Da série "Novos contos para crianças", VIII

Zezinho sonha com Leninha todas as noites. E, de dia, em seus devaneios diários, delira que está cochichando “Te amo” no ouvido da coleguinha de escola.
Zezinho senta no fundão da classe, covil escuro e obscuro dos relapsos e preguiçosos. Leninha ocupa a primeira carteira, pódio resplandecente e decente das estudiosas e queridinhas e belas.
E ladras dos coraçõezinhos de margarina sem sal de moleques nascidos para babar por suas inefáveis musas.
E Zezinho baba e baba e baba pela loirinha. Baba quando a imagina chegando em casa. E baba vendo-a mentalmente a sentar-se na mesinha do quarto e a abrir o caderno para fazer a lição do dia seguinte. E baba fantasiando Leninha almoçando, raspando o prato, fazendo à família um relato vivo e detalhado de como transcorreu seu dia na escola. E baba imaginando a menina comentando sobre suas colegas mais chegadas e seus penteados e seus adereços e suas peculiaridades. E baba quando Leninha se despe para entrar na banheira de pedras semipreciosas verdes, azuis e lilases. E baba quando Leninha, terminado o banho, começa a berrar “Mãe! Mãe! Mãe! Esqueci de pegar a toalha!”.
E então a porta se abre e aparece uma toalha pendurada num braço e Leninha sai da banheira e se enrola antes que Zezinho tenha tempo de conferir seus segredinhos anatômicos e quem traz a toalha não é a mãe, mas o pai, sem camisa, suado, provavelmente acabando de retornar de seu jogging diário e os olhos vorazes da imaginação de Zezinho vidram no peito cabeludo do homem e seus bíceps férreos e seus ombros bem-torneados e vão descendo por sua cintura rígida e a barriguinha apetitosamente tanqueada passando pelas ancas sólidas até as coxas roliças porém firmes, se detendo no grande, no másculo bojo bem entre as pernas...
E Zezinho vai afundando mais e mais em sua desvairada reverie, se imaginando já homem feito, vestido a caráter, olhos protegidos por grandes óculos, pilotando um teco-teco pelo céu do mais puro anil, desenhando em letronas imensas de fumaça entre as nuvens alvíssimas
“LENINHA TE AMO”...
“LENINHA TE AMO”...
“LENINHA TE AMO”...

Todo dia parece o dia da partida

Local: Livraria Cultura, Conjunto Nacional. Mais precisamente, ala de Poesia.
Tempo: ontem. À noite.
Quando ele chega, ela já está lá. Tem um livro nas mãos, que lê atentamente. É possível vislumbrar o autor: Ana Cristina César.
Ele dá uma geral pelas prateleiras. Capta um ou outro livro de seu interesse. Só então escuta um cochicho. É ela.
Ele espia de soslaio. Ela lê e acompanha a leitura com os lábios, produzindo o cicio.
Ele dá um sorrisinho divertido.
Apanha um livro a esmo na prateleira à sua frente. Não se dá o trabalho de verificar nem título nem autor. Abre numa página aleatória. Começa a ler com os lábios, imitando a desconhecida.
Só então ela percebe a presença dele. Interrompe a leitura e pergunta:
— Não te conheço de algum lugar?
— Preciso mesmo responder? – ele ri. — Parece sabatina...
— Sério – ela franze a testa. – Já te vi, não lembro onde.
— Acho que não – ele abana a cabeça. – Vai ver é influência disso aí. – Ele aponta o livro que ela tem nas mãos. – A poesia da Ana Cristina César pode provocar esses sintomas. Às vezes.
— Vem sempre aqui? – ela muda de assunto.
— Na verdade, não. A última vez foi há uns quatro, cinco anos.
— Por que veio hoje? Algum motivo especial?
Ele ri de novo.
— Pelo contrário. Normalmente não tenho motivos especiais para ler poesia. Foi só coincidência. Estava perambulando pela Paulista, apreciando a nova ciclovia. Passei pela Alameda Santos. Percorri um trecho da Haddock Lobo. Peguei a Augusta. Foi quando me deu o estalo. Tenho esses estalos ocasionais. Não sei se é neurológico ou apenas tédio. E pensei, “Será que há uma mulher bonita na seção de poesia? E, se houver, será que está lendo Ana Cristina? Tenho de ir lá dentro ver. E, se tiver sorte, contemplar essa leitura extraordinária e me deixar maravilhar por esse encontro inexplicável. Talvez pedir que ela seja minha amiga. Ou, dependendo, simplesmente convidá-la para um café no Viena. Não posso despertar suspeitas (pois sei que sou um sujeito suspeito). Vou ficar torcendo para que ela me aceite sem desconfiar de nada.” E resolvi entrar.
Ela solta uma gargalhada suave.
— Não esperava descrição tão detalhada. E sincera.
— Ah, nem tanto assim. Deixei muitos detalhes de fora, para não te assoberbar. Se ainda tiver dúvidas, pergunte. Mas não garanto que minhas respostas sejam sempre satisfatórias. Eu mesmo tenho milhões de dúvidas cujas respostas desconheço.
Ela ri novamente. Fecha o livro e põe de volta na prateleira.
— Que estranho. Tenho certeza quase absoluta que te conheço de algum lugar.
— Ah, minha cara, estranhe à vontade. Estou acostumado. Sou o cara mais estranho que conheço. Embora não me conheça quase nadinha, devo alertar.
Ela apanha outro livro. Volta a contracapa para ele e aponta a fotografia do autor.
— Vai me dizer que este aqui não é você...
— Talvez. Mas em minha defesa posso alegar que fui trocado por uma das minhas personas. Sabe como é, hoje em dia essa salada de eus poéticos, outros, nós, eles e por aí vai.
Ele faz uma pausa, aguarda enquanto ela abre o livre e passeia o olhar pelas páginas.
— Mas não vou alegar isso. Confesso. Esse sujeito pernóstico aí sou eu mesmo. Embora não esteja tão sonolento na foto quanto pareço estar ao vivo.
Outra pausa.
— E você tem razão. Já nos vimos antes. Te encontrei um dia, depois de anos de procura. Foi aqui mesmo na Paulista. Mais precisamente, na Livraria Cultura. Na ala da poesia. Numa noite exatamente como esta. Uma noite em que dei graças por estar vivo.

Fresta II

Lola, vê, descobri a mina da minha infância, donde brota interminavelmente tua imagem. Lola, eu estava atrás da porta quando ouvi falar de ti a primeira vez. ¿Cuántos años tenías? Lola isso, Lola aquilo, diziam o tempo todo. E estou aqui te olhando olhar tudo e todos, falar e ser ouvida, explicando por que fizeste tudo aquilo que fizeste hoje. O pessoal em volta da mesa de jantar escuta com atenção tuas palavras que fluem sem parar mas que não cansam. Enquanto falas às vezes olhas para cada um dos presentes, às vezes olhas o teto buscando inspiração para teu inesgotável assunto. Lola, onde estás? Eu aqui falando de ti, sempre sozinho a me lembrar, me lembrar. Estou cansado, Lola. Cansado de me lembrar de ti. ¡Coño, Lola! A certa altura pus a mão na testa e pensei, não posso continuar assim, eternamente escutando Lola, preciso arranjar uma saída. Lola, vê, este é meu pai te olhando como se fosses a voz do oráculo, aguardando cada palavra que dizes como se agora, sim, fosse encontrar a chave do enigma. Lembro que brotaste na mina da minha infância e daquele momento em diante nunca mais paraste de borbotar, esparramando-se por todos os caminhos por onde andei, nos quintais, indo para a escola, voltando, indo para a igreja, voltando, ouvindo Lola borbotar, preenchendo um vazio que não sabia existir porque vazio, que só vejo hoje, e me inundavas, Lola. Me inundavas! Me inundavas, Lola! Só por isso consegui viver até aqui. Não fiz outra coisa em meus dias exceto te escutar e te olhar. Então, decidiste entrar para o grupo das pessoas proibidas, grupo que rondava as cercanias dos caminhos das crianças, à espreita de imprudentes que pudesse arregimentar. E te deixaste arregimentar, Lola! Daí em diante, para te ver, para te escutar, tinha de passar pelo grupo - tarefa que, bem o sabes, estava muito acima da minha capacidade, Lola! Pois não tenho capacidade para nada, Lola! Mas ficaste impotentemente inerme, já te havias bandeado para o lado de lá. E me deixaste aqui sozinho, Lola, eternamente aguardando tua aparição nas manhãs de domingo. Foi o único momento que me deixaste de alívio, Lola - as manhãs de domingo, depois da missa. Punha-me atrás da porta e ficava ali, quieto, boca seca, um pé na sala, outro no meu grande vazio, que voltara, pois me abandonaras, Lola! Bem o sabes! E por meia hora ficava te olhando hablar, hablar, Lola, borbotavas como nunca, Lola, e eu só podia te olhar sem fazer nada, me agarrando à tua imagem como a uma âncora flutuante que me pudesse salvar da tormenta. Lola, estás ali borbotando sem me ver, talvez esquecida de que existo. Existo, Lola! Me vê! Sei que um dia passarás para o grupo dos banidos, Lola! Dos que nunca houve. Sei! E ver-te-ei no más! Lola, por que és tão santamente cruel? Continuas a viver desconectada de todas as pessoas que conheço e de todas as coisas, pairando sobre os dias de todos nós, fora do nosso alcance, à nossa revelia. Só posso te ver cuando me recuerdo de ti, Lola! Em breve tudo estará terminado, lo sé. Puedo dizer, ainda bem! He esperado até agora que me fosses arrumar una solução, acreditando, desde aquele día em que te conheci, que eras a luz-guia que me tiraria das trevas. Mas, sabes, cansei. Como podes ser tão judiciosa ao olhar a todos, Lola? Ninguém olha feito ti! E tus lábios, que quase no se mejem mientras hablas, parecem abrirse por fuerza das verdades inelutáveis que manténs no sé em que santo lugar, recódinto rincón de tu espírito. Eles não saben, Lola, e así te escutam meio distraídos, como que por deber. Mas me acercando um poco más da mesa e atentando, Lola, vejo que de hecho no hablas nada! ¿Cómo puede? No hablas absolutamente nada, Lola! No hablas nada sin embargo pareces decir con a mais honda de las convicções y al mismo tempo com la simplicidad das vestais, pues entonces, dizes, el bálsamo de la vida se viende en la tienda número tal, si no hubiera, sabem, puede encomendarse, sí, estranho, ¿no?, 24 horas? Então todos riem inhibidos, Lola, não sabem si manifestação do teu humor ou otro princípio de conduta, e continuas, pois bien, exactamente neste local, exatamente adonde estás hoy esta casa pasavam los dinossauros que por acá viviam hace 70 milhões de años! E todos arreganham bocas e franzem testas de surpresa. Y así vás. Mexendo os lábios como se dissesses coisas dese tipo no mais singelo coloquial, mas que, todos sabemos, contiene la certidumbre da verdad. Tus lábios se mexem mimetizando o que parecia ser la reza que curaria todos os males e redimiria a todos nosotros sofridores inveterados. É uma simulação hipnotizante, Lola, pois continuam todos em volta de ti te escutando feito estátuas. E a maneira como olhas o teto para dar ênfase à tua retórica inexistente! Mas espera! Mas não olhas o teto! É apenas o reflexo das chamas das velas que estão sobre a mesa nas lentes dos teus óculos! Que brilho miraculoso, este! Eu estava certo de que eram teus olhos. Pensando bem, não sabia que usavas óculos, Lola! Lola, Lola! Preciso encontrar uma saída! Simplesmente não posso continuar assim, Lola! Me ajude, Lola! Lola, diz alguma coisa! Uma palavrinha e fico satisfeito! Diga oi, como vai, qualquer coisa! Lola! Vou perder minha famigerada falta de autoconfiança, vou me aproximar de ti! Que se danem todos, que te querem só para si. Também tenho direito a tirar uma lasquinha de ti, Lola! Lola, dá uma lasquinha! Fala mais alto, Lola! Tira os óculos, Lola! Olha para mim, Lola! Me faz crer em deus, Lola! Dá uma benção, Lola! Me indica um caminho, Lola! Diz que estou vivo, Lola! Lola! Lola! Abre os portões do oráculo e deixa que eu escute tudo! Deixa-me aproximar de ti e te tocar, Lola, sentir em minhas mãos a carne rija do teu braço coberto por essa blusa de caxemira. Mas onde estás, Lola? Não te vejo mais! Lola, pensei que estivesses aqui! Onde estás? Não posso mais voltar, Lola! Não tenho aonde ir! Tudo acabou atrás de mim, Lola! Escuta! Escuta! Onde estás? Preciso encontrar uma saída, Lola! Ouve, Lola!

Ops

Sei que é chato mas aqui vai uma sugestão ao pessoal (inclusive jornalistas, autores de telenovelas, cronistas) que usa “ops!”, “alôôu”, ‘não sei você mas eu...”,  e outras interjeições e expressões copiadas do inglês: please, assistam menos seriados americanos e leiam mais Machado. Até ajuda a arrumar assunto e desenvolver um mínimo de beleza e estilo.
Aproveitando, hoje li num comentário de leitor no fórum do Estadão o seguinte dois pontos “Dilma mexe-se em seus últimos estertores”. Ainda se esses caras se limitassem a escrever o feijão-com-arroz em vez de dar uma de gostoso, não é mesmo?
Outro dia no Manual Mirim da Classe Média Deslumbrada (Revista Veja) um jornalista dizia “última pá de cal” sobre uma coisa qualquer. Na orkut tinha um sujeito metido a intelectual que um dia também veio com essa...
Há uns tempos participei mais ou menos ativamente de vários fóruns de jornais e revistas, até me mancar. Que é que posso esperar de gente que escreve últimos estertores? E jornalistas que mandam última pá de cal?
Outro dia, passando a vista na edição online do Manual Mirim da Classe Média Deslumbrada, dei com o italiano Umberto Eco (classificado de filósofo) dizendo que as redes sociais dão voz a uma “legião de imbecis” que antes falavam apenas “em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade. Normalmente, os imbecis eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel”. Segundo Eco, a TV já havia colocado o “idiota da aldeia” num patamar em que este se sentia superior. “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Para Eco, os jornais deviam usar uma “equipe de especialistas” para filtrar as informações da rede porque ninguém é capaz de saber se um site é “confiável ou não”.
Well, modéstia parte, também tenho meus reparos à redes sociais, mas opostos às considerações do ilustre escrevinhador carcamano. O triste no face e companhia bela é ver que quase todo mundo está se entregando a brincadeirinhas frívolas e joguinhos e piadinhas, jogando no lixo um tempo precioso que podiam dedicar ao estudo e à leitura, por exemplo. Quanto à “legião de imbecis” a dedilhar aboborinha na rede, o grande barato da internet é EXATAMENTE essa riqueza infinita de gente de TODOS os níveis, origens e ideologias falando o que lhes dá na telha. Sem contar que você pode encontrar de virtualmente tudo online. Se com a viagem à lua demos um passo gigantesco etc., com a rede mundial demos uns mil. Eco, sendo acadêmico, se acha a autoridade, o sábio com direitos naturais a se apropriar da verdade e deitar falação como se os demais fôssemos seus alunos. E, como escritor, Eco é um embuste. Seus compêndios abarrotados de erudição inútil estão milhões de milhas distantes da literatura genuína. Foram escritos para orgasmo eterno do magistério.
E tem outra, incontornável: não há como “filtrar” o conteúdo da rede, como tão ingenuamente propõe o pensador calabrês. A internet é território livre – livre inclusive do jugo dos donos da verdade, entre eles bacharéis e jornalistas. Falar em filtrar a rede é o mesmo que tentar segurar o Uber, aquele novo aplicativo que abre o mercado de transporte individual (táxis) a motoristas “particulares”. Os taxistas estão possessos. Se acham donos das cidades. Sintomaticamente, o mesmo movimento anti-Uber ocorre na França, paraíso das corporações. É uma das razões pelas quais a terra de Brigitte Bardot vive encalhada econômica e culturalmente, sempre a reboque da Alemanha e dos EUA. Alguns intelectuais franceses foram os primeiros a se ajoelhar diante do líder metalúrgico e depois saqueador do Tesouro Nacional e da Petrobrás. O corporativismo é o fardo do atraso que nós brasileiros somos obrigados a levar no lombo. Vide sindicatos e máfias em geral. E o pior de todos, o funcionalismo, o maior responsável pela bancarrota da previdência social, cujo déficit de incontáveis bilhões será debitado na conta de quem recebe um salário mínimo de aposentadoria. Não há político, de partido algum, homem o bastante para peitar os nababos públicos e suas mamatas obscenas. São sabe-se lá quanto milhões de vagabundos encostados em repartições e estatais e autarquias coçando seus sacos murchos, vitaminando suas contas bancárias, dando uma banana a nós pagadores de impostos otários que os sustentamos. É casta que flagela o Brasil desde o Descobrimento. O que me impressionou em Triste fim de Policarpo Quaresma não foi o nacionalismo doentio do moço e sim o desfile incessante de milicos e barnabés vadios, personagens gaiatos e desprezíveis eternamente a sugar o Erário. E parece não haver remédio para a praga. Quem está fora da casta de marajás só pensa em entrar. Até nossos maiores poetas e escritores corriam a descolar cedo na vida uma boquinha em alguma secretaria pública que lhes permitia dedicação total aos seus misteres literários, ou seja, às custas dos contribuintes. E... ops! Got carried away, sorry, hehehe.
Os fóruns de leitores são imperdíveis. Minha leitura preferida. Termômetro inigualável da nossa cultura. Ou falta de. Retrato fiel da cabeça do brasileiro médio. Está tudo lá, a jequice, a boçalidade, a ignorância profunda, a cafajestice orgulhosa, a descortesia que não pede licença, a hipocrisia, o falso moralismo, os preconceitos mais rudimentares. Os lullopetistas formam, naturalmente, um caso à parte. Que cara-de-pau, santo pai. Coisa de delinquente profissional, aquele sujeito que se marginalizou a tal ponto em relação ao padrão social aceito, que desenvolveu uma capacidade de externar as mais delirantes declarações sem se dar conta do mal-estar que causa em terceiros. Comportamento que copiam com desassombro e galhardia de Lulla.
Mais do que a análise antropológica, porém, curto mesmo é o uso idiossincrático que os leitores fazem do idioma. Trucidam as mais variadas normas da língua sem olhar credo nem raça. Não canso de me espantar com a sem-cerimônia com que espezinham o vernáculo. Qualquer dia crio paciência e coragem e inicio uma compilação do material. Tarefa para uma equipe multidisciplinar de professores-doutores. Chefiada por um linguista. Sei que alguns dos meus leitores poderão me achar virulento além do digerível por falar nestes termos. Sorry. Mas para mim o respeito à língua é o sinal mais importante do caráter duma pessoa. Não confio em quem a maltrata, seja por preguiça de pensar, seja por mero desleixo. (O desleixo está na base da nossa indigência.)
A língua se constitui de regras, e o adverso a elas opta necessariamente pela entropia. A favela de Heliópolis é um monumento ao caos. Passo diante de barracos e invariavelmente me vem à mente “Pombas, essa gente não pode ao menos se abster de empilhar lixo diante de suas portas? Será tão difícil manter os arredores livres de restos de comida e entulho? Por que será que quando pegam dengue aparecem na tela do SPTV se lamuriando que o governo isso, aquilo e aquil’outro?” Sem estrutura não há civilização.
Escrever não é moleza. Me refiro não à escrita literária e sim à comezinha, a que usamos para fins funcionais e práticos como nos comunicar e passar e receber recados. Esta merece tanta consideração e apreço quanto aquela. Serve como nosso cartão de visita. Tal como a literária, deve seguir certos preceitos insubstituíveis do vernáculo. E nem precisa ir à escola aprender.
Basta ler Machado. Com Machado você verifica quão fantástico e sem fundo é o oceano por sob as palavras.


Só pra você

(acho que acabei de cometer um poema antológico; devia seguir o exemplo de João Cabral e deixar o poema maturar no fundo do meu disco rígido mas sou ávido e os truques de Cabral não funcionam comigo. Vou revisar, corrigir, reescrever ao longo da semana. O legal da internet é que a última edição nunca é a última.)


a isca se espalha na liça em várias partes
o predador haverá de comê-la
a isca não é uma isca
seduz e hipnotiza a presa mas não é uma isca
não é
tampouco engodo
bem, não para a presa
o predador aguarda
o predador — não por vontade própria —
se transforma em estátua
caso contrário não será capaz de tolerar
caso contrário seria um predador impaciente
a isca está errada
o predador está errado
a presa está errada
os passos do tempo deixam suas pegadas
quem se animará a segui-las?
a presa está putrefata
o predador, desdentado
a isca os une
a isca os afasta
presa e predador trocam de papéis
predador e presa trocam de destinos
o predador não tinha encontrado sua presa
a presa não tinha encontrado seu predador
a presa nasceu para o predador
o predador nasceu para a presa
ainda assim precisam da isca
ainda assim exigem a isca
quando enfim se veem frente a frente
os pedaços de isca espalhados entre ambos
olhares cândidos de consumação ontológica
acima de ambos o céu carrega estrelas
a presa não vê alternativa
a isca precisa ser devorada
o predador não vê alternativa
a presa precisa ser devorada
e ambos odeiam tanto a lógica de suas existências
o confronto está marcado
nenhum dos dois sabe
o dia, o horário, o lugar
o confronto está marcado
há na vida uma exatidão
a presa (não) se arruma para o momento do martírio
o predador (não) se prepara para a hora da sentença
e numa repentinidade que se arrastou por toda a Terra
o horizonte os protege um do outro

Mas se ainda assim II

Por hoje chega.
Chega de fuçar vidinhas.
Não nasci para a microbiologia.
Hoje quero estar a mil km longe de tudo e de todos.
Estar longe de você.
Longe de mim.
Hoje não vou esperar minha chance.
Hoje não será o dia em que algum dos meus sonhos se fará realidade.
Pois hoje não tenho sonhos. Chega de sonhos.
Se o diabo surgir à minha frente a qualquer hora deste dia ensolarado que promete ser insuportavelmente escaldante e me disser que vou morrer antes de a noite chegar, não estranharei.
Se puder, e se ele se der a tais intimidades, me limitarei a lhe apertar a pata e agradecer a informação. Se tiver a boa vontade de me dizer também a hora exata do meu último suspiro, melhor. Assim me pouparei de cargas extras de ansiedade.
Embora não me sinta ansioso. Se acreditasse em milagres, diria estar na presença de um. A ansiedade é minha mais antiga parceira. Mais antiga mesmo que minha solidão.
Ambas formaram, e ainda formam, um belo par de amantes medonhas. Sempre aos mais indecentes beijos enquanto me olham de lado a escarnecer. E sob seus cânticos macabros e suas altercações histéricas aprendi a dormir com o coração aos pulos.
Só que hoje não.
Hoje estou livre das minhas velhas amigas e de todas as más amizades que aprendi a aceitar na marra.
Hoje sinto que não preciso me munir de coragem para seguir avante.
Pois não quero avançar aonde quer que seja. E tampouco quero retroceder. E muito menos permanecer onde estou. Não quero o movimento ou a inércia. Não quero nada.
Hoje tampouco vou comer. Ou beber. Pela primeira vez nas últimas décadas, deixarei de me gratificar às mordidas e me sorver aos golinhos. Hoje me engulo inteiro duma vez. E me sinto saciado. Desesperadamente saciado.
Por hoje chega de mim.
Chega de você.
Chega de vida.
Chega de mundo.
Não quero mais essa generalização que abarca tudo como se tudo fosse um só e exclui o que há em mim como se o que há em mim fosse nada.
Não quero a síntese duma palavra, não quero me invaginar num símbolo, não quero a chave dos segredos que busquei sonâmbula e incansavelmente.
Não quero pensar em nomes que não posso chamar.
Delirar com corpos que não posso amar e bocas que não posso beijar.
Por hoje chega.
Chega de trabalho e de descanso.
Por hoje chega.
Chega de futuro e de presente.
Por hoje chega.

Quer assunto melhor que futebol, política, mulheres, previsão do tempo?

Well, pela reação fortemente adversa dos leitores ao artigo que Reinaldo Azevedo publica todas as sextas na Folha de SP, parece que o poderoso jornalista vai se enroscando na própria teia. Sua tentativa de defender Marcelo Odebrecht e apontar o dedão para o juiz Sérgio Moro saiu pela culatra. Quem diria, o paladino da luta pela libertação nacional do lullopetismo está-se revelando um vendido.
Se fosse como ele, eu não perderia a chance de capitalizar em cima da escorregada e bradaria “bem que avisei!”. Bem que avisei.
Desde meu curso de Jornalismo na USP nos idos dos anos 70/80 do século passado escrevo que todos os jornais e jornalistas, indistintamente, têm um valor. Basta saber onde está a etiqueta do preço. Esse papo de jornalismo isento só existe na cabecinha de esquerdistas ingênuos (aqueles que ainda não se venderam também). O grande Paulo Francis (grande literária, não moralmente) não passava dum lacaio de seus amigos do peito banqueiros e empresários. Certo dia, já revelando sinais de senilidade, se confessou defensor incondicional do ladrão profissional Paulo Maluf, que recebia com honras e rapapés em seu apê em Nova York. Lembro que num artigo de sua série “Diário da Corte” teve o descaramento de afirmar que Maluf era o maior político do Brasil. Pfui.
O lado bom da encrenca em que Azevedo se meteu dando a bandeira de sua opção preferencial pela Odebrecht será o efeito didático sobre seu leitorado. Seus fiéis seguidores – alguns, pelo menos – já estão se mancando que seu ídolo blogueiro não passa dum panfletário.
Há algumas semanas virei persona non grata na seção de comentários do blog de Azevedo, obviamente por ter escrito escrevido algumas opiniões que comecei a ter sobre ele. Tudo bem, o blog é dele e reconheço que cada um de nós donos de blog tem o direito de filtrar a participação de terceiros da forma que lhe aprouve ouve ve ve. Mas quase aposto que Azevedo está começando a se arrepender de publicar artigos na Folha. Ali não pode censurar os comentários hostis. E no dia de hoje está desabando uma tonelada deles sobre a cabeça do guru cabotino.

Entendo mas não quero

Não será a morte que o matará

Se me fizessem a pergunta certa
Responderia: preciso agir rápido
Ultrapassar meus próprios passos
E isto sei bem
Como disse outro dia, trabalho para
Sossegar numa tristeza muda
Um miado – ou será um grito feminino
Sufocado pela perplexidade? –
Corta a preguiça da noite que
Mal começa. O fim é impossível

Trio para violino

Quem sabe um dia uma civilização de alienígenas espaciais depare com vestígios deste nosso malfadado planeta no espaço e, com sua super-ultra-lupa nos devasse nossa alma que não tivemos a capacidade de devassar em cem milhões de anos de vida terráquea. Malgrado os freuds e os einsteins da Terra.
Os americanos, há uns trinta anos, lançaram rumo ao zênite uma nave chamada Voyage que guardava, entre tantos tesouros, pedaços de obras de Beethoven e Mozart e Johnny B. Goode de Chuck Berry. Que paupérrimo cartão de visitas Tio Sam pretendeu emitir ao cosmos, não é mesmo? Quando botarem a Sétima em sua ultra-super-vitrola, os homenzinhos verdes com zilhões de QI na certa vão se esbaldar de rir. Não da Sétima e sim da tosca tentativa dos seres denominados homens em disseminar sua mentira humana por todo o fabuloso espaço sideral.
Pois os verdinhos cabeçudos sacarão na hora – o espécime Beethoven foi um acidente na existência da espécie. A prova? O espécime Mozart. (O roquinho adjunto seria apenas uma piadinha interplanetária.)
Seus mil olhos se entreolharão admirados, especulativos, refletindo a miríade de cálculos e considerações de seus supercérebros. Que espécie é essa que se apresenta aos demais habitantes do universo ostentando a exceção em vez da regra?
Nos devotamos incalculavelmente mais a mentir que a contar. Para que teatro na praça da igreja se encenamos da aurora ao crepúsculo? Um personagem que não é fictício?
Hoje à tarde estava relendo, relendo, relendo, pois viver não sei, o que sei é reviver. Me ocorreu a dicotomia acidente/... Qual é mesmo o antônimo de acidente? Uma equação, será? Uma polinomial acidental.
"Doce fantasma, por que me visitas
( ... )
Tua visita ardente me consola?
Tua visita ardente me desola.
( ... )

Domingo à noite diga que estou viajando II

Lembrei o que tinha esquecido desde a infância.
Criança,  achava todos fingidores. Fingiam ser felizes. Fingiam tolerar a sentença de viver. E fingiam como profissionais.
Havia os personagens do dia a dia: pai, mãe, irmã.
Havia as figuras que davam o ar de sua graça incidentalmente.
Entre os incidentais estavam os que se apresentavam como parentes vivendo em paragens distantes improváveis. Quando os visitava, eles corriam a construir as ruas e vilas de suas cidadezinhas, sempre pacatas, meio paradas no tempo, pavimentando calçadas, levantando postes, estendendo cabos elétricos e telefônicos, ativando carros, ônibus e caminhões, acionando ciclistas que aprendiam a se equilibrar instantaneamente em suas bicicletas quase reais, movimentando pedestres que subiam e desciam as ruas do centro como se tivessem de fato um destino legítimo, forjando cinemas que passavam filmes de verdade e que até cobravam ingresso, gelando os sorvetes nas sorveterias em cujas mesas eu me sentava para que me inteirassem dos assuntos que corriam como boatos e que tinham recém inventado para que não desconfiasse.
Os incidentais também incluíam os que se apresentavam como amigos que em outras eras fantásticas tinham conhecido o pai, a mãe ou a irmã. Cada amigo tinha sua própria história, genealogia e raça. Em sua maioria eram católicos para que não houvesse estranhamento, sempre um perigo em casos como esse. E falavam de coisas de que eu nunca ouvira falar, tendo no olhar um brilho promissor de que minha vez haveria de chegar -- era só ter paciência.
Havia vizinhos que se davam o imenso trabalho de nascer e crescer e, inventando formidáveis pretextos dignos da ficção científica, se mudavam para as casas ao lado, para o sobrado em frente, para a pensão na esquina. Alguns, mais empenhados na faina do ludíbrio, arrumavam empregos longe, que os obrigavam a sair de casa muito cedo para só retornar muito tarde da noite. Esses mais empenhados chegavam ao capricho de procriar. Faziam meninos e meninas que cresciam para popular o mundo em volta, camuflando a solidão natural para a inescapável tarefa de alimentar a esperança.
A maioria vinha e ia. Não, a maioria não: todos. Todos vieram e foram. Até mesmo os personagens do dia a dia: pai, mãe e irmã.
Fico pensando se foram por concluírem que já tinham cumprido sua missão de me iludir. Talvez ele já esteja suficientemente ludibriado, pensaram. Talvez ele também já possa ir. Agora, neste fantástico teatro que nos impusemos encenar, só nos resta baixar a guarda e morrer.
E acho que assim foi. Alguns morreram, outros sumiram sem explicar para onde ou por que, outros se afastaram sob desculpas mais ou menos verossímeis, dando, todos, por finda sua doce missão.
Mas eis-me aqui lembrando o que não me cabe lembrar.
Se fosse possível, lhes diria que foi tudo inútil. As tripas da vida estão expostas, e, sem alternativa, cometo o erro de olhá-las, sentindo o nariz entupir do cheiro de sangue.
Se fosse possível (se fosse possível restituir tudo àquele estado em que o mundo pareceu uma vez ter sentido), lhes diria que nunca fui profissional na arte de encenar. Por isso, quem os enganou fui eu

"Vida a dois" ressuscitado I

Se despedem.
— Tchau, benhê.
— Não me espera. Vou passar na Norma ajudar ela no imposto de renda. Depois vou lavar as cortinas. Ver a novela.
— Não me espera você também. Vou no Miguel ver o jogo. Resolver aquele caso do aidético.
Ela acaba indo no baile a fantasia.
Ele também.
Bebem.
Relaxam, se entregam.
Ela se encanta c’um mascarado.
Ele, por uma mascarada.
Quando acordam um do lado do outro na cama, dava vontade de dizer bidu.

Manequins vivos

Leio na indigitada Folha de SP que moradores da Paulista estão mudando seus hábitos de passear com seus pequenos e peludos quadrúpedes.
A reportagem cita uns nomes de gentes – todos, absolutamente, da terceira idade pra cima – que tiveram pets surrupiados pelos amigos do alheio. A, ou o, jornalista se permite até piadinhas espirituosas como esta: “A vizinhança está de orelha em pé.” Ri autenticamente quando li, hahaha.
Não sei se é coincidência mas todos os bichinhos furtados se incluem nas raças da moda: shtizu (que o, ou a, repórter escreveu em maiúscula como se fosse nome próprio, púdol, pitibul e outros pedigris de fino trato. Menos o da desenhista Vania Chinaglia (que também se distingue dos demais donos na faixa etária, tem parcos 40). Consta que Zeca, pet da desenhista, não tem raça definida (na minha terra se dá o nome de vira-lata) e já bateu nas 12 primaveras. Segundo Vania, foi o que o salvou da sanha dos larápios. “Já é velhinho. Acho que ninguém ia querer roubar.”
Quero então crer que eu e minha preclara Zeguembinha estamos a salvo dessa nova modalidade de crime contra o patrimônio. Ms. Bigunzim tem até hoje sobrevivido a todas as tentativas de classificação racial. Já escutei diagnósticos e pareceres os mais controversos. Uns asseveram que Zezeí é legítima descendente de fox, outros juram que proveio de pais mexicanos, terceiros reputam uma origem teutônica. Cá pra mim – e para a própria –, Zezeí não passa da mais legítima mistureba de que a genealogia canina tem notícia.
A questão é tão simples, não é mesmo?
Tem quem roube porque tem quem compre. Se trata das famosas leis do mercado, que os esquerdistas teimam em fazer de conta que não contam. Não estou por dentro das cotações caninas desta noite de domingo mas ocasionalmente ouço falar de filhotes que chegam a cinco mil pilas.
Ouço falar de outras coisas também.
Por exemplo, de que há quem leve seu bicho ao petshop e fornece nome e endereços falsos e nunca mais dá as caras. E há quem simplesmente leve o indesejado a um lugar ermo e abre a porta do carrão e despacha o infeliz para o mundo do oblívio e da indigência.
Cinco, seis, sete vezes todo santo dia Zezeí, e eu atrás, saímos pelas ruas em busca de emoções fortes e cruzamos com shtizus e lhasa apsos (sempre em maiúsculas, não esqueça) e o escambau.
Estamos desconfiados duma coisa – os donos desses pequenos campeões estão mais preocupados em seguir a moda que em praticar o afeto e o cuidado. Embonecam seus bichinhos com brinquinhos e fitinhas e o cacete e os vestem com roupinhas que também devem estar em consonância com o ditame parisiense e os tosam no corte recomendado pela autoridade competente.
Há cerca de um mês tomei uma decisão (acho que já mencionei aqui): vou adotar o primeiro cachorro perdido com que deparar em minhas andanças.
Como também já disse, é mais difícil do que imaginava – cães perdidos se tornam extremamente ariscos e fogem quando assobio chamando. E ficam totalmente intimidados com a presença de Zezeí. Adotar um deles assim de repente parece que não vai ser fácil.