Escrever nada

Dizem que escritores há que escrevem no horário comercial: das 8 ao meio-dia e das 13 às 18 horas. Ora, quem segue horário desse jeito não é escritor, é escrevente de cartório.

Uns até se gabam na imprensa: "escrevo de manhã", "escrevo à noite", "escrevo das 4:15 às 8:30 da matina".

Ótimo. Mas e os indisciplinados como eu?

Não tenho -- nem nunca tive -- horário para nada. Não é todo dia que tomo café-da-manhã e quando tomo nunca é na mesma hora. Almoço, idem. Janta, também.

Tem dia, não tomo banho. Tem dia, tomo dois.

Tem dia, não escovo os dentes. Tem dia, escovo oito vezes.

Sim, tenho um "probleminha" com regularidades e rotinas.

A única coisa que começo mais ou menos no mesmo horário é meu ritual etílico. Em geral, entre as 17 e as 17:30. Raramente antes disso. Praticamente nunca depois disso.

Se nem o básico faço assiduamente, que dirá escrever?

Sei que parece caso de preguiça, mas, acredite, está longe disso. Sou cabra trabalhador. Já tive época de escrever três dias num só jato, pausando apenas para ir ao banheiro e reabastecer meu copo.

Na verdade, nem eu mesmo entendo direito. Imagino que, se entendesse, provavelmente escreveria a respeito.

Deviam inventar um produto para quem não quer escrever nada.

Podia ser qualquer coisa -- a depender da imaginação dos publicitários. Eles são tão "imaginativos".

Um chá, uma farinha especial para um bolo de fubá, um tempero para o arroz e feijão.

Talvez a melhor solução fosse um comprimido.

Ai, Zé -- me aproximo do balcão da farmácia forjando cara de enjoo. -- Tô com "aquilo" de novo.

Consternado, Zé chupa os lábios entre os dentes e morde de leve.

-- Puta merda, não diga. Tá com os sintomas desde quando?

-- Uns três dias. Duas semanas. Sei lá. Ai que enjoo. -- Faço uma careta, aperto a barriga.

-- Mas por que não veio me procurar logo, porra? Você sabe que é pior esperar até chegar nessa crise.

-- Caralho, Zé, já expliquei, não expliquei? Não tem como identificar na hora. Tava lá em frente ao computador, as mãos preparadas pra atacar o teclado, olhando a tela branca, olhando, olhando... Cara, não é fácil saber, não senhor. Sempre penso, "é assim mesmo", "logo passa", e quando dou por mim lá se foram dias. Ou semanas. E cá estou de novo, precisando daquele remedinho milagroso que você tem aí.

Zé faz cara de resignado, dá meia volta, mexe numa prateleira e quando se vira de novo para mim tem na mão uma cartela metálica com algumas pastilhas.

-- Taí. Escrevenol. Um comprido três vezes ao dia por uma semana. Se não melhorar, pode dobrar a dose. Se ainda assim não passar, desista. Procure outra profissão.

Por que muitos de nós escritores simplesmente não podemos aceitar essa queda na vontade de escrever?

Afinal, parece tão simples, não parece?

"Não tô a fim de escrever agora. Hoje. Esta semana. Este mês. Vou pescar. Vou ver tevê. Vou viajar."

Qual o drama? Nós escritores que sofremos desse mal temos de aprender a aceitar a desgraça. Talvez nem mal seja, oras. Quem sabe é "inerente"? Faz parte?

O que eu queria saber de fato é por que nós escritores temos essa compulsão a escrever o tempo todo.

Bem, posso estar generalizando. Mas eu pelo menos tenho.

Me sinto meio culpado quando não estou escrevendo. Pareço estar cometendo um pecado. Contra o que ou quem, nem imagino. Ou então fico com a impressão de que estou jogando meu precioso tempo fora, desperdiçando meu talento, deixando de aproveitar uma cacetada de ideias que de outra forma preencheriam posts e mais posts deste meu blog.

Porque, pombas, imagino que médicos não fiquem constantemente dizendo a si mesmos "Preciso medicar!"

Ou advogados não estejam sempre pensando "Porra, preciso processar alguém!".

Ou farmacólogos não passem dia e noite se culpando "Cazzo, preciso inventar uma pastilha para quem tá sem vontade de escrever!"

4 comentários:

  1. Incrível como tudo isso é verdade. Tenho precisado de Escrevenol há meses.

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  2. Não pode deixar o teclado, digo, a peteca cair, não. Vai que numa dessa tu não escreve nunca mais? Já vi casos.

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  3. também sou assim. Só escrevo quando me vem uma vontade. Como disse Ferreira Gullar: "O poema nasce do espanto, e o espanto decorre do incompreensível." Na tentativa de elucidar os questionamentos despertados pelo espanto, eclode um poema.

    "Entende agora por que demoro 10, 12 anos para lançar um novo livro de poesia? Porque preciso do espanto. Não determino o instante de escrever: "Hoje vou sentar e redigir um poema". A poesia está além de minha vontade. Por isso, quando me indagam se sou Ferreira Gullar, respondo: 'Às vezes'."(Ferreira Gullar)

    Ótimo e muito bom a ideia da prosa no texto!

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  4. Escritores, amadores ou profissionais, têm a necessidade de escrever. Sinto isso também. Como se a escrita fizesse parte de mim, ou que amenizasse a dor, ou seja lá o que eu esteja sentindo. Mas só quem escreve sabe o quão prazeroso é. Dá um alívio, sei lá.

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