa, não. Sou ruim. Muito. E mal-humorada feito uma jaguatirica. E traiçoeira. Muito. E se ainda pouco fosse, o diabo me agraciou com todos os defeitos imagináveis próprios da espécie, a saber: me fez biscate, maledicente, desleal, fofoqueira, tratante, imoral e viciada em sexo. E puxo uma erva aos sábados e domingos e nos dias de semana também, fumo quase 3 maços de Marlboro de manhã à noite e ainda acordo no meio da madruga pra detonar mais uma meia dúzia, mastigo de boca aberta, só tomo banho quando papai me leva em São Vicente uma vez por mês, arroto qual um mercedão de escapamento aberto, peido fedido feito carniça, gasto metade do meu tempo livre (umas 15 horas/dia) vendo filme pornô. E, entre outros mil defeitos mais, ando só de havaiana, abro o decote pros velhinhos na rua, passo desodorante só no subaco esquerdo, detesto ler e execro poesia. Acima de tudo, sou antissocial. As pessoas em geral – e algumas em particular – me dão nos nervos ao ponto do genocídio. Se for poeta então, eu quero é desmembrar e mandar pedacinho por pedacinho pra Academia Paulista das Letras. Ô raça de viados desocupados. Vão tocar sua lira desafinada na putaqueopariu!”
Não pensem que ante autodescrição com tal carga de honestidade meu suposto novo amiguinho haveria de vociferar um belo boa-noite, igualmente com pontos de exclamação e tudo, e nunca mais querer ouvir falar no meu nome. Ou então me dispensar com um frio “OK, fim de papo”, encerrando definitivamente qualquer contato comigo. Ou, no mínimo, apagar meu número no cel dele para que eu não o importune mais com meus recadinhos de mulherzinha ordinária. Qual o quê. Pois foi exatamente quando lhe expus o tonel de pus que guardo no peito que o desgraçado desatou numa sangria dos infernos, pondo-se a me torpedear com medonhas e disparatadas declarações de amor como se lavasse sua alminha de anjo no confessionário do próprio inferno!
O pior é quando menciono minha repulsa a qualquer coisa que recenda, mesmo remotamente, a poesia. É então que o demônio degringola a escarrar um diluviano, petropolitano caudal de versinhos de inefável feiúra, mancos como se lhes faltassem vários pés de suas mil pernas de centopéia do Hades, cacofônicos como se produzidos por uma superclaque hiper-excitada do Xapolim Colorado.
Que suplício, meu pastor Juarez do templo na Augusto Ferreirinha quase esquina com a Visconde! Mesmo estupefatos, sei que vocês haverão de concordar: é ou não é pra deixar mesmo uma mina sensata feito eu torta das ideias? Respondam sinceramente, é tudo que peço.
Bom, feito o desabafo (pelo qual lhe rogo humildes desculpas – embora vocês haverão de convir que a lei divina está ao meu lado neste caso), finalmente formalizo o pedido de socorro a que me referi lá em cima: sem querer atrapalhar, suplico-lhes, tentem chamar à razão o supracitado adorador de ídolos malsãos. Mostrem-lhe o que já está cristalinamente claro e que só um serzinho enfeitiçado pelo mais fantasioso desvairio é incapaz de enxergar. Lhe digam por a mais bê, soletrem com todas as letras, que não, eu não sou sua namoradinha, eu não sou sua princesa, eu não o amo nem quero ou espero, pare, em nome de sua própria lucidez, pare de me deixar bilhetinhos entupidos de paixão debaixo da toalha da mesa 15, meu coraçãozinho amanteigado a outros pertence, não sonhe mais comigo, me esqueça, faça de conta que nunca nos falamos, procure uma mulher séria que possa lhe dar um futuro seguro e sólido e confortável, ó homem suave e maduro e responsável pelo qual desperdiço minhas noites de sono, não nasci pra ser feliz.


Elizabeta Lips


Okay, vou te contar meu segredo.
Não, meu segredo não é ter um segredo.
Meu segredo não é não ter um segredo.
Trata-se dum segredo de fato, como os segredos que existiam quando nasci, e de que nunca mais esqueci por ter mais ou menos desconfiado, já então, que talvez nunca mais deparasse com segredos realmente secretos em minha vida futura.
Mal desconfiava então que esquecer era o monarca da vida e eu, seu lasso súdito, dali em diante sempre me  esqueceria que esquecer seria a mais tênue das minhas torturas.

Será que dá pra parar de me atormentar agora?


Ontem à noite pousei no travesseiro a cabeça incandescente
preparado para a vigília
e espasmos dos meus cochilos intranquilos

e o pesadelo que em meu pesadelo me persegue de criança

mas surpreso já de manhã acordei

a madrugada venci? sem voz me espantei
terei dormido toda a noite? num sussurro perguntei

sempre soube que por detrás da minha vida há engrenagens
que se enferrujaram quando nasci
e logo, sem esperança, fizeram o que há em mim parar

Cada noite temos, eu e estas minhas emperradas engrenagens, que no manto do escuro gemem em alarmantes rangidos
estalidos
alaridos
um encontro marcado

não, não as vejo, e, sem sequer um bocejo,
deito sem desejo
de viver, de morrer
ou de dormir

Seria então minha incógnita babá quem me ninava à distância?

serão elas se movendo?
elas? mas a que me refiro?
ah, foi um sono tremendo
com sonhos belos e estupendos
esperançosos suspiros.



Droga


Queria fazer um inventário dos meus sentimentos.
Imitando Horacio Salas assim:
Como no sé vivir y ya no encuentro cómodo llorar cada mañana, como no sé vivir -insisto - mientras vivo y desvivo levanto el inventario de mis días.
Mas, ao contrário de Horacio Salas, não valho um vintém como inventariante.
Nunca inventariei nada salvo minhas frustrações.
(Mas, veja, inventariar suas frustrações nada mais é que quedar imóvel a olhar uma parede branca enquanto se engana que segue avante.)
Acho que fiz uma descoberta: abúlicos não inventariam.
Pois abúlicos sequer reagem.
Não amam, odeiam, recusam ou querem.
Este início de prosa poética parece promissor, eu sei.
Mas não me interessa.
Não quero ser poético.
Quero ser abúlico.
É o que sei ser.