Meu ideal

Abolir todas as vírgulas. Mas sem ficar ilegível qual Saramago.

Até os paranóicos têm inimigos

Afonso dá uma passada à tarde, me chama para assistir vídeo pornô na casa dele. Não vejo graça nenhuma em vídeo gay, digo. Ou qualquer vídeo salaz. Perdi interesse em sexo. Mamãe abriria seu sorriso gordo e satisfeito aplaudindo qual criança. No outro extremo o dr. G me receitaria algum tipo de viagra. Mas mesmo meio doloroso é meu estado ideal. Tenho nojo de sexo, sempre tive. Criança pensava em como me livrar dessa determinação biológica idiota enquanto batia oito punhetas por dia me esfolando exausto e impotente. Finalmente consegui mas não é nenhum alívio. Tenho nojo do corpo humano e seu utilitarismo reprodutivo e de apêndices ocupando seus receptáculos e pinos se acoplando desajeitados a suas sedes e seus maus encaixes e desencaixes. Tenho asco de imaginar dois ou mais seres concretizando uma palavra já asquerosa em si, cópula. Ou outra pior, coito. Mesmo sem a benção de Saussure.

E já é tarde para ir a qualquer lugar, Af. Ou para fazer o que quer que seja.

Desde cedo foi tarde demais.

Sempre cheguei atrasado. Acordo tarde, quando durmo. Nasci temporão. Mamãe com 41, papai com 45. Em As palavras Sartre conta que aprendeu a ler aos 4. Eu, aos 10. Chupei bico (aquele de borracha que já não existe) até os 8, na vizinhança me conheciam por o menino do bico. Ia para a escola sob as intimidações de papai segurando sua vara de bambu. Só conseguiam me segurar na carteira ameaçando telefonar para ele. Odiava cada um dos professores e cada um dos alunos. Menos o Luiz Carlos, por quem me apaixonei feito cachorro e que virou a razão das minhas idas às aulas enquanto em casa papai e mamãe trocavam olhares intumescidos de agradecimento por Jesus ter me iluminado a cabeça (que já era grande aquela época) me reconduzindo ao bom caminho, me reconvertendo, mesmo que tardiamente, ao mundo dos sãos e retos. Até aquela manhã em que não resisti e lasquei um beijo de língua no Luiz Carlos que desandou a berrar por ajuda, deflagrando esse meu entra-e-sai de escolas, empregos e bares que perdura até hoje.

Naquele tempo brotar dum útero de 41 anos era razoavelmente normal. Hoje é arriscado, você pode gerar um mongolóide. Com mamãe não tinha esse tipo de frescura. Abortou mais três depois de mim, os felizardos. Leio no jornal entrevista de Romário, que teve uma menina com síndrome de Down, em que se diz desconcertado se perguntando "por que eu?" Em seguida garante estar grato e arrependido da própria infidelidade, jurando que a filhinha lhe ensinou humildade e disciplina.

Por que não eu? quero saber. Posso ser fruto dum momento mais impetuoso de papai ou dum furo na camisinha usada tarde naquela noite.

Papai e mamãe se casaram tarde, tiveram filhos tarde. Nasci uns duzentos anos depois do que gostaria, antes do turbilhão de ismos do início do século 20, do concretismo, de Proust, Joyce e Marx, do alka-seltzer, do automóvel, da tevê e da internet. Na época em que as partituras de Bach, Beethoven, Schubert, Brahms eram reproduzidas uma a uma por copistas profissionais e ninguém pedia Satie num piano-bar e o lirismo desmedido e as piscinas térmicas ainda não foram inventados e as famílias não desciam em peso para a Baixada Santista onde deixam seus filhotes desamparados nas mãos de tias megeras.

Afonso dá de ombros e pergunta se posso pagar os 300 paus que lhe devo. Patrão gay é uma praga.

Enfio a mão no bolso, tiro umas notas e estendo a ele.

Afonso arregala os olhos, depois faz cara desconfiada.

Sim, surrupiei do teu açougue, penso mas não digo. Como é que vou pagar minhas contas? Maldito dinheiro.

Convido ele para almoçar.

Cara, são quase quatro. Almocei faz tempo. Que é que tem aí?

Arroz.

Arroz e...?

Só.

A Sô não cozinha mais pra você?

Foi ela quem fez. É só esquentar no micro e jogar um pouco de queijo ralado.

Ele mete as notas no bolso e não responde.

Tem uma caixa de fósforos sobrando?

Faço que não.

Diz tchau, vira as costas e sai.

Uma vez, era pré-isqueiros Bic, fiz uma coleção de caixas de fósforos. Não uma coleção qualquer -- eram só as minhas caixas de fósforos. Começou sem querer, uma noite notei meia-dúzia delas num canto da mesa no meu quarto e resolvi empilhá-las. Quando a que tinha no bolso esvaziava, e se me lembrasse, ia lá e deixava no alto. A pilha foi crescendo até que arrumei uma caixa de papelão para alojar a coleção. Então um dia mamãe chamou um pintor para pintar as paredes do meu quarto, que eram negras, inclusive a cortina. Eu resistira à pintura por anos e estava esgotado de defender minha citadela. Me rendi. O pintor entrou, instalou seus badulaques, tirou um cigarro e uma caixa de fósforos e acendeu. Era seu último palito. Vou botar aqui na sua coleção, ele riu em minha direção. E botou. Meu primeiro sentimento foi de nojo. Depois, perplexidade. Depois, nojo, perplexidade e gana de fazer o desgraçado engolir o objeto estranho.

Quando a pintura foi concluída e o filho da puta foi embora, levei a coleção toda para a esquina, deixei para o lixeiro. Aproveitei e dei cabo também da minha coleção de cacos de para-brisas que recolhia nas ruas depois de batidas e que usava erguendo contra a luz para me maravilhar com as minhas portas da percepção, tudo é possível quando se tem energia. Então se podia perfeitamente juntar o que quer que fosse num canto do teu quarto, num canto da tua cabeça, sem que te chamassem de neurótico ou te acusassem de ter TOC naquela era pré-maricas pré-assepsia da felicidade ilimitada.

Chega de reminiscências lineares. Minha história é brega demais para ser narrada assim como memórias. Me envergonham meus horizontes quasioperários, a insuperável impotência das "condições financeiras" minhas e dos meus, a suprema cafonice de ter de trabalhar para viver, juntar carnês de prestações na gaveta do armário da cozinha ao lado de saquinhos de mostarda e ketchup, a inatingível visão aristocrática do mundo, a decepcionante cultura arrancada a ferro e fogo dum bando de professorinhas semianalfabetas em vez de transmitida ao vivo na autenticidade sem par das mais iluminativas situações familiares.

Sento na minha poltrona na sala -- papai também tinha a sua, não sou de todo bastardo --, vejo o caderno de lições de Soninha no sofá, abro na primeira página (abrir um livro ou caderno na primeira sempre me causa desconforto; odeio seguir ordens ou responder mecanicamente ao que esperam de mim). Anotações soltas feitas nas aulas, algumas observando as pautas, outras escritas na diagonal em canetas Bic azuis, vermelhas e verdes. Viro a página, uma pilha interminável de "eu te amo," + meu nome em duas colunas ocupando umas cinco ou seis páginas. Depois novamente inscrições esparsas calcadas com força ou raiva em várias cores, "pai", "papai".

Ontem Sô chegou da escola c'uma colega da mesma idade e graça.

Benzinho, a Sô veio fazer trabalho comigo.

Outra Sô? me esforcei para sorrir.

Meu nome é Soraia, a belle de la matin estendeu a mãozinha para mim.

Antigamente eu apertava mãos querendo me mostrar másculo. (Eu não sabia mas era feliz.) Hoje faço mão mole, só tomando cuidado para não parecer flácida. Ou pegajosa. Já passei a mão na perna das calças algumas vezes para enxugar o suor. Peguei os dedinhos, apalpei duas vezes. Soraia puxou ágil e rapidamente meus dedos, pôs sua mãozinha dentro da minha e sacudiu com vigor. Apertei meio no susto e olhei para ela, que sorria com todos os dentes.

Vamos. Sô a puxou pelo braço para o nosso quarto. Sentaram-se na nossa cama, abriram as mochilas.

Escutei Soraia perguntar onde é o banheiro. Então as duas apareceram, sorriram para mim (eu continuava estático no centro da sala) e entraram no banheiro. Deixaram a porta aberta. Ficaram rindo e tagarelando. Ouvi duas mijadas tipo água de filtro que as mulheres dão. Ouvi a descarga duas vezes.

Quer estudar com a gente? Soraia veio, me tomou a mão, me arrastou até a porta do quarto. Sô já estava na cama. Puxei a mão com força, as duas riram mais alto e desligaram suas câmaras digitais.

Há um mês mais ou menos Sô me pediu uma. Perguntei quanto custava, dei o dinheiro, comprou nas Casas Bahia. Três dias depois me chamou para mostrar um filminho. Sentamos no sofá, ela ligou a máquina, quase sem conter a excitação.

Olha!

Quem é esse aí com você?

Meu professor de geografia.

Ela estava sentada no tampo duma carteira, o sujeito a acariciava numa sofreguidão canina, roçando o pinto em seus joelhos, lhe lambendo o rosto e o pescoço. Sô mantinha os braços lassos, fazendo uma careta fajuta de nojo.

Quem filmou? perguntei.

A Sô, ora. E tem mais.

Ela vai passando filmes com outros professores. Inclusive os de saia.

É a nossa garantia de aprovação.

Sempre tive dificuldade com pagamentos, sobretudo os em espécie. Nunca consegui resolver meus problemas, dos mais simples aos complicados. Faço de conta que não é comigo, deixo pra amanhã, finjo que me livrei. Sô me fascina com seu senso de preservação. A vida para ela é uma luta sem tréguas, nasceu c'uma área nitidamente delineada no cérebro que lhe ensinou a atacar antes de ser atacada. É do tipo de gente que vai longe e que custei a me dar conta, ou acreditar, que de fato existissem. Acho que devo me precaver contra ela, se quero evitar problemas. Mas, como disse, nunca consegui resolver meus problemas. E a única pessoa contra quem eu poderia usar uma câmara escondida seria eu mesmo.

Sô saiu dizendo que ia comprar fermento no mercadinho para fazer bolo de fubá com banana que sabe que é meu fraco. Depois da mariscada da semana passada que ainda estou arrotando, vai na feira amanhã cedo comprar camarão. Já lhe disse não sei quantas vezes que não posso ingerir proteína por causa da gota mas ela finge ou parece fingir não escutar. Talvez esteja me matando aos poucos de tanta comida qual mamãe quase conseguiu.

Viu "camarões empanados com limão e molho de cocktail" em seu livro de receitas, perguntou se quero. Hm-hm, disse. O que interessa é o aperitivo.

O professor de geografia passou à classe um projeto de pesquisa sobre a exploração do petróleo no Brasil. Pesquisa "independente", diz que ele frisou.

Faz pra mim?

Te dou umas dicas, te mostro como fazer.

Tô com preguiça. Acho que vou começar a usar o filminho.

Não precisa. É fácil. Quer ver?

Faço um resumo, explico as condições principais, Lobato, Getúlio, o sindicalismo pelego, o básico. Ela não parece se animar.

Okay, faço. Só desta vez.

Volta do mercadinho c'umas sacolas, camarão, um cacho de bananas, dois guaranás litro, uma garrafa de gatorade que viu na tevê esportistas das olimpíadas tomando.

Enquanto guarda as coisas vai dizendo que quer me ver sem barba.

Nem pensar. Uso barba pra esconder minha feiúra.

Só uma vezinha, meu sileno.

Tenho esta barba há quase quarenta anos. Não tiro nem por você, meu docinho.

Ao garoto de 15 anos que não se matou

Minha vida (também) é um interminável parto em que luto com todas as forças para não nascer.

Há de se convir (ou pensamentos de insônia)

Às vezes, me pego procurando compreender esse meu fascínio pelo nascimento. O nascimento é o momento em que se deixa de ser tudo. Pois há de se convir que, quando se é tudo, se é nada. Se, assim, nascer é deixar de ser tudo e ser tudo é ser nada, então nascer é deixar de ser nada.

Às vezes, me pego também procurando entender esse meu fascínio pela morte. Pois, se nascer é deixar de ser tudo, então morrer só pode ser voltar a ser tudo. Mas há de se convir novamente que ser tudo é ser nada. Voltar a ser tudo ou morrer, assim, é voltar a ser nada.

Em todo caso, entre ser tudo e ser nada não há assim tanta diferença quanto se supôs até hoje e fico aqui meio que pensando: será que quando penso que sou tudo acabo sendo nada e que quando penso ser nada acabo sendo tudo? Afinal, há de se convir...

De circunspectos

Distância, é o que peço
Circunspectos não me causam ódio
Apenas desconfiança
De mim mesmo

E, sim, circunspectos me dão medo
Medo de que seu risinho circunspecto se volte em minha direção
Se divirta com meus destemperos
Brincando em pensamentos com minhas paixões exaltadas
A debochar da minha imprudência
circunspectamente, eis aqui um serzinho que expõe
Às circunspectas feras
A si

Distância do enxadrista
Que antes do jogo me deu xeque-mate
Do expert em assepsia que sabe como não sujar as mãos
(Para mim a maior das façanhas)
E do premeditado que não dá ponto sem nó
Para nunca ter de enfiar a viola no saco

Não, circunspectos não me causam ódio
Ódio é tão ardente, inebriante licor dos tolos
Pista para o refúgio dos incautos
Medo, o luminoso aclamando em néon minha fraqueza

Não. Minto! Tenho ódio e medo
Mas não serei cafona
Não sairei do sério
Não darei bandeira
Como exímio circunspecto
(Que não sou)

Como dar uma caixinha ao bloguero

Não sabemos se você sabe, mas o bloguero não ganha lhufas pelos lindos textos que posta regularmente neste blog. Antes de reclamar sobre esta página de mendicância descarada, olhe para aquele melancólico, meigo e barbado rostinho estampado na página principal. Sendo um marmanjão à-toa e pinguço sem-vergonha, tem muitas contas a pagar no fim de cada mês. Principalmente no buteco na esquina perto de onde mora. Onde passa longos dias e efêmeras noites.

Seu turno diurno (com perdão da rima) em sua mesa do buteco se inicia lá pelas 10, 11 da matina, em geral cuma kaipiroska com muito limão e apenas uns 3 dedos de vodka, que é pra assentar o estômago. E, claro, uma garrafa (enfatizamos: garrafa, pois o gajo não tolera latinhas) de Brahma (também não aceita outras marcas). Depois de almoçar um ou dois baurus sem queijo e com muita cebola e tomate ressecados depois de um mês no refrigerador asqueroso do buteco, segue nessa dieta etílica até as 17 horas, i.e, o happy-hour, que indica o término do diurno e começa o do turno noturno. Então passa para uns copinhos de steinhäger ultragelado entremeados de Balla, de preferência 12 (a critério do Lacerda, dono do buteco, que pode ou não pôr na conta dependendo do humor com que acordou no dia). E assim prossegue o bloguero em seu turno da noite, até perder os sentidos e desabar o cabeção na mesa. (É por isso que sempre mantém copos e garrafas bem afastados do raio de ação de sua testa.)

Imaginamos que a esta altura você deva estar se perguntando: e daí, que é que eu tenho a ver com isso?

Bem, talvez você não tenha mesmo nada a ver com os hábitos alcoólicos do rapaz. Mas saiba que é entre um gole e outro que ele vai rabiscando as bobagens que depois sua doce amiga, amante, lavadeira e digitadora Soninha passa no computador e sobe para o blog.

Imaginamos também que você esteja pensando, Ah, até eu queria ter um "trabalho" como esse!

Mas é aí que o prezado leitor se engana.

Veja, reconhecemos que o bloguero bebe por prazer, compulsão e desgosto de viver, como todo manguaceiro que se preze. Mas esses não são os únicos motivos. Na verdade, o coitado é incapaz de verter uma linha que seja se estiver de cara. Ou seja, se não beber, não escreve. E se não escreve, o blog já era.

E não é só. Sua lide na mesa no canto mais sombrio do buteco não se resume a manipular folhas de rascunho e copos. O que prejudica no duro seu fígado que a voluptuosa, incessante ingestão dessa variedade insana de destilados e fermentados é a presença de dezenas de outros bebuns ao seu redor e o indefectível, nauseabundo aparelho de tevê de plasma com que donos de bar por todo o País pretendem estimular o consumo de seus fregueses. Cá pra nós: se você acha fácil escrever um blog totalmente bêbado ao lado de 20 outros paus-d'água sob os berros histéricos do Ratinho, então jogamos a toalha. Você é mão-de-vaca acima da concepção humana.

Mas sabe o que é pior? Não, você não sabe. O pior é que dias há em que o pobre-diabo ainda é obrigado a escutar reclamações de seus bissextos leitores. Pode? Falando sério, não seria o caso de perguntarmos o que é que eles querem dum miserável mourejando sob tão crueis condições de insalubridade?

Seja sincero: você sonegaria uma gorjetinha a um bastardo que se esfola assim com o exclusivo, o solitário propósito de lhe proporcionar DE GRAÇA esta gratificante experiência estética online só batida pela orkut?

Pois, veja de novo, este blog é um verdadeiro tudo-em-um. Aqui o freguês encontra poesia de seleta bisonhice e prosa claudicante sem equivalente no mercado. Tudo muito afetado e pedante, com abundante, pitoresca, constrangedora adjetivação e infindável penca de supérfluos advérbios. Como se ainda fosse pouco, o exigente navegante pode desfrutar de variada coleção de taras, manias e neuroses, incluindo um dono de buteco que violenta a própria filha desde os 7 anos de idade (dela) e que atualmente, aos tenros 17, virou namoradinha do protagonista-autor depois que este levou um pé bem dado de sua esposa Sílvia por quem ainda morre e sempre morrerá de amores e mama sofregamente suas biritas para tentar esquecer, protagonista-autor que nos fins de semana está empregado no açougue de uns de seus amigos homossexuais porém não efeminados onde dá risíveis cantadas em senhoras de terceira idade em busca de contrafilé com pouco sebo.

Se mesmo assim você ainda estiver insatisfeito com os serviços aqui ofertados, que tal enviar um email à gerência do buteco explicando a situação em vez de simplesmente dar as costas pra nunca mais voltar?

Em vista do acima exposto, duvidamos que o estimado leitor seja incapaz de morrer cuns trocados para que o pobre-diabo leve adiante este inglório blog. Vamos lá, é impossível que você não tenha um ou dois reais no fundo de algum bolso ou daquele trambolho que sua mulher carrega pra cima e pra baixo à guisa de bolsa, ou mesmo umas moedinhas sobradas da feira da patroa. Se a situação estiver de fato grave, sugerimos que não hesite em passar ligeiramente a mão no cofrinho das crianças. Afinal não vai fazer falta, vai? Em último caso, aceitamos cartão de crédito. Ou contate a gerência para informar-se sobre outras formas de pagamento.

Bem, caríssimo leitor, isso é tudo. Agradecemos a paciência com que nos brindou até aqui. E não se esqueça: um bloguero duro hoje pode ser um motoboy ou servente frustrado amanhã. Além do mais, visto sermos o maior país católico do mundo, sempre é bom fazer uma média com o Big Guy que mora lá em cima além das nuvens. Como você sabe, Ele recompensa os que sabem demonstrar gratidão.

Até a próxima e gratos pela preferência.

Finalmente um advérbio no título

Sou um sujeito cismado. O que dá no mesmo que supersticioso. Minhas definições sofrem de imprecisão. Definir, que quer que seja, não é comigo. No Aurélio, no Houaiss me admira a exatidão nanométrica com que os caras estabelecem o sem-fim de significados que usamos para nos situar neste mundinho volátil em que somos precários inquilinos trocando impressões sobre o tempo e o céu e a nuvens e contando vantagem como se fôssemos proprietários. (Você pode dizer que não se usa indistintamente precisão e exatidão; diga.) Fico num estado de êxtase com os vocábulos domadinhos, disciplinadamente organizados em lista infindável, cada qual guardando, apenas para os olhos do leitor atento, um manancial de acepções insuspeitas formando um gigantesco poema em ordem alfabética. Definições precisas e/ou exatas são um bálsamo para a confusão mental em que vivo. Quase um antítodo. Angustia ser confuso. Tem hora o caos dentro da minha cabeça me põe assoberbado, minando toda minha energia. Por isso vivo cansado. Por isso engulo um copo atrás do outro, sôfrego qual um ralo sedento dum licor que o lave da própria podridão. (Ralos não sorvem Balla 12.) Por isso fumo três maços todo santo dia desde meus doze anos, Free box, ocasionalmente Marlboro. (Dolorosas, amargas lembranças me evoca o Marlboro.) Por isso escrevo, não tão bem quanto gostaria, mas com a mesma voracidade com que faço todo o resto. (Escrevo principalmente para impressionar mulheres. Já impressionei algumas, mas não favoravelmente como era meu intuito inicial.) O que tem faltado entre essas minhas dimensões de intensidade vital é um pouco de sexo. Ultimamente ando meio devagar nesse quesito. Para dizer a verdade, faz anos que não como uma mulher. Estou completamente abstêmio qual um explorador do Ártico. E tampouco tenho compensado o jejum na base da masturbação. Para falar a verdade mais uma vez, devo anunciar que sou onanista. Não dos mais fervorosos. No primário (bom, agora você já pode computar mais ou menos minha idade), no primário tinha um colega, Geraldo ou Ivã, não me lembro, que quebrava todos os recordes: dez diárias e subindo. Hiperlibido. A esta altura Geraldo ou Ivã deve ter despirocado. Ou ficado manco. Provavelmente ainda é virgem, poor guy. Em geral bato uma de manhã, outra após o almoço, uma terceira à noitinha e a derradeira já na cama, antes de pregar o olho. Bem, não sei se “bater” é o termo apropriado. Como já disse, sou brocha. Tento bater três por dia, mas a gozada jamais se consuma. E onanista é meio pesado, acho. Não me considero sequer viciado. No meu projeto, vou tocar punheta enquanto não chegar a hora de transar novamente com uma mulher. Digo, a minha mulher. Ou melhor: o meu projeto de mulher. Pois que tenho um. Não, não me peça para explicitar. Eu mesmo não sei direito.

Hanging it on the bathroom door

Plath me pega no colo, me emascula, seu sonho mais primevo e não exteriorizado. Tudo é literatura, nada é culpa da cultura e da sociedade.

Plath me alfabetiza. Me ensina minha língua doente dessa hiperatividade paralizante. Me guarda e acalenta minhas explicações. Me conduz pela desviagem. Me inverte em mim.

Não nasci para a caça. Longe de mim as estratégias e os planos e os sistemas. Plath me engravida de mim. Plath me aborta. Plath me dá à luz e cuida de mim como seu filho único e predileto e seus olhos prometem que ela estará ao meu lado por séculos, mesmo depois que ambos morrermos.

Plath tira um seio angelical do sutiã azul e me abastece em plenitude como se eu estivesse prestes a partir para Júpiter. Plath me poupa da injunção dos relacionamentos e da inevitabilidade das pessoas, me assegura que não há necessidade de lutar com minhas emoções.

Plath empobrece meu vocabulário a uma palavra. Sou único e uno. Plath me isola do mundo exterior.

Plath aniquila meus instintos. Sou o que quero ser. Não tenho predecessores. Minha raça começa comigo. No meu Gênesis, eu sou Adão, Plath é Eva. No meu Gênesis, não deixaremos prole. Sou/somos um raio que estala inusitado e inimitável no céu escuro, para nunca mais.

Sou um para Plath, Plath é um para mim. A noção de multiplicidade morreu e não posso mais compreendê-la. Não há sentido no plural. Sou um só ser, amo um só ser. Meu mundo está pintado duma só cor, cuja cor não conheço, cujo nome não me ocorre.

Plath me cura da minha saúde. É minha sombra, sou sua sombra. Aceno quando acena, acena quando aceno. Estou mudo como sua sombra.

Plath me ensina como só o tempo pode ensinar e me desensina o que tempo me ensinou. Em breve (quando?) não haverá mais começo e não haverá mais fim.

Plath me despoja dos meus sentidos. Me livra da química. Me imuniza da física. Me lava da fome dos desejos.

Então Plath-agulha vai me injetando coragem, sou o ser-furo por que ingressa e ingresso, até o ponto em que a falta de coragem deixa de figurar em meu horizonte mental.

Plath não me recompensa. Não me alimenta. Apenas volta sua cabeça loira para lá neste mundo sem alegria nem tristeza nem razões para medo e me conta a mais bela história do mundo em sua voz que não posso escutar.

Manifesto à comunidade Literatura da Orkut

O manifesto na íntegra está no seguinte endereço:

Manifesto à comunidade Literatura


P.S. - Por meses o blog vinha recebendo de 8 a 20 acessos por dia. Desde ontem, mais de 70 diários. O pessoal se amarra mesmo é numa boa futrica. Literatura é pormenor.


Updates do day after:

O fake Ludwig, dizendo-se indiferente ao manifesto, mudou seu nome para Dimitri e sua foto para a de um futebolista eslavo. Como os eslavos estavam entre as raças "inferiores" a ser eliminadas da face da Terra por Hitler, o fake Ludwig parece querer assim redimir-se. Poor little Ludwig não acerta uma.

A fulana que, junto com o fake Ludwig, tramou a proscrição do Jorge se mostra a cada minuto mais perto dum ataque apoplético no fórum da comunidade. Quer me obrigar de todo jeito a reconhecer que não foi ela. Como sei que foi e não dou pelota, ela sobe pelas paredes. Sua cabeleira deve estar ficando cada dia mais oxigenada. Chegou pisando firme, se dizendo disposta a "sacudir" o marasmo da comunidade enquanto ia distribuindo os infames "beijinhos" demagógicos que todo mundo e seu tio dá a todo mundo e sua tia na orkut. Com o episódio, a fulana apenas revelou -- sem querer, diga-se -- que é absolutamente autoritária e sente ganas de trucidar quem ouse ficar atravessado em seu caminho. Provavelmente nunca leu a neurótica profissional e feminista canina Fernanda Young, mas seria leitora ideal das mascerações raivosas de Young. A freudiana inveja do pinto parece não ter cura. A fulana também se mostrou a Rainha do Print. Dificilmente haverá maior mau-caráter do que os que "documentam" diálogos em fóruns para eventual aplicação futura. Não é a primeira vez que vejo isso acontecer. A orkut é o paraíso dos cafajestes. O Jorge escreveu dois palavrões num tópico e foi sordidamente "documentado" pelos prints da fulana.

(Aliás, Jorge imediatamente se arrependeu do destempero e apagou as postagens com os palavrões. Daí virou "covarde que não sabe usar o que no meio das pernas". Pois é, arrependimento virou coisa de viado. Ante os hipócritas, neguinho é obrigado a fingir o que os farsantes esperam que ele faça. Aliás de novo, a fulana fez print apenas dos tópicos que continham os palavrões do Jorge. Muito conveniente, não é? Os insultos selvagens que ela dirigiu ao Jorge foram convenientemente omitidos do print. Lição clara para os demais membros da comunidade: cuidado, o que vocês falam inocentemente no fórum pode estar sendo arquivado pela KGB das Loiras de Araque. Talvez suas "fichas" já estejam no banco de dados do DOPS orkutiense  Gente baixa é um perigo.)

Os prints foram então passados ao fake Ludwig, que por sua vez entregou as "provas" ao sr. Jocelino Freitas, que por sua vez executou sua sentença de tiranete. Pasme-se: toda essa nojeira ocorreu no fórum duma comunidade denominada Literatura.

Depois dum extenso período de minha expectativa, a ficha do membro comunitário José Geraldo finalmente caiu. José Geraldo é mencionado no meu manifesto não explicitamente mas apenas como integrante do bloco dos mestres-escola que não param de riscar bacharelescamente giz no quadro-negro e do bloco dos membros artificialmente indiferentes ao que seus pares escrevem. Depois de fingir desconhecer meu blog -- que ficou em destaque no fórum por nada menos que 4 meses --, José Geraldo finalmente cedeu à tentação e me atacou, comentando com outros membros que sou um "frustrado e temperamental". Tell me something I don't know, Zé. Quem lê uma linha do que escrevo em meu blog saca no ato mil sentimentos conturbados, entre eles frustração e emotividade, o que, imagino, seja comum a milhões de outros poetas. (Desconfio que até de bilhões de outros seres humanos. Ainda bem que os super-homens qual você estão acima dessa carniça. Como é fácil jogar onda em fóruns na internet.) O que mais salta aos olhos no que escrevo são paixão, compaixão, solidão, perplexidade. Mas o crítico literário José Geraldo optou por apontar duas "máculas" no meu caráter. O que só comprova aquilo que eu disse de tipos como ele em meu manifesto.

E a comunidade Literatura da Orkut parece estar voltando lentamente aos velhos eixos e às velhas imensas engrenagens de que fala o sempre esquecido Herman Hesse, impassível ante o absurdo, insensível à vida, imperturbável como microcosmos da glacial letargia com que brasileiros e brasileiras marcham carnavalescamente rumo ao abatedouro. Osquindô. Mas não era pra sacudir? Então sacudi, uai.

Enquanto isso o planeta vai seguindo sua imutável rota rumo ao nada. Até cruzar com um frio, desabitado asteroide, mandando literalmente cada uma das nossas veleidades pro espaço.


Update do aftermath: 

 O Albertinho revelou a identidade verdadeira do fake Ludwig que agora se autodenomina Dmitri que antes era/é Dr. Robert, etc. É um sujeito chamado Wesley Souza de Oliveira, habitante da pobre Diadema. Assim que Tin desmascarou o tal de Wesley, este correu para apagar seu perfil verdadeiro, em nova demonstração de coragem e tirocínio.

Mas antes do desmascaramento, o tal de Wesley havia chamado Tin de bichona, no que foi secundado pela aloprada aguada fulana de tal. Ambos formam a ora famosa e infame Dupla do Esquadrão do Print.

E qual foi o resultado dos insultos contra Tin?

Bidu. Tin foi banido da comunidade, ao mau passo que os agressores continuam lampeiros da vida a promover sua fuzarca. De novo é o tiranete moderador Jocelino Freitas dando mostras de ser justo e imparcial, penalizando a vítima. Parece estar cada vez mais evidente a parceria nefasta entre a Dupla do Esquadrão do Print, especializada em emboscar incautos, e o sr. Jocelino Freitas, aparentemente feliz proprietário de insaciável sanha banidora.

Assim caminha a porca existência no Berção, espargindo microcosmos de insanidade por todos os rincões, frestas e ninhos. Mas não há que se espantar. Afinal sabemos que a luta por um lugar ao sol é essencialmente política e traz à tona o que cada ser humano boçal tem de mais nojento dentro de si.


Update do update

O Manifesto consolida cada dia mais sua vocação para campeão de audiência. Porra gente, leiam o que escrevo. Exijo ser reconhecido por meus dotes de escriba, não como o Nelson Rubens das Letras. Nem tudo nesta vida é fuxico, farejação nas peripécias das celebridades e fuçação na merda excretada pelo próximo, sô.


Update final - 11/12/2010

Hoje tive a honra de ser banido da comunidade Literatura da orkut que de literatura tem só o nome.

Postei um tópico convulsivamente erótico e, naturalmente, escandalizei os Senhores de Santana que dão as cartas naquele arremedo de fórum.

Minha primeira reação foi postar este novo tópico:

NÃO ACREDITO, APAGARAM MEU TÓPICO!

Algum jumento com espírito censorial apagou um texto erótico que postei hoje.

Estou assombrado, perplexo, desconcertado, espantado.

O sujeito com vocação para calar bocas tem que ser muito burro pra suprimir criações alheias só porque se escandaliza com elas.

Seu censor de merda, você é um tiranete escroto absolutamente ignorante dos princípios que regem a liberdade de expressão e portanto a literatura.

Seu cretino, vc nunca ouvi falar de H. Hilst, nunca leu as cartas pornográficas que Joyce enviou à esposa?

Você deveria é controlar o mar de boçalidade que lava dia após dia este fórum em que só os medíocres e os puxa-sacos e os guardiães de ideias medievais têm vez.

Mais uma vez esta bosta de comu faz opção pela imbecilidade.


Mas à medida que digitava minha revolta foi crescendo e crescendo e terminei por encasquetar mais umas doze postagens eivadas de indignação, colocando os moderadores daquele covil de nulidades no lugar que merecem: o esgoto.

Hoje abri a orkut e deparei com o óbvio: meu banimento. E a deleção das dezenas de tópicos que já postara antes.

Os torquemadas optaram por excluir o arruaceiro. Sim, me ligo num bafafá. Faz parte nata da minha personalidade como eu mesmo e como escritor. Quando faço exame de sangue para medir meu ácido úrico e meus hormônios, a primeira constatação do laboratório é: inconformismo extremado. Quando levo os resultados ao meu estimado dr. H, não peço remédio para essa enfermidade -- que para mim é uma virtude --, pois sei que não tem cura.

Penso no papel do escritor -- se é que existe um -- e a primeira associação mental que faço quase que mecanicamente é com o inconformista. Escrever para mim é antes de tudo rebeldia. Eu mesmo não tenho bem certeza contra quê. Mas sou rebelde desde que nasci. Tampouco sei se é por isso que escrevo. Mas sei que escrevo para, entre outras coisas, tentar me entender na medida que sou capaz de me entender.

Escrever movido pelo inconformismo é para mim tão natural, que me assombro com a existência de escritores conformados. Um L.F. Verissimo, por exemplo. Detentor duma bonomia bovina e inabalável pachorra, V. vai comentando os desmazelos dos políticos, a impossibilidade dos relacionamentos, os absurdos da vida como se saboreasse tenros bolinhos de chuva numa noite invernal do Sul. V. expõe as tragédias a seus leitores em voz macia e um sorrisinho meio irônico. Sua plateia de diletantes tem os ouvidos sensíveis e poderia se assustar com o som e fúria sem significado da existência.

Tendo optado por degredar um encrenqueiro como eu, a moderação da comunidade "Literatura" abre braços e pernas para sumidades como o finório homófobo de Diadema, dedo-duro profissional que diuturnamente denuncia aos moderadores quaisquer membros que ousem levantar a voz contra as hílares bobagens que escreve, um filhote de nazista e sem-caráter que se oculta atrás de dezenas de perfis fakes e que nutre predileção por perseguir quem lhe olhe atravessado. A moderação opta também por premiar uma tal Tati de Curitiba, loira aguadíssima e fascistinha que não admite ser contrariada em suas postagens histéricas e que se notabilizou por fazer prints dos diálogos mantidos no fórum com outros membros para em seguida passá-los ao finório homófobo de Diadema que por sua energúmena vez os encaminha aos "moderadores" que por sua pusilânime vez executa a ordem de ostracismo contra a vítima que caiu na emboscada.

Bem, foram uns quatro meses de convivência diária com ratos, camundongos e ratazanas. Não há quase ninguém que preste naquele ninho de vermes semiiletrados devotados a espezinhar a obra sagrada de grandes escritores, babando diariamente as mais inacreditáveis aboborinhas pseudos, decretando post após post a impertinência dum Schopenhauer (sic) ou a superficialidade dum Hemingway (sic!).

E least & last, não posso esquecer a Tia da Candinha, que me acompanhou ao longo da empreitada, como sempre bisbilhotera, espiona e temerosa de mostrar a cara mas sem dar um pio sobre minha identidade secreta. O único porenzinho em sua louvável atuação foi ter se tornado puxa-saco da loira barraqueira mestra do print, já próximo à reta final. Pois é, só os bravos resistem.

E aquele abraço para as lesmas que tomam sol de manhã à noite naquele fórum de araque. A liberdade de expressão é ali emporcalhada a mais não poder mas as lesmas seguem firme em seu autismo enquanto falam monumentais porcarias sobre o que não sabem.

Como disse, tenho a honra de ser banido do canil de insanos. Voltei ao meu papel de pária, do qual não procuro me livrar e tudo que logro é padecer quando tento. Pus novamente um pé no barco não furado dos que se recusam a tomar parte do baile no hospício. Certo, não sou nenhum grande autor. E a pecha de maldito que críticos literários afixam a certos escritores não passa de cafonice. Até aí todo escritor digno do nome é e tem de ser maldito. Posso não ser grande, posso não ser sequer escritor, mas não embarco no coro dos alegres de papo pro ar incessantemente cantando a graça recebida da insensatez.


Update final II

Criei outro perfil, entrei na comunidade Literatura e o sr. Jocelino Freitas me expulsou uma segunda vez.
O sr. Jocelino Freitas, xerifinho ridículo daquela comunidade que se autoproclama escritor e poeta, é um déspota repulsivo.

É primavera

Que me contas? pergunta Drummond.

Caro Carlos, o que me espanta é que até a mais despretensiosa erva daninha do meu jardim também recebeu a nova.

Se há uma verdadeira loucura

Nos abraçamos, me soldo a Soninha. Sem revolta ou repugnância. Quero apenas prolongar este instante até que tudo acabe.

Solto os braços, me afasto. Olho a parede. Espero que Soninha tenha sumido do universo quando meus olhos  voltarem para ela.

Não dou a mínima para mim mesmo. Não dou a mínima para os meus pensamentos. Sou meu único inimigo, preciso desenvolver armas eficazes para me combater.

Cala a boca, voz interna. Suspende teus ataques. Me desescraviza do Grande Sentido. Se posso andar e então parar, morder o lábio até tirar sangue e então cuspir, por que não me foi concedido o dom de reprimir a incessante operação do meu cérebro?

Encho os pulmões de ar, prendo a respiração, deixo de existir por um segundo. Que delícia seria ter uma existência que funcionasse como o nosso sistema nervoso simpático, entrando em ação nos bons momentos, dormindo nos maus.

Sim, é um caso para ioga. Talvez um simples laxante.

Você é um irracionalista, me acuso.

Mas não é esta uma das grandes questões humanas? me defendo.

Esqueça. Você é apenas um mutante feito milhões de outros, sem utilidade para nada, rumando para lugar nenhum.

Me abraça, suave Soninha. Não quero estar tão perto.

Não quero estar tão certo.

Fugitivo aprisionado


A manhã se partiu ao meio.
Exatamente ao meio?
Ainda não se sabe.
Podem ser várias as causas de tal quebra.
Um ganido de cachorro lá longe. Um roncar de avião lá em cima. Um requerimento inalienável de satisfação ou expiação aqui dentro.
Uma vez bipartida a manhã, várias situações podem ocorrer.
A ruptura é categórica e não se ousa contestá-la e nesse caso também abrem-se várias alternativas.
Ela, manhã, entra para o respectivo Escaninho Histórico das Experiências, diluindo-se às demais e alimentando a voracidade de todas as rupturas.
Ou cada uma de suas metades pode também fender-se em duas e deflagrar um efeito geométrico de infinitos fragmentos.
Ou não.
Ou, santa mãe, as duas metades originais voltam a unir-se por uma emenda suave, quase imperceptível.
Ou um remendão. 
Ou, simplesmente, a xícara do café despenca de repente, espatifando-se em incontáveis caquinhos no chão da cozinha no meio da manhã.