iwgç054, yep

du kannst alles was du willst, wenn du nur willst was du kannst
(you can do what you want if you want what you can)

iwpl046

Tucson, Arizona, início dos anos sessenta, a família está reunida na sala de estar ainda sob os efeitos das emanações degustativas da formidável apple pie servida por mamãe após a lauta janta à base de franco frito, purê de batatas, espargos verdes salteados com linguiça e ovos mexidos, cebola e muito toucinho.
De repente Bobbie se dá conta de que há um estranho sentado entre papai e a pequena Jennifer no sofá. Ao contrário do que seria de esperar, Bobbie não se espanta nem se aflige. Então papai, mamãe e a pequena Jennifer olham o estranho e também parecem não se incomodar.
— Cadê o rem? — também repentinamente questiona o rapaz. (Pois era dum rapaz que se tratava.)
— Rem? — devolve a pergunta papai. — Que é isso? (What's that? no original.)
— O remo? Onde está o remo?
— Remo? — confunde-se mamãe. — Por acaso você vai descer o Santa Cruz River de canoa?
— O remote! Cadê the fucking godamm remote?
— Ah! Acho que eu sei! — alegra-se Bobbie. — Devo ter visto debaixo da poltrona de mamãe. — E aponta na respectiva direção.
Meio de má-vontade, papai se levanta pesadamente do sofá e verifica o local indicado por Bobbie.
— Sim! Aqui está. Esta coisa cheia de botões coloridos. É isto?
— É! — O rapaz estranho assente vigorosamente com a cabeça. Apanha o objeto da mão de papai, mira com ele o aparelho de tevê e pressiona um dos botões.
De repente mais uma vez, a sala de estar parece congelar-se pela luz amarelada do aparelho. E todos os presentes parecem cair sob os efeitos das emanações hipnóticas da telinha.
Menos o rapaz, que já não estava mais ali. Ninguém da família se perguntou se o estranho poderia chamar-se Steve Jobs, Bill Gates ou Barbara Walters maquiavelicamente transfigurada na pele e nos trajes dum young man meio insolente, meio alourado.

Quem poesia me dera no particípio

Sua casa era cinza
As plantas da sua casa não eram cinza pois em sua casa não havia plantas
Os muros da sua casa eram cinza
As janelas da sua casa eram cinza
O piso da entrada da sua casa era cinza
O portão da sua casa era cinza
E seu caminho, pois não havia mais de um,
portão adentro era cinza
E todos os móveis da sua casa eram cinza
E todos os objetos existentes dentro da sua casa eram cinza
E seu caminho, pois não havia nenhum,
portão afora era cinza
E todas as pedras de todas as ruas eram cinza
Seu carro era cinza
E tudo que havia em seu carro era cinza
O céu por sobre sua casa e seu carro era cinza
As nuvens no céu por sobre sua casa e seu carro eram cinza
Ah! Seu cachorro era cinza!
Menos seu gato pois seu gato não existia (ah, essa gente esquisita que não gosta de gatos)
As roupas do seu marido eram cinza
As roupas da sua mulher eram cinza
Seu passado era cinza
Tal como seu futuro e seu presente
naturalmente
Mais que tudo, seu dia era cinza
Sua noite era, ó deus, cinza
Seu amor era cinza
Seus sonhos eram cinza
E seus pesadelos eram cinza
Sua comida, sua bebida, seus cigarros, tudo era cinza
Seu cocô era cinza
Seu cuspe era cinza
Seu suor era cinza
Seu sangue era cinza

Amorokê na vila - Capítulo 024

“É minha página de abertura, ele plagiou meu trabalho bem aqui diante dos meus olhos antes mesmo que eu a escrevesse!”
Thomas Bernhard

Tempo que não passa, mundo que não gira, vida que não chega, noite que nunca acaba. Acordei cedo para lavar e polir meu Escort 1996 amarelo com teto solar. Meu pai tinha um Mercury 49 bordô, a carcaça devia pesar uma tonelada, superfície de zilhões de metros cúbicos do mais requintado ferro vermelho-menstrual. Época manera aquele auge da guerra-fria, os brothers do norte com a corda toda, levando em dramático banho-maria os bolshevikes até o epílogo previsível do muro de Berlim, antevendo que dali em diante nada poderia pôr cobro na expansão do império do coke e ketchup como gratificação instantânea, fabricando aos bilhões essas banheiras gigantes bebendo um litro de gasosa a cada 1,3 km, espaçosas o bastante para abrigar 8 famílias dos nossos paus-de-arara desnutridos mirrados ao nanismo.
Meu Escort 96 amarelo com teto solar leva bueiro abaixo uns 3 mil litros d'água toda manhã de terça e sexta, dias que programei para banhar la bête. Puta que o pariu, essa talagada daria para todo um povoado no interior do Piauí lavar a égua um mês inteiro. O governo britânico botou no ar uma campanha pedindo aos súditos da rainha que só deem a descarga se fizerem o número 2, daqui a 15 anos metade da população do planeta estará sem o que matar a sede, provavelmente sem como levar embora o produto da feijoada de ontem. Abro a torneira até o talo, o líquido (nem tão transparente, incolor e inodoro quanto seria desejável) jorra que dá dó, refrescando as mágoas que desde menino trago dentro do peito enquanto vai enxaguando em vão as lajotas de pedra-mineira da calçada aqui de casa.
Fico meia-hora nesse estado letárgico assistindo o espetáculo do corrimento sacro, até que, sei lá por que razão, me dá vontade de zanzar pela av. Goiás e cercanias. Putz, penso pensativo e pasmo, não passo ali desde ontem. (Quando os ivãs invadiram Berlim no fim de abril de 45, estuprando alemãs de todas as idades em bando e aos montes, o que mais as mulheres sentiam falta era de água para se lavar ao fim de cada estupro. Muitas delas eram violentadas várias vezes ao dia.) Uma das delícias da minha infância era que coisas como a concupiscência comunista não passava de mito, insuficiente para compensar meus terrores imaginários infantis, muito mais barra pesada. Depois cresci, pelo menos em tamanho, e vieram os terrores propriamente ditos, entre eles amores e dores amadurecendo até a adolescência e, feito jacas, apodrecendo ainda pendurados no pé, apenas levemente balançados pela ventania que sopra por mim todas as manhãs, me deixando de presente este amargo que nunca mais me saiu da boca, encharcando meu mundo dum cinzento eterno e não prestei mais atenção em nada afora meu próprio torpor. Só me resta esta capacidade de perceber que as pessoas perderam a graça. A beleza das coisas acabou.
Ontem à noite, por volta das onze e meia, depois de passar o dia rodando à deriva no meu Escort 96 amarelo com teto solar até ir parar naquele quase aconchegante beco sem saída (estaciono, desligo o motor e passo para o banco traseiro e fico lá um tempão pretendendo fingir ser a Jean Seberg, só descoberta sete dias depois do suicídio, bon jour ma belle tristesse, sempre reclamando que o marido Romain Gary a retratava como prostituta em seus livros, tema para todo um romance), desci do carro, fui até o orelhão na esquina e disquei, ou melhor, teclei, a língua travando dentro da boca ante a vozinha vindo pelo fone zumbindo dentro do meu ouvido qual rainha das abelhas africanas ciente da própria realeza e incapaz da ferocidade, grunhidos poéticos me borbotando de má vontade penosos pela boca, versinhos que em alguma hora do dia ou da noite sobem convulsos pela minha garganta ganhando vida à minha revelia, vivos e enfermos duma doença congênita, patológicos, malditos, só me dando conta quando escuto que ela respira pesado do outro lado da linha, querendo me cortar sem coragem, ela não suporta meus arroubos existencialistas, é mulher prática, sabe que a vida não perdoa frangotes atacados pelo vírus da hipersensibilidade degenerativa, mesmo assim consegui dizer estou desesperado, bati o telefone mortificado com o que ela pudesse responder.
De repente me dou conta de que o rádio está tocando Kleiton & Camargo, o engulho ascende à boca da garganta, me ponho a pressionar atabalhoado todas as teclas tentando mudar de estação, um violino, aumento o volume, a frase principal do quarteto de Haydn, a frase aquela, atávica primitiva duma sucessão dessas notas com que nascemos todos na cabeça e que está em nós assim como nossos braços e nossas pernas e nossos olhos, depois esquecemos “no calor da luta”, aquela me varrendo por dentro em onda de água sanitária, aclareando minhas indecisões, reduzindo a pó melancólico a vaguidão que me suga qual ralo invisível, veneno redentor que remove a sujeira de mim esbranquiçando as sombras desta noite poluída e eletrizada desta Sanca hiperpovoada de caipiras medievais.
Anestesiado da corda, saio da banguela, o Escort dá um suave tranco, pedindo licença antes de o câmbio automático engatar a quarta, pressiono docemente o acelerador até o fundo, o fedepê singra a reta final, os pneus semicarecas mal tocando o asfalto. Lá na frente, depois do portão principal da GM, fora da minha vista, está aquela curva da Goiás que, lembro agora, cruzei ontem à noite. Além da curva, a Rocha da Felicidade. Tenho quase certeza de que ambos formarão um belo par. Ela e ele. Estou predestinado.
Quando foi a nossa última noite? Mês passado? Ano passado?
Acordamos ao mesmo tempo. Sei por causa do gemido abafado na garganta dela.
Ela geme e não abre os olhos. Eu abro antes de gemer.
Ficamos escutando a chuva lá fora.
Se as pessoas não se espantam com a chuva, com que haveriam de se espantar? ─ ela se espanta.
A claridade começa a incomodar e então ela abre os olhos.
Ausculto a penumbra. Em minha mente relampejam ecos vagarosos amorfos. Levanto e vou até o quadro na parede e abro as folhas. A luz de fora entra no quarto. Um período de claridade, outro de escuridão, não me espanto com a água que cai do céu nem com nada. Torno a deitar.
Fico pensando se teria coragem de virar andarilho e sair pelo mundo e viver de esmola e restos de feira. Buscando meu pai, buscando os filhos que ela nunca quis me dar. Erguendo a cabeça acima da zona de segurança para ver se os que fazem isso são decapitados pelo seco e inclemente golpe do guardião da vingança.
Ela podia pousar a mão em minhas costas e me aconselhar ─ quando chegar aos portões da cidade, bata palmas e chame, pai! filho! filho! uma batida para cada chamado.
Estou pregado à minha cruz mas não vejo os cravos.
Então você encontrou a felicidade! ─ ela me reconforta.
Levei décadas para chegar a este apê de dois dorms e ao meu emprego no banco. Minhas pernas não aguentam dar mais um único passo. Não posso sequer escolher o chão onde repousar o corpo dolorido alguns minutos antes de retomar a caminhada. Não sei aonde vou.
Talvez não precise ir.
Mal sabia eu.
Levei um ano para pegar no sono e quando dormi sonhei que meu patinete azul e vermelho, dado pelo meu irmão no meu aniversário de onze anos e que só arranquei dele sob ameaça de contar a Magda, sua mulher, sobre as namoradas que ele tinha por aí, estava encostado na parede do fundo do quintal.
Outro ano para enfim entender.
Começamos aquele papo na sala no dia 8 de julho (logo você vai ver por que fui guardar a data), penso sem coragem de abrir a boca, um frio infernal na tarde cinzenta, alguém me dê uma notícia trágica que me permita sair correndo, o show do Chico à noite cancelado, tínhamos marcado há várias semanas, ela disse ontem, está usando seu uniforme de anti-social chique, quer dizer que chegamos mesmo perto da ruptura? ela assobia simulando perplexidade, eu pensando quanto tempo vou aguentar ficar sóbrio, véspera de feriadão, ela diz que não tem nenhuma intenção de passar a noite em casa, acho melhor nos separarmos por uns tempos, penso em como me livrar dela na próxima meia-hora, não consigo conter um soluço, um carro buzina na rua, olho de lado para ela, um telefone toca no apê ao lado, o angorá dela está deitado no tapetinho bem diante da porta, se fosse dezembro provavelmente um trovão ribombaria no céu, não se mexe, ela dá um salto do sofá, tique que trago desde a adolescência, vai até o som, de repente me ponho de pé, liga, caminha até o centro da sala e senta na poltrona à minha frente, Jefferson Airplane, pensei, algo na música parece estar quebrando, um carro buzina na rua, aliso o peito da camisa com a mão direita, um carro de som passa na rua anunciando um candidato a vereador, lembrar o passado me deixa a boca seca, não chore, fiz um poeminha para você, um pequeno papo na sala, ela diz, comprei um presentinho, rio sem-graça, ela mexe a cabeça em sinal de não, faço cara de confuso para não deixá-la ainda mais constrangida, não estou preparado, ela caminha até atrás de mim no sofá, quem sabe só até o fim de julho? como se tentássemos umas canções novas em vez de chafurdar na mesma merda dia após dia nos desejando o que há de pior, desliza os braços ao redor do meu pescoço, você precisa se alimentar, e se fôssemos ao shopping? sim, me limito a ficar de olhos presos no papel em branco feito bobo, penso, cruzar aquela porta e sair do apê dela e da vida dela será certamente uma aventura, vamos recomeçar tudo, Ten Years After, enterrar esses últimos dias, acho melhor nos separarmos por uns tempos, imploro mentalmente, ela diz, não sei ficar um minuto afastado, não acho justo, fiz um poeminha, um frio incêndio toma conta do mundo, um minuto afastado, ela sai detrás de mim, não estou preparado, não acho justo, entra uma faixa dos Allman Brothers, solta o ar dos pulmões fingindo relaxar, da última vez ficamos seis semanas longe um do outro, amanhã é sexta-feira, Saul Bellow diz que não há outro tema na arte hoje em dia senão a busca policial pelo assassino (não, não foi Bellow, foi Ricardo Piglia, mas quem dá bola pra escritor argentino?), comprei um presentinho, faço cara de pesaroso, sem-graça, as pupilas dela pulsam, rio outra vez, não acredito, percebo que calquei a bic no cartão até rasgar, rio, ela caminha até atrás de mim no sofá, quer dizer que chegamos mesmo perto da ruptura? se fosse primavera provavelmente um arco-íris riscaria o céu, quem sabe só até o fim de agosto? como se tentássemos umas dores novas em vez de chafurdar na mesma merda dia após dia nos sofrendo o que há de pior, lembra como nos divertíamos na aula naquele teatrinho em que fingíamos estar em Heliópolis? Amanhã é o feriado da Revolução paulista, penso sem coragem de abrir a boca, não acredito, ela me olha de lado, tínhamos marcado há várias semanas, está com olheiras profundamente roxas, deslizo os braços ao redor do seu pescoço, você precisa se alimentar, o cinza profundo no céu se reflete através da janela nas suas pupilas, penso de novo sem ânimo de botar para fora, rio ainda sem-graça, ela balança a perna que está dobrada sobre a outra, eu vou, saio detrás dela, algo na música parece estar derretendo, caminho até o centro da sala e sento na poltrona à frente dela, estou com bloqueio, solto o ar dos pulmões fingindo relaxar, ela não saberá mais meu endereço, seria tão fácil se soubéssemos curtir uma aventura, digo sem-graça, ela tira um papel do bolso do cárdigã e me estende, eu pensando quanto tempo vou aguentar ficar sóbrio, desdobro, tínhamos combinado ir até Barra do Una no feriadão, está em branco, tiro um papel do bolso do cárdigã, estou com bloqueio, ela faz cara de confusa para não me deixar ainda mais constrangido, ri ainda sem-graça, não posso deixar de perceber um esforço de resistência na sua expressão, cruzando os braços e se encolhendo de frio, ela diz algo em alemão, me dá uma gana de aninhá-la no meu colo, neste 8 de julho do ano que vem estarei num aeroporto, me limito a ficar de olhos presos no papel em branco feito bobo, quer uma cerveja? ela oferece fazendo menção de levantar para ir buscar, faço cara de pesaroso, digo uma frase em espanhol, penso no trânsito e seus motoristas loucos, voltei a estudar, o show do Chico à noite cancelado, rio outra vez, ela certamente irá escrever entre hoje e amanhã, olho pela janela o azul profundo no céu, voltou a estudar, lembra como nos divertíamos na aula naquele teatrinho em que fingíamos estar em Heidelberg? Amanhã é o feriado da Revolução de 32, estou em branco, digo, vamos recomeçar tudo, finalmente vencendo a letargia, balanço a perna que está dobrada sobre a outra, fico torcendo para o celular tocar, terei morrido nas mãos de um traficante, alguém me dando uma notícia trágica que me permita sair correndo, com olheiras profundamente fundas, tínhamos combinado viajar no feriadão, ri sem-graça, ela vai, Ricardo Piglia diz que o leitor busca na literatura a experiência que se perdeu, está pálida, quer outro balla? ofereço fazendo menção de levantar para ir buscar, enterrar esses últimos dias, mexo a cabeça em sinal de sim, de repente ela dá um salto do sofá, me ponho de pé, já vou indo, ela arregala os olhos, já vou indo, as pupilas pulsam, digo quase num sussurro, ela diz que não tem nenhuma intenção de passar o fim-de-semana fora, não posso deixar de perceber um esforço de complacência na expressão dela, finalmente vencendo a nostalgia, não ria, ela fecha os olhos, for christ's sake, for christ's sake, imploro mentalmente, penso de novo sem ânimo de botar para fora, ela está corada do uísque, digo quase num sussurro, mais nada, um celular toca no bolso de alguém que sobe ou desce pelo elevador, não se mexe, penso, começo a rumar para a porta, esse celular que não toca, um caminhão de som passa na rua anunciando um candidato a deputado, ela está usando seu uniforme de publicitária chique, neste 8 de julho do ano que vem estarei sozinho em meu quarto, entra uma faixa do Jimi Hendrix, brincando com a ideia de procurar alguma ex, continuo a rumar para a porta, ela não saberá mais meu nome, da última vez ficamos seis meses longe um do outro, escuto um soluço atrás de mim, ela diz, penso em como me livrar dela até terça-feira, meu pequinês está deitado no capacho bem diante da porta, estamos no picadeiro dum circo triste, cruzar aquela porta e sair do apê dela e da vida dela será definitivamente uma tortura, um calor infernal na tarde branca, outra vez os deuses do coração foram cruéis comigo, passo a mão direita no peito para alisar a camisa, ela certamente ficará a noite toda escrevendo, cruzando os braços e se encolhendo de frio, calcando uma bic num pedaço de papel até rasgar, outra vez os deuses da arte foram magnânimos com ela, véspera de feriadão, e se fôssemos a um barzinho? sim, amanhã é sábado, lembrar o passado me deixa a boca pastosa, penso no trânsito e seus motoristas ensandecidos, seria tão fácil se soubéssemos curtir uma aventura, uma irresistível onda gelada toma conta do mundo, mais nada, estamos numa sala escura, me dá uma gana de aninhá-la no meu colo.
Na hora não desconfiei de nada.
Dia seguinte, ela quer ir ao Municipal ver o Quarteto número 4 em dó menor opus 18, eu queria ir no Credicard Hall ver a Madonna, me dá uma ameaça de engulho acho que na boca do estômago, não consigo evitar a autopiada, esses momentos magicamente nauseantes em que você pensa uma multiplicidade de coisas ao mesmo tempo. Disfarço o desagrado, sem conseguir, se tem algo que não sei fazer é esconder o que sinto, defeito infantil que execro em mim mesmo, entre outras milhões de imperfeições que vão me matando pouco a pouco dia a dia e que só pioram com a idade, tudo, vai dando tudo errado, não sou nada do que imaginei seria até meus 30 anos, não posso conter a inveja da juventude, outro dia ela disse, lembra, aquele tempo tudo se resumia a ser jovem, deus, salvai-me da vida, por que eram minhas fatalidades tão previsíveis, tanto, que as desdenhei, desdenhador profissional, há uns 2, 3, sei lá quantos meses dei de desperdiçar minhas energias tentando lembrar a cara do amolador de facas que passava na minha rua anunciando sua presença imperativa c'uma gaita tocando um dos hinos da minha infância, não posso consentir que minhas neuroses me assoberbem, não tenho vocação de escravo, minha rebelião contra a vida é suficiente para fazer de mim o loser que sou. Desisto de disfarçar a náusea, desarmo os ombros, exalo, curvo a cabeça. Não posso, sou uma ovelha, minha guardadora das minhas dores, minha caprina redentora. Neste instante o quarteto número 4 em dó menor seria um caroço com protuberâncias demais para forçar goela abaixo, mais penoso que ir a um rodeio em Barretos. Ela decide exibir cara de espanto. Não esperava que eu exagerasse além do que costumo exagerar. Mas sabe que vez ou outra minhas encenações escapam dos limites, dos limites que aprendi a me impor e que ela tem me ajudado ao longo da nossa vida a me impor. Olha benzinho, eu queria ficar em casa sem ouvir nada nem pensar nada nem falar de nada, pode ser? Ela faz o costumeiro trejeito de resignação, é feliz por ter a capacidade de conter as próprias vontades e fazer papel de obediente, foi essa a forma que escolheu de parecer superior a mim, veja só a que me reduzi, ator insuperável do patético que sou. Ainda que tarde, digo, ainda que tarde tenho, acho, tenho algo a lhe dizer. Outro espanto, agora mais grave. Então me olha desconfiada. Não sou de fazer anúncios. Aprendi sozinho comigo mesmo. Depois consolidei como um dos meus parcos princípios pessoais lendo Graça. Ela me olha preocupada. Quebrei uma das regras pétreas que vimos negociando ao longo de todos esses anos, estabelecidas arduamente uma após a outra depois de determinar, em cada uma, a justiça e a justeza para ambos, a pertinência de que guardava para nós pelo menos um laivo de verdade pessoal e o perímetro individual em que nos dávamos reciprocamente o direito de ocasionalmente vagar vagabundos sem receios agudos de transgredir a circunscrição do outro. Eis o que acabei de quebrar ─ sacro cristal agora espatifado em incontáveis caquinhos que, se deus ou qualquer outro ser duma dimensão insuspeita me der a graça de superar minha cafajestice nata para poder recolhê-los e reconstituir com a cola do arrependimento fingido. Tarde demais. Os cacos cintilam no céu negro da minha noite hipotética qual estrelinhas cortantes e pontiagudas prestes a desabar sobre este meu mundo que jamais se materializa. Não deu tempo, me recrimino acerbo, não, não devo sufocar a autopiada. Tive um sonho, prossigo. Outra violação. Me dou conta, assoberbado, da imensidão do meu autodesconhecimento. Vejo os olhos dela aguados. Como pude? Não passo dum jegue desajeitado. Jesus, será que não fui capaz de aprender uma liçãozinha sequer em toda esta minha existência de ser-no-mundo? Sonhei que precisava, precisava mais que tudo, ser franco. Não suporto mais levar adiante minhas mentiras. Passei a viver num vácuo onde nada, absolutamente nada, é real. Não posso mais fingir. O espelho do banheiro não reflete mais minha imagem. Meus simulacros perderam o sentido. Cada mentira que forjei é uma agulhada canina na ideia que tenho de mim mesmo. Ao longo, desde o começo, permiti que o bicho da falsidade destruísse a dentadas as lembranças boas que já não sou capaz de evocar. Preciso dizer a verdade ─ te amo e não te amo. Ela não parece registrar. Fico esperando a reação que não vem. Não registrou ou, pupila cuidadosa em tirar do tutor todas as lições que puder, mesmo as mais suspeitas, fingiu que não. Sei que despertei e que ainda durmo.
Mais uma véspera do feriadão de 32, agora sei que faz um ano que ela foi embora. Penso como seria se ligasse para ela e desejasse feliz ano novo, que cara ela faria, que estranha sombra de sorriso riscaria o castanho claro dos olhos dela. Há quanto tempo, ela diria. Vivo em estado de cinismo constante, não me permito essas bobagens. Me sinto milhões de milhas (ou seriam apenas centenas como na música do Djavan?) acima de todo mundo, hoje sei quanto isso me pesa. É dureza não se reconhecer humano, eis o resultado do meu genial projeto de ser. Um insight atravessa meu cérebro num relampejo, jogando dentro de mim um clarão hiroshímico que some num décimo de segundo, não me dando tempo de vislumbrar nada. O clarão de Goethe devia durar horas. Minha ironia me deixa exausto. Não tenho mais que pensar ou escrever. Queria dizer aos pequenos candidatos a sabichão, rapaz, olha, nunca se meta a ser irônico. É recurso pífio dum espírito frágil. O mais banal, o menos eficiente. Fatal. Três decepções e você jaz caído de língua de fora. Meu problema específico tem dois lados: passar longe da ironia e não me preocupar com que ela possa pensar de mim agora que estamos separados. Um lado não vive sem o outro, qual uma moeda. Minha desgraça é que não tomo conhecimento dessa realidade: cunho minha moeda ora com um, ora com outro. O que se traduz em impossível falta de verossimilhança. Pronto. Quebrei três das minhas auto-regras todas duma só vez. Falei em eficiente, real e verossímil. Quanto à hipótese de ligar para ela e desejar feliz ano novo, é tão fantástica, que dói e mais nada.
Ano passado ela me ligou e disse feliz ano novo. Soltei uma gargalhada. Uma gargalhada irônica. Irônica, feroz e definitiva. E ribombante qual a voz de deus. Ainda há pouco, não sei precisar quanto tempo, eu achava que deus falava através de mim. Hoje vejo, não deve ser fácil falar com ele. Hoje vejo, não tenho a mais remota ideia do que sinto ou do que penso. Por autocomplacência, escolhi deus. Mas o diabo me cai melhor. Sei disso porque quando penso em deus crio uma imagem demasiadamente abstrata e portanto inútil. Nisso sou igual aos outros bilhões de pessoas que povoam o planeta. Quando penso no diabo, porém, enxergo o disgramado em carne e osso e diviso com terrível clareza a máscara medonha que ele tem por rosto. É meu personagem interno mais familiar. Durmo e acordo com ele. Por ele bebo, com ele como. Através dele amo e odeio.
Além de irônica, minha gargalhada foi seca. Seca qual um latido. Um latido insuportável de tão autoritário. O telefone ficou em silêncio. Longos segundos. Se fosse hoje, me sentiria envergonhado. Naquela época, me achando erroneamente no time divino, fiz que não era comigo. Depois de tudo, pelo pouco que pude descobrir a meu próprio respeito, sei que o único lugar que me resta é do lado de lá, o lado do errado, do desprezo. Até então fui meu próprio heroi.
Depois dos longos segundos, que só agora vejo ter sido longos, ela deu o risinho doce com que costumava acolher meus destemperos quando estávamos juntos e comentou uma banalidade qualquer só para mudar de assunto e nunca mais falamos daquilo e nunca mais nos desejamos feliz ano novo ou bom natal ou bom trabalho ou feliz aniversário e nunca mais a vi. Do pouco que fui capaz de aprender de mim e dos outros ainda hoje não acho que rompemos de vez por causa daquele telefonema. Agora vou tentando dosar essa colossal ironia com que olho tudo e todos, estou ciente de que raras vezes tenho êxito, o diabo é, acima de tudo, um sátiro. O diabo é, acima de tudo, meu herói.
Como é que vai essa vidinha modorrenta de sempre? Nada de novo, não é? Nem no front nem em nenhum outro lugar da tua terra lotada de palmeiras fervilhando de sabiás e morcegos hematófagos, essa tua terra que não foi nem será arrasada e cujos homens ocos não pegam fogo. Olha, vê os horizontes ainda lá longe. Cada um deles. Nada a temer. Terra abençoada povoada de gente cordial. Árvores verdes, céu azul, nuvens desfilando de lá para cá e, claro, vice-versa. O aconchegante útero onde você morava te expulsou exatamente para o paraíso e você o merece. Delícia de previsibilidade. Te acalma o coração. (Não que teu coração pareça particularmente aflito.) Faz opaco o brilho dos teus olhos que querem enxergar no escuro, qual os da coruja, mas que você opta por cegar. Seria de pasmar: há coisas que os olhos não querem ver. É tão cômodo lançar clichês em todas as direções e morrer em paz. Não, não quero te julgar, embora troe imperativo, resmungando judicial. Ou te condenar. Você já nasceu condenada a isso que chamam vida. Eu, a isso que chamam padecimento. Você usa óculos escuros porque a luz te faz mal. Eu, porque a escuridão me faz bem. Veja só como nossas cabeças acalentam infinitas nuances que se desdobram umas atrás da outra. Embora eu atente e registre, você não. Você nasceu para o corpo. Quero teu corpo. Teu corpo e minha cabeça, juntos daríamos um belo espantalho. Onde já se viu uma gostosa babando farinha existencialista? Frankenstein às avessas. Como somos pobres.
Só um momento. Escuta os trovões. (Não, você não vai escutar. Teus ouvidos podem alcançar no máximo o crepitar da chuva. O ribombar dos trovões está condenado aos meus ouvidos hipersensíveis de lobisomem assustadiço.) Mesmo quando não chove. Ou quando não existem trovões a escutar. E aos ventos e às tempestades e a tudo que cause intranquilidade. (Ou desassossego, se eu fosse poeta e me deixasse arrebatar pela preguiça.)
Queria evitar esse tom amargo de quem cobra, esse latido bíblico de quem se acha enganado pela vida. (Não é possível que a vida engane alguém. Mas acho que posso alegar, sem receio de engano, que, sim, fui ludibriado. Você vai dizer que todos somos. (Não, você não diria uma coisa dessas. Você sequer se atreveria a pensar uma coisa dessas. É intenso além do saudável. Beldades inocentes como você não merecem a viagem ao outro lado. Pode não ter volta. Para mim, não teve. Embora eu tenha vindo de lá. Embora tenha nascido lá.) Admito, somos todos. Mas por que só eu dou importância?) Ninguém gosta de cobradores. Sobretudo hoje em dia em que atingimos esse individualismo exacerbado que nos dá carta branca para fazer praticamente qualquer coisa e não permitimos que ninguém tenha nada com isso. O cobrador (incluso o do Fonseca) tem, bem sei, uma pose meio moralista que destoa da pretensa liberdade da rapaziada que não quer outra coisa senão curtir, esse estranho verbo destes estranhos tempos modernos. (Você de certo vai estranhar que eu chame estes tempos de estranhos. Pois te digo que estes tempos ─ e tudo que há dentro deles ─ são horrorosamente estranhos. E intoleráveis. Um dos problemas de viver é que não te dão nenhuma opção individual sobre coisa nenhuma. Você tem de nascer no lugar, na época e no dia escolhido pelo arbítrio de sei-lá-quem. Se isso não é insuportável, então não sei o que é insuportável.) O moralismo do cobrador causa desconforto. Enche o nosso frágil saco que de uns tempos para cá já nasce cheio e desintegra quando submetido a estresse além da conta.
Quem não nos dá nenhuma opção? Não, não faça essa pergunta. Só feche os olhos. Se quiser, murmuro uma cantiga. Se preferir, sorria.
Pois é, sou eu. Eu mesmo. Falando as mesmas bobagens de sempre. Não, nem cheguei a ir. Vou e volto no mesmo movimento. Tenho dimensões instantâneas conflitantes. Sim, queria ter ido. Mesmo sabendo que voltaria. Você sabe que sempre volto. Você me tem cativo. Viro no ato prisioneiro de quem me disponho a amar. Não que me dispor a amar me leve a amar. Sou complicado. Gostaria que você tivesse o dom da palavra e descrevesse em detalhes cada um dos sentimentos que suscito em você. Ia ser um barato. Eu, um malabarista no escuro. Aperta os olhos, tenta enxergar. Quem sabe divise algum dos meus salamaleques. Diga ao menos que te deixo encafifada, assim, no coloquial, sem pretensões literárias. Que não tenho muito a ver com os homens de palha com quem você lida no teu mundo. Ah, esse teu mundo. Quão misterioso é para mim. Não compreendo nada do que nele acontece, nem compreendo os que nele habitam. Te vejo acordando, se embonecando diante do espelho do quarto, se emperiquetando diante do espelho do banheiro, se banhando de sais e perfumes e licores, ao fundo a paisagem tropical de borbulhantes, estrondosas tempestades tropicais. Imagem que não me dá sossego. Bem que sabia que nunca devia ter te espiado. Maldita sanha da contemplação. Podia te amar sem dizer nada. Agora é impossível, sabemos demais um do outro. Eu te amei, apesar de mim. Agora te amo e te odeio. Klein, odeio a dependência de quem amo. Te amo pendularmente. É um pêndulo, por incrível que possa parecer, errático. Mais incrível ainda: imprevisível. Homens que sobrevivem a tempestades tropicais não têm pêndulos imprevisíveis, têm? Sequer pêndulos têm. Que unidimensionais são eles. Tudo que começa acaba. Tudo que nasce morre. Tudo que morre vai pro lixo. Acho que já te falei de pêndulos. Acho que já te falei de tudo que tenho a falar. Não, não te amo porra nenhuma. Uma, que amar é ridículo. Concordo com você. Quão ridículo é. Tão pateticamente ridículo. E, duas, não era amor que você queria de mim. Que é que você queria de mim? você nunca vai dizer. Não sabe o que queria de mim. O que não suporto é que nem se preocupava em saber. Estava tudo tão bem assim, não estava? Um maluco se derretendo dia a dia em declarações viscerais de amor e outros sentimentos rasgados por você e você esquindô esquindô aí rindo, às vezes gargalhando de deboche, franzindo a testa, às vezes batendo palmas na primeira fila. Uau, queria eu ter uma louca se derramando por mim todo santo dia, mesmo que fossem essas asneiras que te digo todo santo dia. Que é que você sente quando te digo minhas asneiras? você não vai dizer que é que sente. Você nunca diz nem o que sente nem nada. A única coisa que sei a teu respeito é que você curte se embonecar diante daquele teu maldito espelho tamanho natural. Porra, pra quem te embonecas tanto? Fiquei com trauma de batons e pós e delineadores e meia-calças. Antes, não ligava. Agora não posso nem pensar. Sabe por quê? Porque você parece só dar importância a você mesma e mais porra nenhuma. Jesus, afasta de mim esse teu espelho tamanho natural. Não quero te ver se apreciando. Depois do teu banho de duas horas. Em água gelada! Claro, é o melhor para a pele e para o sangue e para os calos. Se o chuveiro elétrico é a única tecnologia que presta. Embora eu não use com muita frequência. Por que implicar tanto com minha ojeriza ao banho? Gosto da minha sujeira. Minha sujeira é a marca, uma das, que o mundo deixa em mim. A purificação tem algo de religioso que não me entra na cabeça, a ablação dos primitivos. Escuta, sou capaz de te amar mesmo sendo sujo assim. Meu amor é tão sujo quanto eu. Ensebado de inveja podre, melecado de desejo incontido. Te amo, te odeio, por isso estou aqui vomitando minhas vísceras. Nem cheguei a ir. Você sabe. Apenas fingi que. Gosto de fingir, você sabe. Para mim o mundo sem fingimentos é monótono além do que posso tolerar. Não sei olhar as coisas do jeito que elas são. Tenho mania de mudar os gostos e os cheiros, fugir do presente, me refugiar em qualquer tempo que não seja o presente, fantasiar o futuro, fingir que meu pai não morreu, fingir que estou vivo, fingir que estou ao teu lado, sonhar que desfiguro teu rosto arrancando dele essa beleza de estupor feliz, transplantar teus pensamentos, te fazer minha, absolutamente minha como jamais houve algo meu. É só fantasia, do começo ao fim. Sou um ator e vivo cada segundo neste meu teatro em que represento o personagem e a plateia. Às vezes preciso de aplauso e olho além de mim. Mas em todas essas vezes só escuto o silêncio. Não sei atrair plateias. Veja só, um cara inteligente como eu. Na minha família sempre me olharam como se dissessem “que desperdício”. Quem me conhece logo se decepciona. Resplandeço para definhar pateticamente a seguir, rojão fadado à efemeridade do clímax. Sou, sou um desperdício. Podia ter sido um grande qualquer-coisa. Todo mundo de inteligência mediana e mais ou menos sensato pode fazer carreira em qualquer coisa. Mas desde cedo dei para desprezar o que todo mundo preza. Acho que é excesso de inteligência desvirtuada, hipersensibilidade mórbida e outras porcarias. Não, não estou contando vantagem. Bem que eu queria ser mais burrinho e menos infeliz, não enxergar esses fantasmas que enxergo atrás de cada parede, não estar condenado a atuar no meu grande palco do nada escuro.
Voltei para outras tantas confidências. Minhas confidências exibicionistas. Não, não tenho nada de novo a te contar. Na primeira semana em que nos conhecemos te falei tudo que sou ou acho que sou e tudo que penso ou acho que penso. Nelson Rodrigues reclamava que escrevia e escrevia sem dizer o essencial. Que bobinho era Nelson Rodrigues. Ninguém diz o essencial, seja escritor, padeiro ou economista. Todos os escritores, salvante os mais manjados, só fazem encher linguiça exatamente para fugir do essencial. Porque, uma, são prolixos, todos. Irrespiravelmente redundantes. Muitos torram milhares de páginas vida afora para provar isso. E, duas, o essencial, sendo essencial, é sumário e nem escritores nem padeiros ou economistas estão a fim de ser sumários. Queremos é enrolação. Tagarelar, tagarelar e tagarelar só para não ouvir nossos pensamentos. Como suportaríamos nossas dores sem enrolação? Never de pitibiribes. A natureza nos fez periféricos, satélites de nós mesmos. E o núcleo nos é vedado. E não mudaria coisa alguma se não fosse. Os que buscam o autoconhecimento me enchem o saco. Explicadores me enchem o saco. Intérpretes me enchem o saco. Todo mundo com qualquer pretensão à ascese me enche o saco. E então saímos pelo mundo a repetir as mesmas anodinices minuto após minuto dia após dia. E hoje só me resta me repetir. Finjo este vômito convulsivo só para ver se assim te engano e você pensa que trago novidades. Não sei ficar quieto. Eu entendo astros de rock e poetas que se matam e militares que se matam ao invés de se entregar ao inimigo. Há anos luto comigo mesmo para superar meu exibicionismo e me limitar ao que sinto. Não sou quase nada sincero. O pendor à fantasia não deixa. Não que veja problema em ser assim. Me dou bem comigo mesmo, na medida em que um cara como eu é capaz de se dar bem com ele mesmo. Mas, você tem razão, os que conseguem viver sua carnalidade se dão melhor. Aprendi a me afastar dos meus sentidos. Lição errada, certo. Frequentei a escola do contra. Meus professores são todos discípulos do diabo. Vejo agora, foi um grande erro. É impossível se ausentar dos sentidos. Você vira uma besta abstracionista, sempre “explicando”, nunca gozando. Ai que vontade de gozar um gozo eterno ininterrupto que me permita acabar com a espera do gozo. Tento me sintonizar o tempo todo, mas é difícil, alguma coisa me impede de ser mais sincero do que sou. Ou de não mentir tanto quanto minto. É questão de exercício, acho. Me exercito dia após dia, mas progrido tão pouco. Espero que você não se importe com essa minha necessidade de exposição. Sou cabotino, já disse. Não fique brava se eu disser de novo. Você já notou, repito e repito as mesmas coisas qual um catatônico. Sou excessivo. Transbordo. Transbordo porque, naturalmente, estou cheio. De nada. Cheio dos meus imbecis joguinhos de palavras que não dizem nada nem a mim nem a ninguém e que só me fazem afundar mais e mais neste atoleiro de mentiras em que me enterro ao sufocamento.
Não se preocupe, logo haverei de desligar. Para em seguida ficar esperando que você ligue de novo. Amanhã. Depois de amanhã. Deve ser a minha sina de cabotino compulsivo. O dr. G. diria que tenho TOC. Não gosto de usar essa nomenclatura clínica. Prefiro pensar que são as minhas peculariedades. Não sei se você notou, as tenho aos baldes. Tudo em mim, ou quase tudo, é peculiar. De novo, não estou contando vantagem. Nem tenho especial predileção por ser diferente. Bem, tenho um tiquinho. Na verdade, detesto de me misturar ao rebanho pastando inerme sob a luz tépida e gélida do sol que está morto e ninguém se deu conta. Você já notou, claro, falo muito em rebanho. Demais, até. É que rebanhos, a ideia do rebanho, me dão síncope. Eis outra coisa que não entendo, dentre todas as coisas que não entendo. A vocação ao coletivo, a necessidade a partilhar o comum. Aprendi que a promiscuidade com que todos comunham para celebrar o júbilo de viver não me faz bem. (E aprendi cedo. Aprendemos cedo essas lições básicas. Faz parte.) Primeiro porque não sei comunhar. Segundo, nem imagino o que seja júbilo de viver. O dr. G. sempre diz que quem precisa ser diferente dos outros não passa dum lelé da cuca com necessidade neurótica de amor invejoso. (Sim, nestes termos. O dr. G. é meio antiquado. Pudera, em sua existência dedicada a conhecer a cabeça humana só teve tempo de ler autores técnicos como Lacan e Winnecott; literatura de verdade, necas. O dr. G. manja bastante de Freud, mas desconhece as fontes gregas e shakespeareanas em que Freud se inspirou, o que, cá para nós, é um horror. Tenho um certo nojo de primários. Vivo largando umas referências literárias nas minhas sessões, que na verdade são puros suplícios, e o cara simplesmente passa batido. Aí debocho e ele interpreta. E cobra uma fortuna pra isso. Quac.) Em suma, sou meio maluco. Isso é indisfarçável, não é? Até uns anos atrás eu bem que tentava disfarçar. Só para quebrar a cara. Tudo em mim é excessivo e excessivamente forte, minha loucura mais que todas. Mas é ela, loucura, que logro dissimular com mais êxito. Posso dizer que sim, sou maluco. Quando surto, maluco clínico. Mas no dia a dia prefiro pender para o lado das minhas peculiaridades. As quais não entendo muito bem. Esse é um dos maiores problemas de quem se condena a ser peculiar ─ a autoincompreensão. (Quando me sinto angustiado além do suportável, sou obrigado a recorrer ao dr. G. e suas pílulas de sabedoria aliadas às suas pílulas de bem-estar artificial. Mas ainda não decidi o que me faz sofrer mais ─ minha angústia ou a artificial luz de mercúrio branco-morte que o dr. G. quer fazer jorrar sobre minha angústia. Ele vive insistindo para que eu aceite fazer um tratamento à base de fluoxetina, sertralina, paroxetina e mirtazapina, que, segundo ele mesmo explica e como você provavelmente sabe, são antidepressivos da classe dos inibidores seletivos da recaptação da serotonina. Não sei se gosto de algo destinado a me inibir. Morro de medo de perder minhas idealizações poéticas. E então o dr. G. interpreta. E então morro de mais medo ainda. E por aí vai.)
(E não, não gosto do dr. G. Talvez te explique por que adiante. Talvez não. É duro falar do dr. G. Ele tem me ajudado pacas, mas é um filho da puta como todo psicanalista. Como já disse, é xucro qual um potro deserdado. E caipira ─ nasceu no interior de SP. Não que eu despreze caipiras (bom, desprezo um tico, sejamos um tico sinceros), mas o dr. G. às vezes leva a caipirice à glória. E tem hora que me pega um nervo, do que gosto ou não dependendo do dia, da hora ou de um milhão de outras coisas. E, claro, cobra como se fosse psicanalista de Woody Allen. Ninguém vale tanto assim, nem que seja o responsável pelo pouco de lucidez que me resta.)
Auto-incompreensão, eis um palavrão bonito. Típico das dissertações universitárias. Já te disse que larguei a universidade no meio? Acho que já. É uma das coisas que digo a todo mundo. E nem no meio foi. Foi no começo. Fui no curso uns anos, mas desisti logo no primeiro mês. Passava no Bate-Pinga antes da aula e me instalava no balcão dos fundos até a madrugada, jogando sinuca e pebolim c'uns peões da obra ao lado. Tenho horror a escola, professores, disciplina, crença no conhecimento, respeito pela cultura e tudo que não me faça sentido. Desde sempre. Adulto, tentei mudar, em vão. Não consigo sufocar minhas loucuras, não consigo mudar coisa alguma em mim. Hoje vejo na Globo, na Veja e alhures muitos dos babacas com quem “estudei”. Os reizinhos do “sistema”. Às vezes me arrependo mas em seguida me conformo pensando que teria sido impossível. No início frequentava as aulas bêbado mas em dois dias vi que não teria forças para levar a barra à base das 51 com limão que engolia no Bate-Pinga. Frequentar uma instituição de ensino implica uma esperança em mim e na humanidade que simplesmente não tenho nem tenho como fazer nascer em mim, period comma paragraph. E que é que vou falar senão de mim mesmo? Não sei falar dos outros. Bem, na verdade sei. E bem. Dependendo do caso, mal. Mas em geral os outros não me interessam. Ou só me interessam na medida que causam em mim um sentimento profundo, inequívoco, identificável de uísque puro, com fragrância e tudo mais. Você poderia ter sido minha cachaça. Tentei me inebriar de você, você não deixou. (Ai que raiva tenho de você.) Me diga, você ficou assustada comigo? Acho que já posso te fazer esse tipo de pergunta a esta altura dos acontecimentos. Se é que algo realmente aconteceu. Aconteceu? Me diga. Não, você não vai dizer. Só fica aí rindo. Sei que sou um palhaço. Sempre fui. Sabe qual é a alma do palhaço? A alma do palhaço é não ver sentido em nada. O palhaço é o mais existencialista dos iconoclastas anarquistas. O palhaço nutre pelo mundo um sentimento de niilismo superior que torna o mundo inaceitável para o palhaço. O palhaço é o ator do absurdo. O único ator viável. O único ator possível. Só nos resta rir. Vejo que você só bebe ao ponto de ficar zonza. Eu bebo até cair. Se bem que nos últimos tempos meu fígado não me tem permitido mais. Mas todas as vezes que bebi foi buscando meu porre definitivo. Só estou vivo ainda porque sou covarde, ao contrário dos muitos kamikazes que vi tombar ao longo do caminho. Covarde e sibarita. Ou melhor, tento ser. Não se é sibarita só pela vontade. O que eu queria ser no duro é bon vivant, assim em francês, ridículo e tudo. Você ia rir de mim, claro. Você adora rir dos outros. É a tua defesa. É o pior dos risos ─ o riso ingênuo, o riso de quem sabe seu lugar. O riso de alegria, quase felicidade. O riso de quem sabe que não nos resta consolo senão rir. O mais odioso dos risos. O riso dos satisfeitos, o riso firme e aberto dos justos. Você ri de quem não entende. De mim, por exemplo, não entende lhufas. Parece só entender esses primários que falam em signos e passam as férias de verão na praia, no rio, na puta que pariu. Sim, quero te esculachar, quem sabe assim amaino o fogo que me incinera por você. Mas vou deixar para mais adiante. Agora quero continuar falando que queria ser bon vivant. Apto ao prazer dos sentidos. Mas não sei. Tenho essa imensa dificuldade de sentir prazer. Me boicoto. É meio mórbido, claro. Ou não, sei lá. É duro me admitir mórbido. Mas acho que jamais daria para marajá com quinze odaliscas prontas a satisfazer cada um dos meus caprichos. Nem sei ter caprichos. Não tenho nenhum. Só manias. Sendo que a maior delas é que sou o único capaz de satisfazer minhas próprias manias. E tenho nojo de quem “cultiva” caprichos qual um diletante vagabundo nascido para extrair prazer deste nosso mundo forrado de dores disfarçadas sob anúncios publicitários de deus. Conheço alguns caprichosos. Inclusive na família. Eca. Nojo desde a infância. Não vejo a hora de dar no pé. Enquanto não dou, vou me encharcando de álcool e torpor e autocomplacência.
Costumo engolir um uísque logo cedo. Num segundo, o álcool espanta para longe tudo que tenho de mediano, medíocre e ambíguo. Não gosto de meio-tons. O bege quero recobrir de marrom-diarreia, o azul pálido, de roxo cafona, a escala cinza, de negro. E quando recubro os tons pastéis do meu mundinho besta, uso não um sopro cálido, mas uma ventania furiosa.
Isso de buscar sentimentos fortes pode ser um problema às vezes. Não fui feito para uma existência letárgica sob sussurros e chiados, sem cargas maciças de hormônios e livres de pesadelos. Sou avesso a pastar sonolento na pradaria verdejante, cercado de bucólicas colinas por todos os lados, orgulhoso e soberbo em minha inconsciência, me empanturrando de nada até que a morte venha dar cabo da pasmaceira, ocasionalmente me perguntando, lá no fundo, quase na bruma da inconsciência, se um lobo faminto tem me espreitado em minha singela faina de engorda.
Já te disse que sou cabotino e tantas outras coisas e tantas outras coisas deixei de te dizer. (Desculpe a poesia, às vezes escapa sem querer, não, não estou fazendo gracinha, estou tentando me livrar das gracinhas, gracinha não é legal, gets in the way.) Choramingar é exercício, choramingar para você é mais ainda. Primeiro, porque você é assim tão diferente de mim. Não conheço quase nada de você, claro, mas dá para ver que temos um mundo de distância entre nós. Não vou mencionar as evidentes como background, sociais, cultura, essas diferenças não me interessam. (Até aqui parece que para você também não, deo gratia. Embora eu sinta um terrível preconceito contra quem não tem preconceitos. Anjos me dão bode.)
Não tenho outro assunto senão eu mesmo. Não sei falar de outra coisa, por mais que queira me enganar e enganar aos outros. Vivo numa operação de faxina sem fim, não faço outra coisa na vida, de manhã à noite, muitas vezes sem ao menos dormir, sempre me varrendo, me lavando, me arrumando, me ensaboando, me esfregando. Brrrrru, como cansa. Tá me matando. Nasci meio desenergizado. Me fascinam escritores que obram centenas de livros ao longo da vida. Você já ouviu falar num cara chamado Ryoki Inoue? Ele tem um site na web, onde diz que escreveu mais de mil livros e se intitula “o escritor mais prolífico do mundo” e que está no Guiness como o maior escritor em todo o planeta. Não é de gente como esse Inoue que estou falando, claro. Esse aí se suja mais do que se limpa. Me refiro a quem precisa escrever como ato, entre outros, de assepsia. Escrever é esfregar uma sujeira que nunca vai embora. Sabe aqueles neuróticos obsessivos que se sentem obrigados a lavar as mãos a cada cinco minutos? Se ficasse limpo, acabaria a graça. É, tem algo a ver com lavar roupa suja. Você lava, mas são as suas mesmas, e você lava e estende para quarar sob o sol. O problema é que você quer que os outros espiem a tua roupa no varal. Os professores de literatura, claro, abominam quando alguém reduz a literatura a mera condição de doença infecciosa. Eu ainda não firmei jurisprudência a respeito. Tem horas que também acho, outras, não. Falei em necessidade de exposição. Outros preferem “de expressão”. Acho fofo quando vejo um artista confidenciando que o que ele quer é se expressar. Levar um muquete no meio da orelha também faz parte. O jovem poeta Kappus vivia enchendo o saco de Rilke sobre o que é escrever, até que Rilke, cujo saco aparentemente jamais se enchia, respondeu: se pergunte se precisa escrever. Muita gente metida a escritor por aí diz que escrever é tão essencial quanto respirar. Phooee! (Não, ainda não fui.) Se eu ganhasse sozinho na loteria nunca mais escreveria uma linha que fosse. Nem leria porra nenhuma. Só ia querer uma dúzia de mulheres como você constantemente aos meus pés.
Querida parede, veja só a sinuca onde fui me meter. Eis-me aqui neste beco sem saída, encalacrado, te olhando bem nos olhos. Você não tem olhos, eu sei, afinal é só uma parede. Mas para mim isso não é problema. U know, sou um cara inventivo. Não tem? Invento. Pronto. Estou te olhando bem nos olhos que inventei. Ai que arrepio. (Que frios estes olhos que inventei.)
Querida parede, peguei. Tá no papo. Veja só onde a falta de sinceridade pode nos levar numa manhã de domingo. Ah, esqueci de dizer, é manhã de domingo, 20 de maio, 7:25, momento único na minha vida, como gostam de dizer os protagonistas daqueles seriados americanos. Falando nisso, de qual você gosta? Veja, depois de tudo que tentei, só me resta falar de tevê. Hoje, não sei por que, acordei meio tarde. Em geral pulo da cama às 5 da matina. Escuta, sempre acordei cedo. Aprendi por querer fugir da cama logo e escapar da minha mãe. Queria que você conhecesse minha mãe. Tenho essa mania de querer apresentar minha mãe a todo mundo. Meu, que ser. Se fosse outro e me contassem, eu não acreditaria, é imaginação. Na maior parte do tempo, tenho ela ao meu lado. Você já deve ter percebido, se prestou atenção. Sei que não dá para prestar atenção nessa meleca retorcida de desvarios que excreto feito pus. E sei que sou pretensioso, quase insolente, por reivindicar tua atenção.
Não sei se você sabe, mas só a expressividade não significa muito. Aquela cantora Bjork, por exemplo, não lembro se islandesa, deve ser por aí, uau, aquela é expressiva. E tem também aquele artista plástico Krajcberg, refugiado polonês que veio morar no sertão da Bahia (mein gott, esse polonês deve ser mais louco do que eu pra acabar a vida no sertão da Bahia) que trabalha com restos de troncos queimados. Também expressivo. (Tudo que queimou é expressivo.) Tem essa coisa de saltar aos olhos. Mas nossos olhos não são tão vazios assim, que precisem ser enchidos o tempo todo. Olhar vazio, só o teu. Porque és uma parede. A morte virá e terá teus olhos. Os olhos que inventei. (Pavese não vai se importar de eu misturar os versinhos dele com os meus.)
Quando o telefone tocou, saltei da cama, me vesti rapidinho como sempre faço, quem será tão cedo assim, ninguém nunca me liga a essa hora nem em qualquer outra, não vou mais pagar a conta, não preciso mais de telefone, não preciso mais de nada, vou parar de comer e ficar deitado na cama até desmaiar e ir pro saco, o telefone insistia, então, não sei por que, me deu o estalo, só pode ser ela para insistir assim, ninguém jamais insistiria comigo, todos desistiram à primeira tentativa, saí correndo sôfrego por escutar tua voz, vim descendo matutando, como sempre faço, que é que vou dizer a ela hoje? É tããããão complicado. De repente minha cabeça fica cheia como se fosse estádio em final da copa do mundo.(OK). Next second, puf! Vazia feito um coco verde jogado na beira da estrada. (você gosta de água de coco? Eu gosto, mas o dr. H. me proibiu, faz mal pros rins.) Aí peguei e vim descendo, estádio cheio, coco vazio, estádio cheio, coco vazio, estádio vazio, coco cheio, eu só rezando para ter algo a te dizer quando finalmente te ligasse. Tem dia some tudo. O vozerio no estádio vai atenuando, um e outro grito espalhado, quando chego perdi o tesão.
Te amar tem a ver com tesão. Me dá licença prum momento solene: te amar pressupõe esperança.
7:30. Cinismo é chato porque deixa uma camada de borracha que gruda entre os nossos sentimentos, e você fica trancado num quarto forrado se jogando contra as paredes mas as paredes estão forradas e você nunca se machuca, só que você não saca que você está trancafiado e portanto nada mais pode ter importância, só que você não saca, não saca. Não que precise haver dor. (Se bem que eu particularmente não me conceba em qualquer situação sem dor. Já te disse que gosto de cultivar meu sentido trágico da vida. E não gosto de quem não gosta de cultivar seu sentido trágico da vida. Então não gosto de ninguém. Quem gosta de cultivar seu sentido trágico é refratário aos outros tal como eu sou e o resultado é que nos antagonizamos. As pessoas que me aturam no dia a dia merecem um oscar, sem bem que o último cristão que me aturava no dia a dia deu no pé faz anos e já não me lembro do que é ter alguém para interagir. (Essa conversa fiada de interação, a dar c'o pau nos seriados americanos que de cabo a rabo passam anos-luz longe de qualquer sentimento humano quanto mais falam deles/neles.) O pessoal mais velho da família que vejo ir morrendo vai morrendo numa solidão incalculavelmente triste. Todos ou quase berram pacas antes de chegar a hora, você assistiu gritos e sussurros do Bergman? MacBeth?) E, você vai perguntar, para que diabos alguém vai querer gostar de cultivar o sentido trágico da vida? Não precisamos ser trágicos, precisamos? Certo, Auschwitz foi trágico, mas nós não estávamos lá, estávamos? Outros estiveram, tudo bem, mas não estiveram em nosso lugar, pois ninguém disse que devíamos ter estado lá em primeiro lugar. Adoro me enfiar na cama e ler a descrição em que Primo Levi sob 10 graus abaixo de zero carrega no ombro aquela barra de ferro de 80 kg, arriscado a ser abatido pela guarda se deixar a carga cair na neve, se achando afortunado que o judeu na outra ponta da barra seja um jumento de forte e, para sua sorte, arque com a maior parte do peso enquanto me empaturro com esses ovinhos de chocolate recheados de licor que minha mãe me traz toda semana da Pan aqui no bairro Santa Paula. Veja, se você pensar bem, tudo pode ser cristalinamente simples.
Mas estou ciente disso. Você, por exemplo, me atura porque agora somos dois estranhos e você virou uma doença de que tento me livrar e não consigo e estamos suficientemente distantes para que eu continue a te incomodar com a minha, como é que você disse um dia? inadequação. Ao longo do nosso relacionamento (todo dia juro a mim mesmo que nunca mais vou usar “relacionamento”), nunca entendi que nem todos os homens ao teu redor te amassem. Pelo menos as far as I knew. Me achava um cara razoavelmente na minha, desinteressado da vida alheia, até me descobrir um doente por você. Ai, como sou desprezível. O problema é essa minha fobia de relacionamentos reais. Para doidos do meu naipe, o amor pode ser um perigo. Fantasiar literariamente é uma coisa, outra bem diferente é brincar de amar gente de verdade. De um lado é legal porque você acaba por conhecer certas faces de você mesmo que não conheceria sozinho. De outro, essas faces que de outro modo permaneceriam desconhecidas podem ser as suas. No começo você estava totalmente desconfiada, tentando descobrir se eu não buscava senão um bom rabo para comer. (Jesus, que é que vou fazer agora sem esse teu rabo?) Ou se eu estava atrás de algum tipo de mesada. Tudo bem, sou o rei dos mal-entendidos. Tudo bem, príncipe, vá lá. Mas se tudo que procuro é uma boa desculpa para te amar. Tentei provar isso às mulheres que amei antes de você e com quem, naturalmente, quebrei a cara e quando vi era tarde demais, tínhamos nos ferido além da nossa capacidade de reabilitação. E, como também já te contei à exaustão, só dei azar, todas as donas que conheci estavam vindo de rompimentos traumáticos, uma tinha levado um pé do marido, outra acabara de receber um chute do namorado, sempre mal-amadas ao quadrado com o dom diabólico de me conhecer logo após suas respectivas paradas e já chegam me dando tudo que é bordoada sem eu nem imaginar por que, só para descobrir, alguns dias depois, que tudo que elas querem é juntar os trapos. Para o bem delas, caio fora, naturalmente. (Até já te escuto dizendo que parece novela da Globo.) E, pior, são todas quarentonas. Tudo bem, posso estar soando cafajeste, talvez mais que apenas soando, mas certas mulheres têm esse mau-gosto de virar bruxas quando deixam a juventude, em geral, não sei se por coincidência, ao redor da pré-menopausa. E, como se ainda pudesse piorar, uma das dríades aposentadas disse que não era ciumenta, aquela piadinha infeliz, e então começamos a brincar de gato e rato, ela me ligando dia e noite e eu não atendia (nunca atendo o telefone, tenho horror a telefone, todos me conhecem desde a adolescência como aquele-que-tem-horror-a-telefone, nem saio de casa, o dr. G. diz que é distimia, pois é, dr. G., esses shrinks são uns crânios), eu queria socar a cabeça na cômoda, e ela ameaçava me caçar em casa se eu não atendesse, quando então, e foi aí que descobri que deus existe, que é que acontece? Acontece que a dona é atropelada, sim, exatamente a caminho aqui de casa, foi deus quem operou a graça botando uma camionete Kombi 76 desembestada pela avenida bem na hora em que a dona atravessava, assisti a reportagem à noite no jornacional, a repórter carregando no sotaque nordestino, a dona-de-casa BN foi atingida hoje cedo por uma ambulância, tudo bem, o jornacional não é lá muito preciso, aí vejo a fachada da minha casa na tevê, meio mundo pescoçando, gente doida por sangue, o corpo estendido no chão, vocifero uma carreira de palavrões como que recusando um novo canal da tevê a cabo à mocinha do telemarketing, desligo tentando imaginar que raio de expressão ficou pregada na minha cara, não nasci para mascarar meus sentimentos, sou sincero quando digo que não sinto o mesmo por você, só pensava que seria capaz de te esquecer.
Num dos meus arranca-rabos com a retardatária a retardatária me acusou de imaturidade, demência, má-fé e todos aqueles defeitos que desde criança sei que tenho e me mandou procurar um psiquiatra, ao que eu disse que já fazia tratamento com o dr. G., embora eu tenha dispensado o dr. G. há anos, pois, como já disse, odeio o dr. G. Como você já deve saber a esta altura, é nessas horas que dou o melhor de mim. Destrambelhei a retardatária cum dos meus uppers espirituosos irrespondíveis. (Que, creia-me, não cheguei a usar em você, ainda mais porque você nunca me deu razão para, embora tenha chegado perigosamente perto.) Adoro quando os outros me mandam ser o que eles esperam que eu seja. Quando me pedem para fazer o que esperam que eu faça. Como quando você me disse para desbaratinar, entre outros. Você já percebeu, claro, que tocou um nervo. É o tipo de coisa que me deixa meio facínora. Podia matar por muito menos. Podia matar por qualquer coisa. Todo dia lamento ter esta alma de assassino mas ser desprovido da devida macheza. Você não imagina quanto te xinguei por aquele desbaratina, cara. A sem-cerimônia rastaquera. Esse “cara” denotando uma intimidade que não concedi. Meu, ninguém me chama de cara. Ou xará, capitão, general, professor, tigrão (ai que esse dói), esses apodos malandros com que brasileiros malandros se chamam uns aos outros. Não sou o brasileiro cordial do Buarque. Major, tu não tá falando c'um mané do mato ou um vira-lata que aguarda teus comandos abanando o rabo. Então fiquei perplexo. E quando digo perplexo, é sim. Perguntei para mim mesmo, perguntei pros meus fantasmas, meu, depois de tudo que confessei, você ainda tem o topete?
O que não posso suportar num desbaratina-cara é a cacetada de suposições que encerra. A suposição de que estou tenso. A de que, se estou, não devia estar. A de que é tão simples desbaratinar quando se quer, quando se tem boa vontade, quando se é capaz. A suposição de que o mundo é um paraíso, éden na terra recheado de cachoeiras das águas mais coloridas que há, onde mergulham gaias ninfas e másculos apolos onde não existem cancerosos ou aidéticos ou mancos e só nos cabe fruir do paraíso filhodaputa e quem não frui é um maldito infeliz merecedor de ferro ad eternum. A suposição de que tenho algo de muito errado em mim, de que sou defeituoso, uma excrescência sem direito às coisinhas simples que fazem da vida essa delícia desfrutada por todo mundo e seu tio. E milhões, bilhões de outras suposições que, suposições, intoleráveis, pois não sei me orientar por suposições, não quero me guiar por suposições, tenho raiva de quem se baseia em suposições, não acredito em deus, em crenças, em numerologia, em fanáticos, em espíritos, em tupã ou suposições, não acredito em quem acredita em suposições, sou escravo das minhas sensações e dos meus sentimentos, vivo apontado para dentro, o que me é externo não me interessa, o que prezo no céu azul é o que o céu azul provoca dentro de mim, não que o céu azul pode ser bonito, feio, dádiva dos deuses ou o caráleo a quatro.
É claro que para você tô fazendo uma puta tempestade em copo d'água. Provavelmente TUDO que te disse até hoje não passou duma puta tempestade em copo d'água. Você deve ficar aí do outro lado rindo com as minhas palhaçadas de macaco de circo, meus dramalhões artificiais ridículos que não mexem um cisco nesse teu mundão concreto erigido na plenitude do trabalho real, dos amores reais e das amizades reais. Você obviamente comunga do refrão dos outros bilhões de comungadores do de-bem-com-a-vida. Só um louco feito eu para optar pelo de mal com a vida, não é mesmo? Tudo seria tão mais fácil sem esses maníacos que adoram botar chifre você sabe onde. É por isso que ficava encafifado quando você desandava a recitar Rilke e outros dos meus poetas. Olha aqui, poetas não existem só para ser recitados. Poetas se matam por enxergar na cabeça do cavalo mais chifres do podem suportar. Ou será que depois de ler um poema dum suicida você diz, pô cara, desbaratina, vê se enxerga o lado bom das coisas.
A “tempestade” caiu porque saquei a indiferença com que você contempla o que sou. Sim, contempla. Do alto dum belvedere, um olhar turístico. Sou e sempre serei tua paisagem. A que você se dá o trabalho de lançar um olhar de lado quando não tem coisas mais importantes para fazer.
Vejo que você ainda está aí nessa foto olhando esse seu olharzinho vazio, não me enxergando, não enxergando nada, rosto impassível, tão mimoso e morto, morto como só rostos em fotos podem ser. É tão tarde, querida. Ainda? símbolo em busca do que representar, embaralhada entre estas milhares de fotos deste álbum infinito, esperando que eu te decifre agora que perdemos nosso código secreto e te espere em minha espera insensata só para você nunca chegar? Quem sabe de hoje em diante adiciono mais um ritual ao meu álbum de rituais maníacos e toda noite repita este efêmero, embaraçoso reencontro de dois velhos conhecidos que não tiveram força de se unir? Quem sabe te visite mais uma vez para imaginar a caleidoscópica cintilação do teu olhar na clarividência do dia, enfiando meu nariz nas madeixas sem fundo do teu cabelo?
Então está combinado. Amanhã, se eu não tiver enlouquecido, se tiver enlouquecido, se minha febre não ultrapassar os 50 graus em que me acostumei a olhar para a porta, se um vizinho não chamar a polícia, se alguém não chamar a ambulância, selemos este pacto de vida, amanhã te olho novamente, te cheiro, acumulando no frasco vazio do teu perfume que nunca senti umas gotinhas de volúpia desumana que requentarei no banho-maria do meu tédio, comprometendo-me desde já a manter longe os entes que diuturnamente me acompanham, jurando de pés juntos que não pretenderei ser mais uma vez teu príncipe onírico nem representarei o que de fato sou.
A, impossível foto, ícone de ninguém, por que fui te reencontrar? Contava já com a dádiva de meia hora de sono sem pesadelos nem ventanias que me afastassem deste meu cais ilusório em que planto os pés para não despencar entre os doces vagalhões que nunca arrebentam, diga, retrato fúnebre que decora minhas nuvens notívagas, por que me obriga a velejar nesta noite fria enquanto perscruto sem trégua os olhos mortos buscando um brilho de vida?
Então estamos combinados. Amanhã vou passar, vou passar sem dizer nada, vou passar de olhos fechados, imaginando que você me respondeu, assim sem mais nem menos, e marcamos um encontro no começo da noite na praça da matriz de Sanca, que roupa você vai usar? aquela blusinha vermelha de cotelê, responderá, e nessa noite de outono estarei sentado num daqueles bancos como estou e sempre estive.
Vou deixar pistas. Você, com esse seu imenso olhar de sonhos mortos, não vai perceber. Mas deixarei. Sempre deixo. Mesmo que sejam apenas rastos marcados na friagem da madrugada, sombras estampadas contra o halo das luzes de mercúrio, apagáveis sob a primeira brisa da manhã.
Agora vou espremer as pálpebras com toda força e sonâmbulo e pétreo aguardar que sua mão imaginária me conduza por esses caminhos que só você conhece e sua vozinha sussurre a nossa canção...

Eu vim duma
Ronda nas praças
E bradei pelas ruas
Que ainda era tua
Para tomar teu far
to
eja
cu
lar
Soprem
Mudos lábios do tempo
Quando ainda era o dia
Que você me queria
Só pra brincar
Deixa-me
Entrar
E boiar
À deriva na noite
Muito abaixo da tona
Onde a dor me abandona
A me esvaziar
Em teu
Gozar go
zar go
zar
E cantar
No escuro da noite
Arrancando a mordaça
Quando a dor me trespassa
A me saciar
Em meu
Gozar go
zar até
ex
pu
lo
dir

À noite, deitado, perscrutando o escuro cheio de nada do meu quarto, de repente aquele desespero ante a possibilidade de repentinamente descobrir que tenho câncer no estômago. No DEFE (Depois que Ela Foi Embora), virou recorrente. Fugaz e aterrador, acompanhado duma angústia e uma imagem tétrica do corpo decapitado de alguém que amo.
Ao acordar, noto mais uma vez que o catastrófico potencial de todas as coisas me foi deletado da mente. Afinal tenho um plano prioritário. Meu desígnio rebrota automaticamente a cada manhã, e a ele, plano-desígnio, dedico todos meus esforços conscientes. Quando acordo, vejo, sempre surpreso, que meu plano prioritário se constitui na minha única razão de viver. E nele não cabem meus próprios despropósitos. Sou um pária de mim mesmo.
Tenho a ligeira noção de que carrego uma baita porcariada dentro da cabeça. Para que serve? Gott, cadê a descarga metafísica? Como descartar esse amontoado de pensamentos, crenças, princípios e visões, bolo informe de que nunca como senão algumas migalhas e ainda assim me deixa enfastiado?
Ocasionalmente ─ tão ocasionalmente que sequer me dou o trabalho de prestar atenção ─, brinco com a ideia de tomar uma caixa de antidepressivos com uísque. Não tenho, nunca tive em décadas, coragem de parar e definir exatamente qual antidepressivo, quantas doses de uísque. Não perderia mais de dois minutos do meu tempo. E perder tempo é que sei fazer melhor. Acaba de me ocorrer que tudo que faço é para perder meu tempo. Mesmo assim, não paro. Não paro para definir nem isso nem qualquer outra coisa.
Me matar para quê? pergunto de novo, desdenhando minha própria frivolidade em relação à morte.
Você sabe qual é a duração dum voo entre Moscou e Washington? Pois é. Tenho tempo, tenho tudo a perder! Afinal meu plano está estabelecido. Cá entre nós, a vida é breve, nossas possibilidades, parcas, nosso alcance, curto (muito mais que o dum Boeing 707 de brinquedo). E que haverá de interessante em Moscou e Washington? A maioria de nós não tem nada a fazer nesses lugares, assim como não há razão para fazermos um monte de outras coisas em diversos outros lugares em que queremos estar, a que sonhamos ir, de que almejamos partir.
O que importa ─ o que está entre os primeiros itens do meu plano ─ é nunca ter de pedir. Eis uma possibilidade que me apavora. Fujo dela qual rato que se enfia assustado no buraco no chão que leva ao esgoto. Não quero pedir nada. Não sei pedir nada. Me torturo tentando me obrigar à capitulação. Tem noite, delirando, ordeno a mim mesmo: peça! Não! me recuso. A humilhação seria insuportável. E meu plano não prevê humildade, submissão, prostração, dependência. (Mas prevê minha rebelião. A ideia de nunca poder me rebelar seria o fim. É por isso que ratos são rebeldes e escravos da própria repugnância.)
Eis onde gasto grande parte das minhas forças. (Por falar em ratos, às vezes me contento em criar um gatinho ou um vira-lata, inofensivo, abjetamente indefeso contra minhas mudanças de humor, marionete dos meus caprichos, no qual só presto atenção quando preciso descarregar minha raiva de viver. Não é disso que se trata? Da minha raiva de viver?)
É, fiz esse plano, esse plano prioritário. Tenho horror à disciplina, nunca soube planejar um minuto sequer. Mas hoje, insisto, fiz esse plano e é prioritário. Como seria de esperar, contém uma lista. Tenho horror a listas. Listas pressupõem hierarquia, organização, planejamento. No topo da lista, vejo, está o meu amor perdido.
O meu amor perdido é aquilo de que é feito meu dia ─ nele perco meus pensamentos vagos, a ele devoto pitadas de segundos e vazios de minutos que formam horas insípidas. É um amor a que nunca me ocorre ir buscar, que não encontrarei em praias ou em bosques ou no Corcovado ou na velha estação de trem na minha Sanca que afundou no meu abismo. O meu amor perdido é meu caminho, minha passagem, têm para mim a única serventia de esquecê-lo, tal como também ocorre com as pessoas que casualmente conheço por injunções secundárias. As pessoas, mesmo as conhecidas casualmente, entram para a galeria das minhas pessoas perdidas.
O meu amor perdido e as minhas pessoas perdidas estão na base das ideias que me passam pela cabeça sem qualquer razão aparente e que não me dizem nada e, por isso mesmo, nunca me pergunto que devo fazer com o meu amor perdido ou que devo pensar das minhas pessoas perdidas.
Resquícios de algo, ou talvez não (nem resquícios nem resquícios de algo), seu único sentido é que eu nunca os encontre. Só dou importância a três grandes eventos que, julgo, aconteceram comigo ─ meu nascimento, minha vida e minha morte.
A vida está exatamente entre os dois outros ─ interminável sanduíche rançoso, de eterno sabor requentado, que vou ciscando às mordidelas e cuspes, enojado com o gosto amargo da banha acumulada das derrotas, do conservante deste nauseabundo instinto de sobrevivência que impede que me liberte, e de outras coisinhas inefáveis que não consigo identificar entre a fatia amanhecida do nascimento e a fatia jamais preparada nem amanhecida da morte.
Por isso ─ acho que por isso ─ quando acordo não pulo da cama, qual as outras pessoas, sejam as minhas perdidas ou não.
De todos os instantes de que é feito o dia, de todos os instantes de que é feita a noite, esteja eu acordado, esteja eu fingindo que durmo, esteja eu sonhando que sonho, o despertar é o único em que tenho alguma certeza. Mais que tudo, nessa hora estou certo de que não há nada que eu precise saber. Nem agora nem nunca.
Bom dia, muito bom dia, me congratulo mentalmente.
Bom dia, animado respondo.
Mais batalhas, mais migalhas derrotadas logo cedo, desapontamentos vitoriosos demasiado tarde enquanto me enfastio do meu banquete solitário. Por que não tive a benção duma epifania ao fundo pelo menos à medida que tão heroicamente vou sendo amansado por meu domador invisível?
Em trânsito para o meu destino, com meu único plano de ir a esmo.
Hoje vou colecionar mais um dia na minha máquina de escrever, ciscando enfadado, conferindo algumas bobagens escritas ontem e antes de ontem, anotando uma ou duas dessas frasezinhas imbecis que, não sei por que, acho que significam algo e que um dia poderão mudar minha vida, zanzando fascinado pelos meus escritos. No fim da tarde, exausto de não fazer nada de útil, deprimido por não ter conseguido avançar um milímetro sequer rumo aos meus objetivos que não sei direito quais sejam, vou desligar a máquina e então sairei do escritório, fecharei a porta, introduzirei a chave na fechadura, darei uma volta (nunca mais que uma) e, alquebrado qual um personagem de Balzac, subirei rumo à casa para mais uma noite de sono torturado interrompido de hora em hora por sobressaltos detonados por pesadelos primevos.
Meu chapa Marco Davi estará à minha espera na penumbra do alpendre. Em geral, costumo acender uma ou outra luz à medida que subo o longo e, sob o lusco-fusco deste ocaso particularmente dramático, sinistro corredor. Nesta ocasião, porém, nesta decisiva ocasião preferirei seguir no escuro, pois os segredos do meu caminho sei, ó pai, de cor.
Não, não a levarei comigo. Sou um sujeito prudente, não correrei riscos desnecessários. Ou necessários. Meu chapa Marco Davi é imprevisível. Todos os assassinos (o) são.
Assim que começar a galgar os degraus que levam à porta da cozinha, verei alguém parado nas sombras indevassáveis do alpendre. Alarmado, apertarei os passos.
Senhor! ─ meu chapa Marco Davi chamará. Embora atordoado com a iminência do fim e ao mesmo tempo profundamente enlevado pelos misteriosos encantos da noite encharcada de querosene e cheiro do sebo proveniente dos mil churrasquinhos preparados pela vizinhança, noite suja e enluarada que vai cobrindo meu mundo aos poucos, não deixarei de perceber que a voz dele não trai sotaque algum. Ele terá a raríssima capacidade de contrabalançar os sutis tons de francês e castelhano que guardam meu celestial (celestial para mim, pelo menos) nome. Deo gratia, meu chapa Marco Davi será um paulista. É o que me basta.
Mesmo sabedor do que se trata, estacarei no meio da escada e darei meia-volta. Meu chapa Marco Davi pulará no chão em “posição de combate” e deflagará seis petardos contra a minha figura. Serão projéteis de ponta oca, disparados c'um revólver Charter Arms calibre 38. Um dos tiros errará o alvo, passando por sobre minha cabeça e atingindo a janela do banheiro. Dois dos disparos me acertarão do lado esquerdo das costas e outros dois, no ombro esquerdo. As quatro balas causarão graves danos internos. Uma delas romperá letalmente minha aorta. A outra, aquela que falta para fechar a conta, não saberei que fim terá levado.
Darei quatro passos cambaleantes de volta até o alpendre, me apoiando precariamente na mureta que ladeia a escada, gemerei num fiozinho de voz entrecortada, quase rouca, “fui atingido! fui atingido!”, e então desabarei na ampla área livre delimitada, por um lado, pelo banco de encosto que compramos em Cotia numa infeliz viagem em que nos desentendemos por uns assuntos que não tenho forças para relembrar e que, o banco, está praticamente reduzido a escombros por insaciáveis cupins determinados a cumprir sua missão de destruidores da mobília que sobrou à classe média, por outro, pelo forno de tijolos a vista que há anos não usamos por falta de toras apropriadas para pizzas e, por outro ainda, pela cadeira de pernas excessivamente abertas em que vivemos tropeçando e cujo assento ainda está recoberto pelo forro protetor plástico que nunca nos atrevemos a tirar, ou seja, desabarei exatamente no meio do alpendre. A Marl, nossa fiel empregada há décadas, virá afobada da pia, onde estará preparando uns filés de peito de frango para o almoço do dia seguinte (pobre Marl, sempre confiante que o futuro é favas contadas), e, ao me ver estendido no meio do alpendre, a princípio pensará tratar-se de mais uma das piadinhas que costumo fazer com tudo e com todos, nesta minha neurótica compulsão por disfaçar este meu indisfarçável mal-estar com que me arrasto da noite à manhã pela vida. Mas, passados alguns segundos, ela enfim descerá a escada e acenderá as luzes, dando-se conta de que estou defacto agonizante ─ agonizante bem diante dos seus olhos. Desnorteada, Marl subirá correndo a escada, apanhará sofregamente o celular e, depois de chamar a polícia, retornará prontamente ao corpo moribundo que jaz no chão e de sob o qual vertem filetes de sangue que engrossam de segundo em segundo neste nem frio nem quente ocaso primaveril.
Senhor! Senhor! ─ Marl cochichará, aterrorizada e plenamente ciente de estar testemunhando meus instantes finais e ao mesmo tempo incrédula.
Enquanto isso, meu chapa Marco Davi se instalará calmamente num dos bancos com assento de embuia que mandei fazer para os nossos almoços dominicais, e que nos últimos tempos passaram a ser minha única razão de viver, e aguardará a chegada da polícia. Marl olhará desolada para o homem e gritará com todas suas forças:
Sabe o que você fez? Sabe o que você fez? ─ e então dará um chute no 38 com sua bota de sola extra larga, jogando a arma para baixo da grande mesa de tampo inteiriço que compramos em Embu-das-Artes e que há anos também vem sendo vorazmente atacada pelos nossos frenéticos cupins.
Ante à angustiada pergunta, meu chapa Marco Davi simplesmente responderá:
Sim, sei o que fiz. Acabei de matar este senhor.
Os primeiros peêmes a chegar serão o soldado Esteves Dias e o cabo Pedro Cunha, que faziam patrulha na esquina da São Paulo com a Rio Grande do Sul quando foram notificados da ocorrência por rádio. Os policiais encontrarão meu chapa Marco Davi “calmamente” sentado no banco, segurando entre o braço e a lateral do tórax uma cópia de Chuvisco tirada numa agápê laserjet doméstica cujo tôner dará já sinais de estar em vias de acabar e um exemplar de Um copo de cólera. Na outra mão ele terá um toca-fitas com dez cassetes contendo 14 horas do mais suave silêncio já ouvido neste mundo.
A única liberdade atingível é acordar de manhã e ficar na cama. Permanecer, verbo intransitivo. Existir simplesmente, sem implicações, causas e efeitos, frases só de verbos. Nada mais que verbos, imagine. Sonhar, ouvir, sentir, acordar, falta um aqui, como Heiddeger queria, devíamos todos pensar só em alemão, sonhar, ouvir, sentir, acordar, atingir ser sem artigo nem vírgula.
Nestes átimos me dou conta da “sabedoria” oriental, não queria usar aspas, devia ser proibido, e não queria usar “e” nem “mas”, mas sabedoria é daquelas palavras que disparam um alarme interno agudo que me embrutece e amedronta, pulverizando em átomos as pepitas mnemônicas que há décadas venho tentando estudar e implementar um método que as preserve à tona pelo menos dois minutinhos que me permitam quanto mais não seja, fernando sabino, para vislumbrar a sombra do que me come por dentro antes de submergirem no meu angu mental.
Tem manhã acordo com Escrita de câmara, outras, com o maestro Lourenção na Cultura efeême, cantilena nas madrugadas em que um sonho escava baixezas que, se deus existisse, manteria intocadas dentro do meu ser.
Duns anos para cá os fariseus que mandam na Cultura resolveram destruir a marretadas o último reduto de sanidade que vinha resistindo ao império da boçalidade em que vegetamos qual pés de couve devorados por vorazes formiguinhas publicitárias que só vão sossegar o rabo quando lograrem seu desígnio de destruir o mundo. Na época do piano ao cair da tarde você podia escutar Mozart por horas sem de repente ser açoitado por um reclame das Casas Bahia ou excrescências que tais, moças com dicção e timbre da roça rezingando uma arenga enviesada sobre a necessidade de preservação do meio ambiente. A arenga preservacionista é sucedida por um comercial da telefônica em que um zé fazendo o tipo antenado-com-os-ancestrais dum jorge-ben rastaquera canta a história populista dum dos indigentes cada dia mais ubíquos no berção velho de guerra. Os fariseus em formação de quadrilha com publicitários bolaram um plano para destruir a rádio cultura à grotesquerie dos programas de auditório, só que antes querem torturar à morte a meia dúzia de ouvintes que ainda teimam em se considerar parte integrante mais da raça humana que da bovina.
Somos um recipiente de vísceras, fezes e gases. Agora encharcado de suor sob estes lençóis lavados a omo nesta minha cama em que muito raramente me senti aconchegado, agora saco a sabedoria oriental. A se soubesse antes. Se a Hebe Camargo me convidando para o seu talkshow me perguntasse aquela pergunta clássica, se você pudesse voltar no tempo que é que faria diferente, eu diria, olha Hebe, se deus me desse essa graça eu 1) nasceria gay, para gay tudo é mais fácil, da assunção do obscurantismo a que todos estamos fadados mais dia menos dia à faina dos estressantes ritos sexuais a que somos biologicamente predestinados para acasalar e em tese procriar 2) renunciaria sumária e peremptoriamente a essas frescuras de diletante masô que venho cultivando desde que nasci e abraçaria com unhas e pernas a simples, unívoca, escalafobética filosofia oriental.
Somos mulas cuja única serventia, if any, é alugar o lombo para vida a troco da liberdade de zanzar sem eira nem beira mundão afora. Dos fardos que nos cabe carregar, o da natureza, o da inquietação, o da vontade inextirpável de ter tudo e dar e comer todos/as, o corpo é o mais intolerável. Yes, agora saco a filosofia oriental. Se a Terra não estivesse em vias de extinção, cientistas sacanas engendrariam um novo ser humano com boca de meio metro e 234 dentes, com capacidade para devorar 5 quilos de biguemaques/hora, e três estômagos à la hipopótamo asimoviano para deglutir a gororoba. Sonho de consumo de publicitários fariseus. Publicitários só não anunciam cigarros de craque com coxinhas de mescalina no recreio da molecada porque a lei proíbe, ainda.
Se você pudesse perguntar uma pergunta a uma personalidade, a quem você perguntaria, perguntaria Hebe. Ah Hebe, essa é fácil. Ao meu suave Hemingway. E que pergunta seria? Olha, eu perguntaria, Ernest, me diga com toda essa poesia exaurida em simplicidade seca e fluida que só você é capaz de dizer, me diga, valeu a pena? Eu queria levantar esta questão momentos antes de ele enfiar os dois canos da shotgun na boca e puxar o gatilho. Tenho certeza de que ele diria naquele seu sotaque eivado da experiência do macho do século 19 musicado com pitadas do castelhano de Cuba e mamado de uísque sem gelo sob o calor equatoriano de 46º, ele diria, dear, wine is one of the most civilized things in the world, para então responder, yessir, so far so good.
Se eu soubesse imitar Hemingway, meu fim também seria este. Mas não sei me conter. Hay que ser macho para se conter. A esmagada maioria de nós não é. Somos apenas formiguinhas vorazes que nos devoramos por dentro. Somos cada dia mais eunucos baixando a cabeça ao poderzão sem rosto que nos põe a ferros, emasculados pelos penduricalhos oferecidos a 1 cent em cada esquina que tomamos em nossas mãozinhas efeminadas qual indígenas roussonianos aptos e ávidos pelo abate. Liriri-larará, Hemingway também se devorou. Só que se devorou à vista do sangue vertendo abundante dum chifrudo de uma tonelada nas plazas de toros washing down a si mesmo com barris de chardonnays.
Subo arrastando os pés para o quarto e deito, enfarado, angústia e desespero demais para ir até o banheiro mijar. Junho de 1985. Engraçado, não lembro do frio, embora junho sempre seja o mês mais gelado do ano. Mas lembro da padaria. Como poderia esquecer. Não, não está faltando a interrogação. Já não questiono mais nada. Você deve se lembrar. Vou cometer um sacrilégio e dizer que ela sorria para mim com aquele rosto de Gene Tierney em Laura misturado com a Beatriz de Dante. Pode soar cafona, estou ciente. Mais ou menos a meio caminho entre Mauá, Grande São Paulo, e Monterey, Califórnia. Tomamos umas cervejas, ela absolutamente coquete, coquete como já não é mais possível ser, coquete como quando ficava a fim de um homem, só que agora esse homem sou eu, estou no paraíso, uma chuva de água benta lava as dores da infância, saímos e entramos no Escort amarelo/branco/teto-solar. Dou a partida, tudo que vejo é que ao meu lado Adorno escreve mal do jazz, por cima do ombro dele Mann olhando e tomando notas para o dr. Faust. O ar semidesértico entre Mauá e a California é ─ seguro a mão dela, aperto, entrelaçamos os dedos ─ o ar semidesértico é ─ aperto a mão dela o mais calidamente que posso, ó deus ─ inebriante. Adorno liga o rádio. Não acredito ─ está tocando A day in the lie. Vejo o Escort passando pela feira da rua Espírito Santo onde eu puxava o carrinho carregado de frutas e legumes para minha mãe. Algaravia. Juro a mim mesmo que um dia haverei de perder meu preconceito contra embusteiros e lerei Saramago. I read the news today oh boy, meus olhos se enchem de lágrimas. Agora o Escort está prestes a entrar no túnel da Anchieta. Não me dou conta de que é impossível um túnel nesta via que serpeia os areais que mil vezes vi nos filmes. A mão dela entre a minha ocupa todos meus pensamentos, todos meus sentidos. Quero olhar para ela, mostrar meus olhos cheios d'água, dizer, veja, veja só o estado em que fico. P. Roth me repreende com os olhos, você não vai acabar de ler Operation Shylock?, parece exigir. Phil, me escreve outro complexo de Portnoy, pelo amor dele, aponto para o céu, tão azul que todo o povo da última cidade morreu. Ela me olha muda, convidando, vamos andar de roda gigante. Vamos. Deus, sou o grande pecador deste mundo. Me transforma em churrasquinho aqui, já. Junho de 85, foi quando morri? Dia após dia desde então acompanho compungido meu próprio féretro. E a cova está sempre além da colina que, criança, eu sonhava escalar para passar a mão no céu. Sentamos no balanço da roda-gigante. Ela toma minha mão, a roda se põe a girar. Não posso resistir: precisava mais? Deus, precisava mais? Tento enxergar quem está no volante do Escort. Não consigo. O bicho zune pelo ar semidesértico, riscando o cenário de vultos de cactos e aquelas formações rochosas surreais, vrrrrrruuuummmm. Será “ele”? Do outro lado, Ludwig me dá um tapinha no joelho, promete, assim que chegarmos vou compor um fuer Elise só para você. Vai chamar fuer Someone. Adorno vai fazer a letra: met a man in Beirut having her name tattooed on his arm. Será que fica bom, Beet? quero perguntar, não dá tempo. Fuer Someone se ergue no ar semidesértico, tomando o lugar de i'd love to turn you on. Deus, poderei ter paz ever? Do jeito que o dia corre, logo vão tocar sonata ao luar. A cara debochada de Miller me sorri pelo retrovisor. Quero engolir em seco. Não posso. Este Escort amarelo/branco/teto-solar é o útero seco que mereço.
Ela põe a mãozinha de fada na minha virilha e ausculta.
Assim que chegarmos. Como se estivéssemos viajando. A paisagem lá fora passa, é sempre a mesma. Los recuerdos se insuflán formando um pelotón de anjos diáfanos que cantam um hino vagamente se assemelhando a uma matilha de coiotes uivando à espera da minha carcaça dentro do túnel-noite sob cada decibel de ruído que já se produziu desde que ela me olhou co'aqueles olhões-ninhos cochichando vem, estendendo a mão, que agarrei um segundo antes de ser devorado pelo vórtice para subir, subir, subir, subir. Rapaz, não era esta california que eu estava dreamin não. A outra. Pré-roda-gigante. Dá para voltar? Por aí. Sintoniza onde não haja anjos ou coiotes. Não queria falar em asas, hoje não, não, não mexa em mim, é tão fina, intransponível a película que me separa. Repouso el cabezón no encosto de curvim do banco traseiro do Escort, fecho os olhos, seguro a respiração, me comprometo a morrer jovem. It's too late, seu descabeçado. Já li todos os grandes, li os poemas, perdi meu cabacinho de ouro, meu lindo, cristálico cabacinho que mi'a mãe um dia, me chamando meu tesouro à la madona carcamana terna ─ de quê? ─ jurou jamais permitiria alguém tocasse. It's just too late, já vi todas as fotos, pensei todos os pensamentos. Neste cul-de-sac seco vou revirando podre que nem eu só.
Fui expulso do palácio, impedido de prosseguir zonzo com o perfume da princesa, sorvendo o champanhe das taças de cristal e o licor encantado destes jardins, saboreando o doce enigma do destino destas sendas ladeadas de bosques e jardins. Met a man in Beirut having her name tattooed on his arm.
Expulso do paraíso, condenado a me vigiar com meu próprio olhar doentio de febre e asco e remela, criança sem pai nem mãe, sem passado nem futuro, me escondendo de mim em becos sombrios habitados por ratazanas e caramujos e carrapatos, me redescobrindo este ser de outra dimensão com meus risos banguelas por não terem serventia meus dentes e minhas caras fundas de angústia e desespero.
Aceito minha missão de cumprir minha sina de bandido e usar esta lâmina reluzente que tenho na mão. Convocarei o algoz sempre à minha espreita, pronto para me remover do mundo qual sujeira indesejável, sem nenhum motivo concreto, seja vingança, tara, sadismo ou qualquer outro em particular.
Valerá a pena lutar ou devo me entregar sem resistência, aceitando naturalmente meu desígnio de me extinguir?
Não quero olhar nem ouvir nada. Não levarei comigo registros, diários, impressões, anotações, parâmetros, mapas, essas tralhas com que todos que vivemos nesta imensa jaula nos armamos na esperança de sobreviver mais um dia.
Não quero nada.