Diálogo entreouvido no playground dum parque público

 Mamãe, então chega uma hora que não dá mais?

 Sim, filhinho. Chega.

 Sempre, mamãe?

 Sempre.

 E que hora é essa?

 Ninguém sabe, tesouro.

 Ninguém, ninguém? Nem papai? Nem papai do céu?

 Não, querido. Agora brinque.

 Mamãe, a minha hora de não dar mais também vai chegar?

 Vai, meu amor.

 Quando?

 Ninguém sabe, anjo.

Ninguém manda em mim

Ainda não estou preparado para usar pontos de exclamação.

Antipostagem

Me avisei, não poste.
Não diga, peça, reze.
Não escute nem cante, seja pelas ondas sonoras ou mentalmente.

Não.

Mas não durma.
Não sucumba ou morra.

Só desista.

Desgosto

Que é que delira um ébrio que só delira quando está ébrio?

Docilidade

Me diga, amor:

Você já fechou os olhos e
De olhos fechados
Passou a palma da mão pelo mouse
Procurando sentir a infinita potencialidade
da vida
na áspera pele que
sob seus dedos
insistem em procurar
sua tão próxima realidade?

Emparedado

Me pergunto, quer dizer que existe um mapa, afinal?

Depois de tudo que pensei e filosofei e escrevi a respeito, não.

Não existe um mapa.

E a próxima pergunta (para o resto do que me resta?) é:

Não ter um mapa é ter um mapa?

Sei, você quer simplicidade

Um cemitério é simples.
Um hospital é simples.
Um cadáver anestesiado de vida é simples.

Ou, em vez de simples, você quis dizer passivo?
Conformado?
Perturbado-mas-só-a-ponto-de-causar-frisson?

E eu? Que é que quero de mim?

Você acha que nasci para figurar em listas?
Na tua lista?

Me acha um correspondente com quem trocar impressões sobre o tempo, o vento, a chuva, a morte, as cachoeiras  a cada 10 dias?

Ou não tenho direito de perguntar, pois, afinal, sou eu quem (te) procura?

Mãe, sou eu quem (te) perde.

Sou eu quem te busca.

Diga

Viver é um desperdício?

E amar?

E sofrer por não ser amado?

E, deus meu, não saber se sofre, seja por não ser amado ou qualquer outra coisa?

O que afinal é um desperdício nesta vida?

Ser incapaz de esquecer?

De lembrar?

Deixar pra trás? Deixar pra trás e querer voltar atrás? Torcer com a mais profunda inocência do mundo para que o tempo passe num segundo até o mais final dos segundos?

Tão abstratas perguntas.

A cada passo vejo o mundo chegar ao fim.

Who cares, mãezinha?

Estou feliz

Acabei de descobrir que no mais das vezes basta dar um pé na bunda dos idiotas que te cercam.

O pé na bunda pode surtir miraculosos efeitos.

Pode te mostrar que a maioria dos covardes que pululam em teu mundo tentando te mostrar que não são covardes desaparecem cum mero pé bem dado na bunda e retornam ao limbo onde sempre estiveram mas que fantasiavas paraíso em tua hesitação de exercer teu papel humano.

Ah, que delícia.

Agora entendo os justiceiros.

Estou incólume.

Sou invencível.

Tenho uma verdade que descobri sozinho.

Aquele rock que eu nunca fiz

Vou olhar teus olhos
só pra olhar

Vou ouvir tua voz
só pra ouvir

Vou sentir teu perfume
só pra sentir

Vou tocar tua mão
só pra tocar

Vou lembrar teu rosto
só pra lembrar

Mas vou guardar tuas palavras
só pra te esquecer

Escrever nada

Dizem que escritores há que escrevem no horário comercial: das 8 ao meio-dia e das 13 às 18 horas. Ora, quem segue horário desse jeito não é escritor, é escrevente de cartório.

Uns até se gabam na imprensa: "escrevo de manhã", "escrevo à noite", "escrevo das 4:15 às 8:30 da matina".

Ótimo. Mas e os indisciplinados como eu?

Não tenho -- nem nunca tive -- horário para nada. Não é todo dia que tomo café-da-manhã e quando tomo nunca é na mesma hora. Almoço, idem. Janta, também.

Tem dia, não tomo banho. Tem dia, tomo dois.

Tem dia, não escovo os dentes. Tem dia, escovo oito vezes.

Sim, tenho um "probleminha" com regularidades e rotinas.

A única coisa que começo mais ou menos no mesmo horário é meu ritual etílico. Em geral, entre as 17 e as 17:30. Raramente antes disso. Praticamente nunca depois disso.

Se nem o básico faço assiduamente, que dirá escrever?

Sei que parece caso de preguiça, mas, acredite, está longe disso. Sou cabra trabalhador. Já tive época de escrever três dias num só jato, pausando apenas para ir ao banheiro e reabastecer meu copo.

Na verdade, nem eu mesmo entendo direito. Imagino que, se entendesse, provavelmente escreveria a respeito.

Deviam inventar um produto para quem não quer escrever nada.

Podia ser qualquer coisa -- a depender da imaginação dos publicitários. Eles são tão "imaginativos".

Um chá, uma farinha especial para um bolo de fubá, um tempero para o arroz e feijão.

Talvez a melhor solução fosse um comprimido.

Ai, Zé -- me aproximo do balcão da farmácia forjando cara de enjoo. -- Tô com "aquilo" de novo.

Consternado, Zé chupa os lábios entre os dentes e morde de leve.

-- Puta merda, não diga. Tá com os sintomas desde quando?

-- Uns três dias. Duas semanas. Sei lá. Ai que enjoo. -- Faço uma careta, aperto a barriga.

-- Mas por que não veio me procurar logo, porra? Você sabe que é pior esperar até chegar nessa crise.

-- Caralho, Zé, já expliquei, não expliquei? Não tem como identificar na hora. Tava lá em frente ao computador, as mãos preparadas pra atacar o teclado, olhando a tela branca, olhando, olhando... Cara, não é fácil saber, não senhor. Sempre penso, "é assim mesmo", "logo passa", e quando dou por mim lá se foram dias. Ou semanas. E cá estou de novo, precisando daquele remedinho milagroso que você tem aí.

Zé faz cara de resignado, dá meia volta, mexe numa prateleira e quando se vira de novo para mim tem na mão uma cartela metálica com algumas pastilhas.

-- Taí. Escrevenol. Um comprido três vezes ao dia por uma semana. Se não melhorar, pode dobrar a dose. Se ainda assim não passar, desista. Procure outra profissão.

Por que muitos de nós escritores simplesmente não podemos aceitar essa queda na vontade de escrever?

Afinal, parece tão simples, não parece?

"Não tô a fim de escrever agora. Hoje. Esta semana. Este mês. Vou pescar. Vou ver tevê. Vou viajar."

Qual o drama? Nós escritores que sofremos desse mal temos de aprender a aceitar a desgraça. Talvez nem mal seja, oras. Quem sabe é "inerente"? Faz parte?

O que eu queria saber de fato é por que nós escritores temos essa compulsão a escrever o tempo todo.

Bem, posso estar generalizando. Mas eu pelo menos tenho.

Me sinto meio culpado quando não estou escrevendo. Pareço estar cometendo um pecado. Contra o que ou quem, nem imagino. Ou então fico com a impressão de que estou jogando meu precioso tempo fora, desperdiçando meu talento, deixando de aproveitar uma cacetada de ideias que de outra forma preencheriam posts e mais posts deste meu blog.

Porque, pombas, imagino que médicos não fiquem constantemente dizendo a si mesmos "Preciso medicar!"

Ou advogados não estejam sempre pensando "Porra, preciso processar alguém!".

Ou farmacólogos não passem dia e noite se culpando "Cazzo, preciso inventar uma pastilha para quem tá sem vontade de escrever!"

Aparte II

Na página "Estatísticas" do blogspot do Google há um mapa em "Origens do Tráfego".

Neste momento vejo que a Austrália está destacada em verde-garrafa.

Há um australiano -- ou, pelo menos, alguém que habita aquela parte da Oceania -- conectado ao meu blog.

Não sei se digo um milhão de palavras ou não digo nada a respeito.

Seria conveniente uma piada com um canguru? Um sapo? Coelho?

Poderia me assombrar "Que admirável mundo novo da conectividade total".

Mas seria demasiado pobre. Acho que não conseguiria testemunhar o milagre com algo à altura de um milagre.

É um milagre, afinal?

Às vezes penso que sim. Outras, que não.

Nunca existiram milagres em minha vida. Se existiram em outras, não sei.

E estou desiludido demais para querer saber agora.

Aparte

Estou no meio das postagens sobre o Sanatório e não devia de forma alguma estar quebrando a sequência.

Mas neste momento, agora, já, preciso declarar a quem quer que seja que a melancolia me abandonou (sei que não para sempre) e deixou algo insuportável no lugar.

Pauliceia Desvairada Revisited

Agora sim. Novamente a nossa querida Paulicéia, mais desvairada do que nunca. Que saudade dos motoboys rasantes e suicidas rasgando as vias entupidas, chutando os espelhos, compondo a poesia da matina. Que saudade da neblina de enxofre flutuando de manhã no horizonte, quebrando a monotonia azul de um dia de outono. Que saudade dos ruídos estridentes salvando-nos do silêncio opressivo, da solidão da calma, do ruído horroroso dos pássaros da manhã. Que saudade das mesas na calçada, do fedor da rua Augusta libertando-nos da graça do perfume das flores e das refrescantes moças recém-empoadas. Que saudade dos arranha-céus de setenta e seis andares a livrar-nos desta horrorosa abóboda azulada. Vejo agora por que senti tanta falta desse delicioso monstro de cimento e gente derramado por sobre as colinas da longínqua, saudosa e idílica Piratininga.

Sendo a infelicidade não só a dor

O menino de 14 anos deixou sua casa e sobreviveu.
Foi às onze da noite.
Dormiu no jardim duma casa num bairro nobre e retornou na manhã seguinte.
Resistiu às lágrimas da mãe e gostaria de pensar em algo.
Como odiar o pai, fazê-lo matar-se de arrependimento.
Progrediria. Se sonhasse.

Esperança não havia. Esperança era uma palavra.
Havia um amigo. Traduzido em ameaça.
Como só um raio de luz podia ameaçá-lo.

Na cama quente, um pensamento.
No mundo, a roda a rodar como rodam as rodas no mundo.

O pequeno doente era também normal.
Não cometera um erro.
Vivia apenas. Nas ruas e no silêncio de antes.

Lembranças nunca existiram.
O outro era outro, o mesmo era outro pacífico, apático.
Era o dia, era o não saber de nada.
Avançar no escuro, perto da mente, ninguém.

O menino andava estranho.
Recebia as palavras.
Deixava que festejassem.
E, quando o encontravam, sorria junto e dizia oi.

Não disse nada. Foi embora para retornar de manhã.
O pai à porta.
Horas que não lavravam o tempo.
As pessoas e suas faltas de objetivos.
Sua aparência, seu modo de olhar.
A esperança, uma palavra. A vontade, não.
O tempo, quando, sem medo, sem consideração.
Doentes sinais. Autossucumbimento.

Já naqueles tempos vivia, quando só o nada era o mesmo.
Pois o necessário não havia.
Não havia o sustento diário, a ideia feliz
Dum passeio sem volta nem ida
Sem companhia, sem rua, sem alma, sem sentido
Com o amigo adorado, a salvação
A emprestar a um sentimento o poder de conceber-se
O fim do sempre, o fim do momento, o fim da dor
Do inerte menino a horrível alegria
Na poltrona onde um livro caiu
Sob a não-sensação da opinião mundial da existência social.
A mentira da família e a maravilha na cabeça ao partir a segurança.

Sofre-se apenas. Dor não é preciso.
Esquece-se a terra.
Individualizam-se os objetos e as pessoas.
Na fantasia, a sobrecarga do que não tem importância e tem valor mesmo assim.

Amou a vida de si.
A palavra solta.
Foi embora.
Seu deus, a inexistência.
Sua fala, a impossibilidade.
Seus ídolos, os amores que devotou à realidade.

O pai de perto.
O esquecimento simplesmente.
A pessoa.
E o mundo parado feito águas e pedras.