Superfície interior

Se pude conhecer a casa da dor da infância da dor da rua da dor da cidade da dor da mãe da dor da irmã da dor, que outras dores haverão ainda de doer?

Microfonia

Sílvia foi embora e virei expectador das tardes e das manhãs e dos dias e do filme invisível que se desenrola nas paredes brancas da minha sala e dos romances perfeitos a que almejei na adolescência e dos personagens humanamente sobreumanos que pensava um dia poder ser, escutador dos sabiás desencantados que cantam a resignação de cantar seu cântico mortalmente monocórdio em meu quintal, dos boings que sobrevoam impávidos esta casa e todas as casas que neste instante abrigam alguém sem outra alternativa senão escutar boings, do ranger das cadeiras em que me sento aflito e do zunir das máquinas que produzem solas de sapatos na esquina e das tevês na vizinhança que distraem os robôs que nasceram para ser distraídos e dos estalidos dos pingos da chuva permanentemente retida em minhas nuvens e dos assobios dos ventos que me sopram em rodopios que não me deixam zonzo.

Ela se foi e tudo parou. Tudo parou como se nada houvesse sido móvel um dia. Tudo parou naquela imobilidade que meu professor de física certa vez me asseverou ser fisicamente impossível, rogando para que eu não perguntasse por quê. E, obediente como sempre fui, não perguntei.

Cruz

Acabei de passar pela fila dos imbecis. Pelo menos uma vez por dia sou forçado a passar pela fila dos imbecis. E quando passo pela fila dos imbecis me sinto mal por habitar o mesmo mundo que o deles. E quando passo pela fila dos imbecis queria estar passando pela fila dos cegos, surdos e crentes. E quando passo pela fila dos imbecis percebo pelo canto do olho -- canto do olho que já não existe hoje em dia, pois todos os imbecis entraram na fila -- percebo pelo canto do olho que os imbecis me olham me achando louco. E dou graças a quem quer que os imbecis costumem dar graças.

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À medida que o tempo vai me devorando (na medida que só o tempo pode saciar e entender), as minhas contradições, que cultivava com a diligência dum estudante esforçado, já não me explicam mais.

Domingo à noite diga que estou viajando

Lembrei o que tinha esquecido desde a infância.

Quando criança achava que todos eram fingidores. Fingiam ser felizes. Fingiam tolerar a sentença de viver. E fingiam como profissionais.

Havia os personagens do dia a dia: pai, mãe, irmã.

Havia as figuras que davam o ar de sua graça incidentalmente.

Entre os incidentais estavam os que se apresentavam como parentes vivendo em paragens distantes improváveis. Quando os visitava, eles corriam a construir as ruas e vilas de suas cidadezinhas, sempre pacatas, meio paradas no tempo, pavimentando calçadas, levantando postes, estendendo cabos elétricos e telefônicos, ativando carros, ônibus e caminhões, acionando ciclistas que aprendiam a se equilibrar instantaneamente em suas bicicletas quase reais, movimentando pedestres que subiam e desciam as ruas do centro como se tivessem de fato um destino legítimo, forjando cinemas que passavam filmes de verdade e que até cobravam ingresso, gelando os sorvetes nas sorveterias em cujas mesas eu me sentava para que me inteirassem dos assuntos que corriam como boatos e que tinham recém inventado para que não desconfiasse.

Os incidentais também incluíam os que se apresentavam como amigos que em outras eras fantásticas tinham conhecido o pai, a mãe ou a irmã. Cada amigo tinha sua própria história, genealogia e raça. Em sua maioria eram católicos para que não houvesse estranhamento, sempre um perigo em casos como esse. E falavam de coisas de que eu nunca ouvira falar, tendo no olhar um brilho promissor de que minha vez haveria de chegar -- era só ter paciência.

Havia vizinhos que se davam o imenso trabalho de nascer e crescer e, inventando formidáveis pretextos dignos da ficção científica, se mudavam para as casas ao lado, para o sobrado em frente, para a pensão na esquina. Alguns, mais empenhados na faina do ludibrio, arrumavam empregos longe, que os obrigavam a sair de casa muito cedo para só retornar muito tarde da noite. Esses mais empenhados chegavam ao capricho de procriar. Faziam meninos e meninas que cresciam para popular o mundo em volta, camuflando a solidão natural para a inescapável tarefa de alimentar a esperança.

A maioria vinha e ia. Não, a maioria não: todos. Todos vieram e foram. Até mesmo os personagens do dia a dia: pai, mãe e irmã.

Fico pensando se foram por concluírem que já tinham cumprido sua missão de me iludir. Talvez ele já esteja suficientemente ludibriado, pensaram. Talvez ele também já possa ir. Agora, neste fantástico teatro que nos impusemos encenar, só nos resta baixar a guarda e morrer.

E acho que assim foi. Alguns morreram, outros sumiram sem explicar para onde ou por que, outros se afastaram sob desculpas mais ou menos verossímeis, dando, todos, por finda sua doce missão.

Mas eis-me aqui lembrando o que não me cabe lembrar.

Se fosse possível, lhes diria que foi tudo inútil. As tripas da vida estão expostas, e, sem alternativa, cometo o erro de olhá-las, sentindo o nariz entupir do cheiro de sangue.

Se fosse possível (se fosse possível restituir tudo àquele estado em que o mundo pareceu uma vez ter sentido), lhes diria que nunca fui profissional na arte de encenar. Por isso, quem os enganou fui eu.

Não uso...

...ponto de exclamação porque não tenho convicções. E em minha falta de convicções não sou categórico.

É assim.

Queria ligar pra Sílvia e mandar um beijo. Mas seria inútil. Meus emails certamente estão bloqueados. Cheguei a enviar trinta por dia, mais de um por hora, no reply - y - y - y. Ela agora só quer saber de empresários bem-sucedidos, diretores de empresas, funcionários de alto escalão e/ou atletas, tem desprezo por sedentários molengas derrotistas pessimistas fracassados encucados ficionados por papos-cabeça sonhadores profissionais que se pelam de medo dos próprios sentimentos feito eu.

Tentei me reformar até meus vinte e cinco anos. Vinte-e-cinco anos é um limiar, meu ex-amigo Mário japa da faculdade pontificava. Foi o único anarquista autêntico que já conheci. Se um terremoto bíblico viesse de repente e deitasse por terra tudo à nossa volta, Mário se limitaria a sorrir bebericando a vodka gelada que tivesse à mão, se não soçobrasse junto. Com ele aprendi que um anarquista não pode ser romântico. O que me exclui sumariamente da parada. Me acho um porco romântico. Mário foi, entre outras coisas, o único que me entendeu. E vice-versa. Um dos poucos vice-versas da minha vida. Porque praticamente não tínhamos muito a dizer um ao outro. Podíamos beber até o dia chegar trocando resmungos confirmatórios de hora em hora sobre estímulos exteriores, pessoas chegando ou partindo do buteco ou falando alguma asneira mais hilaremente flagrante na mesa ao lado. Mário se reformou até o vinte-e-cinco, depois virou advogado em escritório bacana circulando na alta roda c'um desses carrões negros de vidros escuros que parecem rabecão de marciano. Até os vinte e quatro varávamos noites no Bate-Pinga da Corifeu ou em algum muquifo lotado de putas no Butantã ao som dum violão que algum sacana da Caminhando sempre dedilhava algures. Mário comia duas ou três toda noite, me enchendo a paciência por eu não comer nenhuma. Não comia nenhuma porque tentei uma vez mas, claro, brochei. Naquela época era um porco romântico existencialista. A menina de cabelo tingido de loiro cuja tintura vencera um mês antes me olhava abúlica. Raquítica. Sem tetas. Entramos no quarto, ela começou a tirar a roupa, pedi que não. Ela me olhou com cara de mais-um-solitário-mórbido que-só-quer-conversar porque-é-incapaz-de fazer-amizade-no-mundo-real. Perguntei se tinha filhos. Disse que não, não acreditei. Estimei uns três ou quatro, embora parecesse ter uns dezesseis ou dezoito apenas. De onde você é? Paraná. Acreditei. Fiz umas das minhas piadinhas sem graça de que os outros riem só pra não me deixar constrangido tentando ver se relaxava a dureza do rosto grosso de desgosto. Ela não ria de jeito nenhum. No fim percebi que não tinha uns dentes da frente mas não pude concluir se era essa a razão da falta de sorriso. Passados dez minutos ela disse que o tempo tinha acabado. Eu não a tinha comido nem conversado sobre nada. Tirei umas notas embolotadas do bolso, pedi desculpas por não ter nenhum pra caixinha. Ela torceu o nariz, não sei se por indiferença, desagrado, enfado ou vontade de sumir. Lembro que equivalia ao preço de duas cervas. Uma gelada. Outra morna.

Se passaram alguns anos fiquei sabendo que Mário voou do décimo-oitavo andar e aterrissou na calçada em frente ao seu prédio de doutores bem-sucedidos. Provavelmente levando para o além um monte de vergonha na cara.

Se você não criar vergonha até os vinte-e-cinco, desista. A primeira vez que ouvi Mário dizer isso me deu um pavor assoberbante. Virou um princípio ocupando metade do meu cérebro. Tive um daqueles cliques que vira e mexe me dava e dá ainda hoje. Desde muito cedo na minha vida sei que sou incapaz de criar vergonha na cara. É das poucas coisas que sei com relativa convicção sobre mim mesmo e sobre qualquer coisa. E tenho essa preguiça mastodôntica inelutável que mais parece doença. Olhar me dá preguiça. Pensar me dá preguiça. Sentir me dá preguiça. Escrever me dá preguiça. Às vezes tenho um desses meus clarões e me vislumbro numa ou outra situação em que o padecimento não faz parte da paisagem. É o que vocês aí fora chamam alento. Mas não quero partilhar da ideologia do autodesenvolvimento. Para Sílvia sempre fui muito pouco. Sílvia é daquelas que têm na "sofisticação" um projeto de vida. É capaz de destrinchar seis ou sete sentimentos dum simples bate-papo durante um cafezinho, colocando em pratos limpos isso, isto e aquilo, ciosa de que vale a pena cultivar uma consciência detalhista para que o coração seja saudável, ou detectar segundas, terceiras, oitavas intenções numa frase que eu pronunciasse distraído no carro a caminho dum teatro quando na verdade o que eu queria era encher a cara no Mulligan Irish da Bela Cintra assistindo Sílvia fuçando enfarada sua salada russa de kani com risoto de funghi. Eu sentia medo e assombro diante da consciência seletivamente hiperativa que quase encarnava em vida própria e que estava sempre de plantão sem nunca me dar trégua apesar das minhas caras de súplica por um arrego que me deixasse respirar um minuto em paz para reornizar minhas dores. Leu cada uma das mil, cento e vinte páginas de Infinite Jest, de David Foster Wallace, de que em meu romantismo porcino existencialista não consegui superar a décima-sexta porque fui ficando mais e mais exasperado a cada linha com o holofote anti-raid aéreo com que Wallace varre cada ninharia que seu radar sobre-humano detecta no ambiente ao seu redor e que me faz me sentir o sonâmbulo molenga que de fato sou mas que detesto quando gente mais esperta que eu me diz que sou. Sílvia não se deixa atingir por esse tipo de competição em seu discernimento alienatório de sintonia fina acurado ao extremo evitando que ela desperdice energia perdendo tempo com que possa tirá-la de sua zona de conforto pairando soberana sobre qualquer perspectiva de risco e que se resume a três palavras: senso de autodefesa.

Até que um dia meu temor com o vaticínio de meu ex-amigo Mário japa suicida me levou a entrar numa escola de capoeira. A ideia era tentar desenvolver um mínimo meu senso de autodefesa, que é nulo. Me limitei a me retrair low-profile maníaco num canto. Olhando o movimento lá fora. E rindo internamente com o professor lividamente fulo que me mandou embora quando perguntei se podia assistir às aulas tomando meu balla com água de coco. É agora, pensei. É agora que levo uma pernada na cabeça e embarco de vez pra terra dos mortos donde nunca devia ter saído.

A primeira vez que vi Sílvia meus olhos ficaram hipnotizados de fascínio. O dia em que me deu um pé c'uma de suas botas de pelica estava linda e sedutora como nunca me fitando indiferente enquanto me consumia de dor. Augusto buzinou lá fora em seu esporte conversível importado vermelho e ela disse tchau e virou as costas e saiu e bateu a porta suavemente. Sílvia precisa de grana e muita. Evita a instabilidade a qualquer preço. E não tolera desconforto. E se sente humilhada ante pessoas mais endinharadas, ser mais pobre é defeito. No início se iludiu pensando que podia viver de brisa ao lado dum porraloca. Eu também me iludi. Minha porraloquice encheria a barriga dela. Quando vi que estava enganado, tentei dar aquela guinada que alguns de nós tenta a certa altura da vida. Não sei se alguém consegue. Eu, não, provavelmente está na cara. Dou guinadas todo dia. De manhã à noite. Vou ficando cada vez mais no mesmo lugar. Esse papo de superação é só isso, papo. Depois de passar anos pensando em tentar tudo, acabei pensando que o que me faltava era arrumar um emprego como todo mundo. Contei meu problema ao meu amigo Fred e ele me arrumou um numa firma de exportação de frutos do mar de um ex. Explicou ao sujeito que eu não tinha experiência mas era inteligente. Que aprendia rápido. Que falava uns idiomas. Que escrevia, corrigi. Falar, nada mais que o português. E só quando é absolutamente necessário. É bico pr'um cara como você, Fred disse. Só não pisa na bola. O Anacleto, dono da firma de exportação de frutos do mar, até que pega leve. Tudo que você precisa fazer é deixar ele te chupar no fim do expediente. Bico. Escrever umas cartas em inglês, espanhol, alemão, não tenho muitos problemas com que me chupem, emprego manero. Não durei uma semana. O Anacleto até que levei numa boa. O problema foi cumprir horário. Tentei. Me sentia acorrentado a um rochedo e o urubu do relógio me bicava o fígado e o esôfago e o estômago e os intestinos a cada minuto. Comecei a ter falta de ar. Por coincidência, o escritório também ficava no décimo-oitavo andar, atiçando minha tentação a correr para junto do meu ex-amigo Mário. Nessas horas emitia mentalmente um resmungo, tentando imaginar como é que ele se safaria, em vão. Sei que ele fez o mesmo pouco antes de mergulhar pela janela. Passava a tarde olhando a calçada lá embaixo degustando a queda, antegozando meus últimos pensamentos (para quem seriam? Sílvia? minha mãe? algum amiguinho esquecido da infância? o sanduíche de mortadela que acabara de engolir com meia cerveja no bar da esquina?), me imaginando atingindo uma princesa por quem me apaixonaria não fossem as circunstâncias, balbuciando a mais visceralmente bela declaração de amor jamais feita por um homem dez segundos antes de afundar o cimento da calçada com meus quase cem quilos.

A impossibilidade que logrei conter mais ou menos até então voltou a predominar minha existência. Tudo à minha volta é uma impossibilidade constante. Uma impossibilidade constante e sólida feito um naco de carne de porco congelada a dois mil metros de fundura no centro da Antárdida.

A lembrança da despedida de Sílvia é meu pesadelo. Como fora meu bálsamo tê-la conhecido e amado e sido amado por ela. Foi a primeira mulher que me aceitou com este fardo de pecados que carrego nas costas. As seis ou sete que vieram antes me largaram quase incontinenti quando sacaram a encrenca em que estavam entrando. Meu maior defeito é esse dó que tenho de mim mesmo. Não há praga pior que a autocomiseração.

Na adolescência, eu rezava pra que deus ou sei lá quem me dissolvesse em matéria pegajosa e me deixasse escorrer até o ralo mais próximo quando as meninas se aproximavam de mim. Cometi o pecado de nascer num mundo de gente que não dá bola pros próprios defeitos e me olha altaneira por ser incapaz de imitá-las. São seres cheios de quereres e direitos, esses. E vou perseverando como se tivesse esperança.

Só consegui dizer pra mim mesmo que Sílvia era linda e sedutora depois que ela me deixou. Fico pensando se tivesse dito antes teria adiantado alguma coisa. Tendo a crer que não. Porque não ia ter gana de ir muito além disso. Quando presencio a paparicagem que os casais trocam no dia a dia fico embasbacado. Sou absolutamente incapaz dum agrado ou mesmo um presentinho pra fazer média. Galanteio então nem pensar. Uma vez tentei, me senti terrivelmente ridículo. Sílvia ainda era apenas uma conhecida, desejável na neblina do mistério, me desafiando a trazê-la à luz. Fico pensando se não foi com aquela tentativa frustrada de sedução que a conquistei. Se foi, então ela não notou meu embaraço. Se foi, deus ou sei lá quem queira que não. Prefiro pensar que ela me deixou por minha inteligência e sensibilidade de poeta frustrado.

E por esta minha maldita incapacidade de viver na luz.

Depois dum tempo -- dois, três meses, um ano, dois, não sei -- ela começou a me olhar c'um ar severo que me lembrava minha tia Anésia quando passava as férias de julho na fazenda perto de Catanduva. Um dia fui pegar a garrafa de balla, a portinhola do barzinho estava trancada. Perguntei se ela tinha escondido a chave. Respondeu que sim e não se deu o trabalho de explicar. Então começaram minhas escapadelas pro buteco do Lacerda. O duro foi que tive de trocar o uísque e o stein pela vodka, pra não dar bandeira. E tinha de beber no balcão e engolir a vodka numa golfada só, longe da minha mesinha querida no meu cantinho encantado e sem o benefício dum livro de poesia ou mesmo a suprema benesse de poder apreciar o movimento na rua. Dias sombrios havia em que não lograva passar de cinco ou seis doses, tão estreita era a vigilância de Sílvia sobre minha pobre, minha desacorçoada pessoa.

Aí, incauto que sou, cometi o erro.

Estou em dúvida se devo confessar tudo em detalhes. Ainda mais num blog, diante dos olhos intrusos do mundo inteiro. Todo mundo usa blog pra despistar. Se mistificam, se poetizam, se enaltecem, se mascaram duma fantasia carnavalesco-grotesca. Eu, não. Procuro ser minimamente sincero. Maior desafio do mundo. Sou o sujeito mais honesto que conheço. Quem quiser comprovar, basta me ler com cuidado. Mas preciso medir minhas verdades. Amanhã podem -- e irão, estou certo -- usar minhas confidências contra mim. Qualquer um um tico mais prudente guardaria silêncio, agiria como se essas tragédias por que passo fossem normais. Mas, já disse, falta-me o senso de autopreservação. De todas as faltas que podem acometer um sujeito, esta é talvez a mais deletéria. Nasci sem senso de autopreservação como um feto atacado pela talidomida vem à luz de braços e pernas atrofiados. Qual um hipoestésico que vive se ferindo e se queimando por ser incapaz de sentir dor, deixo que me machuquem sem me dar conta. Até o dia do ferimento letal. Mas as feridas mais sangrentas são as que eu mesmo me inflijo.

A Soninha me chama no skype para o almoço. Arroz, feijão, linguiça grelhada e salada de agrião. Digo que dispenso a salada amarga. Como sempre, ela pede pra me conter nos aperitivos. Nos papos-cabeça com que tento conduzi-la pelos caminhos e descaminhos da literatura e da dor, aprendeu o que é "continência" e agora usa essa palavra horrorosa a torto e direito. Outra vez a culpa é minha. Não quero, não posso, não sei me conter. A única continência a que almejo é a urinária.

Disse que estava em dúvida se devia confessar. Desculpe. Saiu sem querer. Detesto quando se usa "confessar" como truque estilístico. Tudo que um escritor -- ou qualquer um que escreva, for that matter (alguém aí sabe traduzir "for that matter"? Se souber me mande um email -- bota no papel ou na internet é confissão. E escritor pleonástico é uma porcaria.

Escrever frivolidades é um pecado. Que devia ser punido à altura. Quando Soninha me disse que queria aprender a escrever, respondi que a primeira lição é, não seja frívola. Ela foi olhar no Aurélio e perguntou se era o mesmo que fútil. Então tive de lhe ensinar sobre frivolidade e futilidade. Expliquei um, dois, três dias e desisti. Frívolos não sabem o que é frivolidade tal como loucos não reconhecem a própria loucura e burros não admitem a própria burrice e insensatos não confessam a própria insensatez e sádicos e safados e sicofantas.

Mas para quem escreve pensar na autopreservação é defeito, não virtude. Por isso você não pode apelar para truques manjados e previsíveis. Poucas coisas são mais cansativas na escrita do que o dejavu. A confissão, como disse acima, já é esperada e anunciá-la -- e em geral com a solenidade dos que gostam de trombetear o que quer que seja de que gostem -- só serve pra embrulhar o estômago do coitado que está tentando ler. Quem busca revelar não deve se expor. Você precisa aprender a manipular suas caras, tentei mostrar a ela. Tal qual o animador de fantoches cria e manipula seus personagens. A manipulação é um mundo novo e difícil de ser dominado. A maioria de nós aprende naturalmente a ser manipulada mas não a manipular. Os que sabem são reverenciados e chamados de líderes. E tem alguns outros verbos que precisamos importar da esfera da mecânica, se queremos nos dar bem neste ofício, verbos que no nosso cotidiano nos limitamos a usar apenas para pequenas tarefas e finalidades modestas: Medir. Testar. Ativar. Impelir. Desativar. Abortar. Sacudir. Cortar. Juntar. Reparar. Escurecer. Clarear. Filtrar.

É engraçado como bloqueamos o que é simples no dia a dia para entrarmos num transe mentiroso em que assumimos os personagens que habitam nossa fantasia e desendamos a papaguear literatices empoladas e esnobes, desprezando nossas verdades para fingir ser o que não somos. Soninha, eu dizia sempre que possível, você tem de aprender a mostrar a cara que lhe interessa esconder. Se livrar das cartas na manga.

Uma semianalfabeta como a Soninha é a aluna ideal. Tem, com perdão do palavrão, conteúdo. Só que não sabe. E sabe menos ainda como externar. Passar a vida lendo não basta. Apenas ajuda. Escrever é mais do que aprender a usar as palavras. Você tem de parar de "viver" e começar a reter as infinitas impressões que seu cérebro experimenta por segundo sem registrar. O começo de tudo é esse sentimento de repulsa e fastio e náusea e contrariedade que o artista tem do mundo e que todos à sua volta tentam sufocar a qualquer preço com medo de gerar um escorpião.

A mim, tudo neste mundo me chateia, tudo nesta vida me seduz. Mistérios me fascinam, mistérios me entediam, mistérios me hipnotizam, mistérios me desencantam, mistérios não existem.

Por ora as fraquezas que posso alardear são essas. Ninguém poderá me acusar de que não dei motivos para ser ridicularizado. Incauto que sou.

Por ora é tudo (quase não abri a boca) que tenho a confessar.

A cara de Soninha aparece de novo no skype me chamando para o almoço. Vou tentar, vou tentar me conter nos aperitivos. Preciso cultivar a continência. Só a urinária não poderá me bastar.

Soninha está decidida a não me dar moleza. Espera, benzinho, vou engolir só mais 3. Prometo. (Quase duas da tarde. Ai que me torturam.)
Soninha é linda e sedutora e desconhecida, desejável na neblina do mistério, me desafiando a trazê-la à luz. Maldita incapacidade humana de lidar com que não está claro. Soninha é meu pesadelo em carne e osso. Surgiu em minha vida pra me vigiar. Ai que medo de assombração. Ai que dó de mim mesmo. Quero beber até ser capaz de me dissolver em matéria pegajosa e escorrer pelo ralo da água da chuva. Estou cansado de ter esperança.

Tão sedutora, tão linda ela é. Tudo à minha volta é uma impossibilidade.

Quem dera tivesse aprendido uns passes de capoeira.

Não quero mais caminhar, deixar pegadas para que outros perdidos me sigam. Não há por que ser categórico. Não tenho convicções porque não uso ponto de exclamação.