Por hoje chega.
Chega de fuçar vidinhas.
Não nasci para a microbiologia.
Hoje quero estar a mil km longe de tudo e
de todos.
Estar longe de você.
Longe de mim.
Hoje não vou esperar minha chance.
Hoje não será o dia em que algum dos meus
sonhos se fará realidade.
Pois hoje não tenho sonhos. Chega de
sonhos.
Se o diabo surgir à minha frente a
qualquer hora deste dia ensolarado que promete ser insuportavelmente escaldante
e me disser que vou morrer antes de a noite chegar, não estranharei.
Se puder, e se ele se der a tais
intimidades, me limitarei a lhe apertar a pata e agradecer a informação. Se
tiver a boa vontade de me dizer também a hora exata do meu último suspiro,
melhor. Assim me pouparei de cargas extras de ansiedade.
Embora não me sinta ansioso. Se
acreditasse em milagres, diria estar na presença de um. A ansiedade é minha
mais antiga parceira. Mais antiga mesmo que minha solidão.
Ambas formaram, e ainda formam, um belo
par de amantes medonhas. Sempre aos mais indecentes beijos enquanto me olham de
lado a escarnecer. E sob seus cânticos macabros e suas altercações histéricas
aprendi a dormir com o coração aos pulos.
Só que hoje não.
Hoje estou livre das minhas velhas amigas
e de todas as más amizades que aprendi a aceitar na marra.
Hoje sinto que não preciso me munir de
coragem para seguir avante.
Pois não quero avançar aonde quer que
seja. E tampouco quero retroceder. E muito menos permanecer onde estou. Não
quero o movimento ou a inércia. Não quero nada.
Hoje tampouco vou comer. Ou beber. Pela
primeira vez nas últimas décadas, deixarei de me gratificar às mordidas e me
sorver aos golinhos. Hoje me engulo inteiro duma vez. E me sinto saciado.
Desesperadamente saciado.
Por hoje chega de mim.
Chega de você.
Chega de vida.
Chega de mundo.
Não quero mais essa generalização que
abarca tudo como se tudo fosse um só e exclui o que há em mim como se o que há
em mim fosse nada.
Não quero a síntese duma palavra, não
quero me invaginar num símbolo, não quero a chave dos segredos que busquei
sonâmbula e incansavelmente.
Não quero pensar em nomes que não posso
chamar.
Delirar com corpos que não posso amar e
bocas que não posso beijar.
Por hoje chega.
Chega de trabalho e de descanso.
Por hoje chega.
Chega de futuro e de presente.
Por hoje chega.