Microfonia

Sílvia foi embora e virei expectador das tardes e das manhãs e dos dias e do filme invisível que se desenrola nas paredes brancas da minha sala e dos romances perfeitos a que almejei na adolescência e dos personagens humanamente sobreumanos que pensava um dia poder ser, escutador dos sabiás desencantados que cantam a resignação de cantar seu cântico mortalmente monocórdio em meu quintal, dos boings que sobrevoam impávidos esta casa e todas as casas que neste instante abrigam alguém sem outra alternativa senão escutar boings, do ranger das cadeiras em que me sento aflito e do zunir das máquinas que produzem solas de sapatos na esquina e das tevês na vizinhança que distraem os robôs que nasceram para ser distraídos e dos estalidos dos pingos da chuva permanentemente retida em minhas nuvens e dos assobios dos ventos que me sopram em rodopios que não me deixam zonzo.

Ela se foi e tudo parou. Tudo parou como se nada houvesse sido móvel um dia. Tudo parou naquela imobilidade que meu professor de física certa vez me asseverou ser fisicamente impossível, rogando para que eu não perguntasse por quê. E, obediente como sempre fui, não perguntei.

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