Da nova série “Contos para crianças”, I


Ivone está morrendo de calor. O lenço de papel deslizado na testa sai encharcado. O bafo escaldante pede, suplica um dia na praia. Um pelo menos. E o apê no Guarujá tá tão lindinho com o novo piso frio cor de ouro-velho. Ai, ai, ai, que fazer? Próximo fim de semana, quem sabe.
Zezinho solta um gemidinho. Está dormindo no banco traseiro, o peralta. Feito um anjinho.
Ivone anda meio perturbada, pra dizer o mínimo. Na verdade tem noite que até perde o sono. Antes de ontem – Deus meu! – acordou na porta do elevador. Se fosse um daqueles prédios velhos do Centro, podia ter despencado no fosso.
No dia seguinte ficou pensando, será? Num gesto seco, a mão aberta tampou a boca, tentando proteger seus ouvidos. Se assustou com o próprio pensamento. Agora, dirigindo – ou melhor, tentando – no trânsito engarrafado da Joaquim Eugênio de Lima, nem se esforça mais. O pensamentinho solerte, a ideazinha indiscreta está pulsando lá dentro em algum lugar. Não, não pode se entregar. Melhor uma ova!
Zezinho geme de novo. Ainda bem que o ar-condicionado está funcionando direito. Já teve de trocar o termostato duas vezes.
Uma que ainda tem cinquenta e sete prestações do Honda Civic pra pagar. Não pode deixar mais essa nas costas do Jorge, coitado. Ele tem pela frente longuíssimas sessenta e quatro mensalidades do seu Camry. Bem, pra que assento aquecido, me diga? Olha só o calor. Trinta e sete à sombra! É, mas e no inverno. Você sabe que sou o bicho mais friorento do mundo. Passa do catorze, brruuu, ai que frio.
Não insistiu, não há quem dê jeito quando Jorge enfia uma ideia na cabeça. E o dinheiro é ele quem ganha, tem direito a um capricho. E no fundo tá certo, vai que amanhã tem um enfarte e o dinheiro guardado todinho no banco, pra quê?
Assim os pensamentos vão indo, leves, e voltando, pesados. Ivone morre de medo de admitir que uma luta está se travando bem ali dentro dela. Pior: longe de seu alcance, fora de seu controle.
Há dias vem se concentrando. Lamenta a paz perdida. Precisa voltar a ser o que era antes daquela maldita excursão sonambúlica.
O “sonambúlica” era por conta do doutor Varella. Cruz credo, palavrão feio! Até arrepia. O “excursão” fora gracinha do Jorge. Fedepê! Queria ver se fosse com ele, ia correndo pro spa do primo em Itapecerica. Duas semanas do bem-bom, comidinha de primeira, Manuela, esposa do Ernesto, o primo, diz que rola champanhe e... mulher! Fedepê! Ivone nunca tinha ligado pras escapadas do marido mas, depois do “excursão sonambúlica”, decidiu, vai ser tudo diferente agora. A partir de hoje a amélia dá lugar a Ivone, a guerreira!
Zezinho se vira. Ivone escuta um fiozinho de vento. São gases, tadinho. Abre meio vidro pra ventilar.
O termômetro na Paulista indica trinta e sete graus, meu Pai amado! Viram só o que dá não cuidar do planeta? Debochavam que era tudo fantasia dos cientistas, aí está. Manuela leu no New York Times que São Paulo vai sofrer uma onda de quarenta e quatro graus daqui a dois ou três anos. Que bom! ria enquanto contava. Vamos passar o verão no spa do Ern!
Uma vez leu em algum lugar que a raça humana nunca acabaria, que quando a vida na Terra estivesse prestes a chegar ao fim por causa das agressões do próprio ser humano, eles já teriam construído um foguete com suficiência e autonomia para chegar a outro planeta semelhante ao nosso e ali a humanidade renasceria. Ivone gostava de pensar nessa hipótese quando se via demasiado angustiada. Se reconfortava sabendo que a odisseia humana não terminaria num deserto de areia escorchante, mesmo sabendo que nem ela nem sua família estariam naquele foguete miraculoso, ó Deus pai...
Dá graças aos santos por aprendido a importância da religião, por ter tido a sabedoria de prezar a palavra da Igreja. Que seria de nós sem a família? Por um instante se alegra com a sensação de dever cumprido. Tudo bem, não nega, cometeu seus pecadilhos nos primeiros anos depois de casada. Ricardo... Depois teve o Wagner... Leonardo... Ah Léo, como era bom de... Bah, afasta uma ameaça de autorrecriminação. Se casou tão novinha. Se soubesse, tinha conhecido a vida antes. Foi pro altar praticamente virgem. Sua mãe morria de medo de tocar no assunto. De suas amigas, nenhuma era esclarecida o bastante pra lhe dar uma dicas. Ah Léo, se te encontrasse de novo...
Zezinho se revira no banco. Não, queridinho, não vá acordar. Inda falta meia-hora. Dorme quietinho.
Como sempre ocorre quando se põe a pensar na vida, lembra do curso de psicologia que não terminou. Jorge estava com pressa de se casar. Puxa vida, faltavam só dois anos. Não, talvez não mudasse muita coisa, mas pelo menos teria um diploma. A Clau bem que alertou, você vai se arrepender, mulher não pode ser dependente de marido, não repita a história da sua mãe.
Não deu outra. Depois de casada fez um curso de culinária italiana, virou a rainha da lasanha. E sabe preparar um filé de frango com gorgonzola que deixaria o papa com água na boca. Seis meses depois achou que Jorge parecia meio devagar na empresa de higienização industrial de que era dono, resolveu encarar um curso de espanhol com ênfase em informática, sempre disseram que o espanhol é a língua do futuro, então...
Então se deixou encantar pelo professor. Sim, Léo, o toureiro. Fizeram miséria dois, três meses. Jorge andava, e anda, sempre às voltas com seus negócios. Ah, que delícia de touradas. De repente o professor se engraçou por outra aluna, aquela vaquinha, Ivone ficou chupando o dedo, filho duma puta.
Zezinho acorda em estado de pré-convulsão, Ivone é obrigada a parar o carro numa das entradas de táxi da Paulista. Desce, abre a porta traseira, entra e toma o menino no colo.
Ele está recoberto de “confete”.
Confete é como ela e Jorge se acostumaram a chamar a doença do filho.
Está exausta de médicos. Deve ter se consultado com mais de cem nos últimos dois anos. Cada um deles afirmou nunca ter visto algo parecido. Não têm a mínima ideia do que se trata. Nenhum ousou especular sobre a origem do mal, muito menos sobre a possível cura. Não sabem nem mesmo como chamar aquela doença.
Seus cabelos caem assim que nascem, a pele escama, os olhos não param de lacrimejar.
O doutor Ruiz, de cujo consultório acabou de sair, deu um diagnóstico diferente. Nada promissor mas diferente mesmo assim.
Ivone quer acreditar. Talvez seja um caminho.
Que é que o senhor acha, doutor?
A vida, minha senhora.
Como assim, a vida, doutor?
O menino é alérgico à vida.
O senhor acha que tem cura...?

Thirty-Seventh of the Year

Me ensina tua alquimia, não sei como dizer.
Me ensina essa esmeralda em teu olho direito.
Doi?
Sei. Quando olhas
Sem disposição pra ensinar tua alquimia.
Se me ensinasses, deixava
Que me olhasses sob a luz do sol.
E me esquecia da boca seca de imaginar
Qual seria meu fim.

Diga-me
Diga-me, Guardiã
(Como é assertivo pronunciar Guardiã!
Por que esperei tanto? Sou tão menino)
Teu olho esquerdo também guarda um’esmeralda?
Ou guardará teu outro olho uma safira?

Diga-me
(Não me diga, pois já sei)
Quando olhas o mundo da forma como olhas o mundo
Estás deitada
Estás absorta
Estás sonhando

Como agora?

Thirty-Fifth of the Year

Boa noite
Já dei boa-noite hoje?
Sou um mentiroso.
Não há nada de bom nesta noite ou em qualquer outra.
Noites não podem ser boas. Ou más.
Noites não praticam a benemerência, a filantropia, a caridade.
Não dão esmola nem salvam os moribundos nos hospitais.
Noites, acima de tudo, não me fazem feliz.
Nem infeliz.
Pois não me aliviam a ânsia com que através desta perene janela olho a escuridão lá fora esperando que ela me console.

Neste 27 de janeiro de 2014
Às 20:58 desta
Segunda paralítica
Neste planeta encalhado
Preciso reciclar meus pensamentos
que não cabem na minha
Cabeça liquidificadora
Nesta noite de coração
vencido
exaurido
enojado
Dedos mecânicos
A digitar a esmo
Adjetivos combalidos
A me prender
A respiração antes de
PUF!
Explodir feito triste bolha de
Sabão

Já dei boa-noite hoje?
Não importa.

Thirty-Fourth of the Year

Hora de acordar?

Nunca é hora de acordar

Que faríamos acordados?

Viveríamos?

Thirty-Third of the Year

É teu o rosto que o cego vê quando esquece que é cego.
É tua a voz que o surdo escuta quando esquece que é surdo.
São tuas as mãos que o solitário toma quando esquece que é sozinho.
É minha a dor de não esquecer que não sou mais lembrado.

Thirty-Second of the Year

Todos os dias por volta das sete da manhã o mendigo chega e instala-se em seu ponto habitual diante da porta de aço. É uma antiga loja de tecidos na 25 de março chamada Rollenstein & Filhos. O dono é Jaime Rollenstein, foragido da justiça e provavelmente escondido em algum lugar na tríplice fronteira Brasil/Paraguai/Argentina. A loja faliu há uns quinze anos. A rua está cada dia mais movimentada.
Na calçada do outro lado, também na esquina, os olhos só manjando.
O mendigo tem aquele ar solene superior de todos os mendigos, evitando olhar os olhos como se não valesse a pena perder tempo com seres primários incapazes de apreender os desígnios divinos da mendicância. Vez ou outra dirige olhares vagamente debochados como se os outros ainda estivessem num estágio subdesenvolvido da evolução.
Passa as costas da mão no degrau para espantar a sujeira, depois senta-se e recosta o corpo cansado na porta. Abre a pasta — pasta que sempre traz à mão, às vezes também levando — e retira uma folha de papel dobrada em dois. Põe a pasta de lado, desdobra a folha de papel. Segurando-a aberta, estende o braço à frente.
Há duas semanas vem agindo exatamente da mesma forma, com os mesmos gestos e trejeitos. Desde que começou a ser seguido. Depois de retirar a folha da pasta e estendê-la à frente do rosto, permanece assim parado até a chegada do outro. Este parece procurar passar por cliente recebendo uma encomenda, sabe como é, se destacando duma hora para outra da turba de transeuntes como quem não quer nada.
O segundo se aproxima e estanca à frente do mendigo.
— Vai hoje, doutor? — por leitura labial é identificada a pergunta do mendigo, que continua segurando o papel com o braço estendido.
O outro apanha o papel, perscruta dissimulado os arredores, dobra e enfia no bolso da camisa. Antes, porém, os olhos, pelo binóculo, captam algo do conteúdo do papel. Meia dúzia de linhas. Ontem eram dez. Há dias que são mais, outros, menos. Caligrafia cuidadosa que denota esmero de quem as escreveu. O outro assente, tira umas notas do bolso das calças, entrega ao mendigo e se afasta.
— Deus lhe pague, doutor! — o pedinte agradece, talvez em voz rouca, fingindo gratidão genuína.
Na turba da 25 composta de fauna relativamente variada perambulam fregueses das lojas de armarinhos e bugigangas, gente sobretudo do interior e de outros estados, apanhadores de papel, office-boys, prostitutas, outras figuras cuja ocupação não é fácil distinguir de longe e, alguns, nem de perto. Muitos são chinas e brasiguaios.
Depois que o segundo homem se afasta, o mendigo permanece sentado no degrau da antiga loja de Rollenstein, braço sempre estendido para o alto em sinal de franqueza e acessibilidade. Assim como ontem e nos demais dias, esperam-se mais uns vinte minutos para ver se há outros desdobramentos de importância. Tudo indica que aquele outro sujeito é o único que se aproxima do mendigo para apanhar a folha de papel e depois pagar.
Em meio aos preparativos para partir algo chama atenção. (“É curioso como algo chama atenção em certos dias”, pensaria a cabeça depois.) Lançam os olhos um último olhar distraído na direção do pedinte e veem que ele está retirando uma nova folha de papel de sua pasta. Partida cancelada, claro, o corpo se postando novamente para prosseguir a vigia. Começam os olhos a girar para compreender o maior campo de visão possível, tentando cobrir tanto o pessoal que vem do parque dom Pedro quanto o que chega da Florêncio.
Como sempre sentadinho bonitinho em seu posto, a horas tantas um tumulto é deflagrado a alguns metros de distância. Sem recolher o braço que segura a folha, gira a cabeça e vê um grupo de pessoas brandindo as mãos e vociferando alvoroçadas. Há, perto, uns policiais fardados. Ele desvira a cabeça e se deixa distrair novamente pelo vai-e-vém dos bancários, carregadores de placas, ambulantes e punguistas no rio de gente que escorre pela rua.
— É este! — alguém berra nas proximidades.
Lhe arrancam a folha da mão. Sobressaltado, olha em volta. Está rodeado por um grupo de alvoroçados e policiais.
— É esse aí mesmo! — Um homem com expressão ultrajada lhe aponta o dedo em riste.
Aturdido, o mendigo reconhece no homem um de seus fregueses.
— É! — Uma mulher também se adianta com ar indignado, pinta de quem está de bem com a vida e bem de vida, trajando um vestido florido e leve por causa do calor. — Ele mesmo!
— Vamos por partes! — pede um dos peêmes, impondo autoridade. — Quem foi que viu?
— Nós! — Um rapaz de rosto retorcido de revolta dá um passo à frente.
— O que foi que o senhor viu?
— Vimos esse sem-vergonha tirar um livro de dentro daquela pasta ali no chão e copiar umas linhas nesse papel aí que o senhor tem na mão!
— Quando foi isso?
— Hoje cedo, às seis e quinze.
— Onde?
— No banheiro público da Praça da República — O rapaz aparentemente não dá importância à involuntária aliteração.
— Safado! — exclama a barnabé. As veias em sua testa denotam que está com ganas de saltar ao pescoço do pedinte.
— Desgraçado! — ajunta um gerente de lanchonete. — Me enganou todos esses anos.
— Por que o senhor seguiu o elemento? — o guarda pergunta ao rapaz que alegadamente havia testemunhado a ocorrência.
— Porque todos já estávamos desconfiados e hoje resolvemos dar um flagra no cafajeste!
— Com licença seu guarda! Podemos examinar o papel?
O desconhecido que se dirige ao policial é um homem de terno italiano e ar incomensuravelmente distinto.
— O senhor é quem?
 — Somos o crítico. — O sujeito crispa a boca e o queixo, tensionando as pálpebras e franzindo uma funda ruga no meio da testa em sinal de dignidade.
O peême lhe entrega a folha de papel.
O crítico retira um par de óculos do bolso lateral do paletó e instala-os sobre o nariz. Todos aguardam respeitosamente, os olhos olhando-o com expectativa, confiança, ar escandalizado e satisfação vingativa enquanto ele, sempre de cenho enrugado, meneando várias vezes a cabeça para cima, para baixo e para os lados, analisa a evidência do crime.
— Não há dúvida! — exclama triunfal ao findar a leitura. — É plágio. Plágio descarado!
O grupo em volta, ao qual já se adicionara a habitual turba de curiosos que vive a zanzar pelas ruas sem ter o que fazer na vida, emite uma série de impropérios, queixumes, lamentos, suspiros de gozo e fungadas de tédio. Alguns mais iracundos ameaçam partir para cima do famigerado.
O policial, sempre confiante em si e na autoridade que representa, põe a mão no cabo de revólver guardado no coldre à cintura e todos se calam prontamente.
— Pode algemar — ordena a um subordinado, indicando o meliante com a cabeça.
Sem entender lhufas nem bulhufas, o pedinte estende docilmente os braços para receber as algemas.
— Esta folha vai servir de prova. Fregueses lesados e crítico, favor me acompanhar — O policial dobra e enfia o papel no bolso e parte pela calçada à frente do grupo, provavelmente rumo ao distrito policial. Os demais policiais escoltam o mendigo, retendo-o pelos braços, protegendo-o da fúria da turba inconformada.

Thirty-First of the Year

Sô tá menstruada e quer transar de manhã, à tarde, de noite e de madrugada. Perdeu o resto da vergonha quando mencionei que era sinal de otimismo e crença na vida. Sei jogar meus leros quando vejo a coisa preta. Deu uma arrefecida, consegui me poupar da trepada da madruga. Acho que pouca coisa nesta vida é mais complicada que mulher em cio permanente com vocação pra macho. Mês passado ou retrasado a solução foi ir no chópin e comprar um anel de opala banhado a ouro, quase trezentos paus. Não esquenta, nenê! Agradar o companheiro ou a companheira é o dinheiro mais bem gasto do mundo. Na hora me perguntei se ela andava lendo o Fabrício Carpinejar, achei deveras improvável. Carpi é muito feio pruma mulher como Sô que sabe o que quer. Mulher que sabe o que quer quer machos alfa. Todo mundo quer, até eu. E Carpi precisa se decidir se quer ser poeta, escritor ou subcelebridade televisiva. Já bastava aquele poema-homenagem às vítimas da boate Kiss, “meu estado”. Bom, aí chegamos no Vera mas o Vera é caso à parte, escreve redondo e não sofre de pseudices apesar de eterno candidato a Jorge Amado do Sul.
Penso em Sô dia e noite e o que me distrai, assombra e atormenta é sua rusticidade, física, cultural e afetiva.
Foi o, acho, que encantou com relação a Sílvia, uma plutocrata assexuada que padece envergonhadamente duma agonia jamais assumida, não por razões justificáveis, “nobres”, como é o meu caso, mas porque, jesus, não pega bem.
Sei bem o que não é pegar bem. É o lema sob o qual nasci, cresci e gorei. E não vejo solução simples à vista. Uau, meu bem, de repente me deu imensurável pena de você. Não suporto comiseração por outros, se volta contra mim.
Sô deita na cama, abre as pernas, agarra minha barba, me puxa me forçando a lamber a buceta melecada de sangue e me lambuza a fuça, quero me olhar no espelho, não deixa, devo tar com a cara do charles manson, tocam a campainha.
Deve ser papai.
Não! abano a cabeça.
Enrola o lençol no corpo como faz a madonna naquele filme, vai ver, volta, é engano, fico cismado, engano a porra.
Deixa de nóia, bebê, puta merda, estamos em pleno verão, vê se curte um pouco. Vem cá, mete nessa bucetinha generosa matriz de todos os males e além.
Posso lamber, sugar noite fora se preciso for, já não vejo sentido em reproduzir. Tenho culpa se somos meros animais, inclusive na incapacidade de nos sabermos animais? Não ouso explicar tamanha profundidade a ela, obviamente. A animalidade não admite instâncias outras e é aí que me sinto ludibriado por esse controle que não me permite que o olhe de frente. É tudo incalculavelmente mais simples quando você vê novela ou escuta um roquinho.
Até uma época gostava de culpar papai por não ter me alertado que era um condenado a viver a vida. Ele fez o mesmo com o pai. Rio. Querendo chorar. Por que não posso chorar desbragadamente simplesmente?
A resposta é tão óbvia, que dá vergonha explicitar, não é?
A resposta é o cheiro de sangue fresco minando duma buceta a se refestelar no teu fucinho.
Ela me puxa, me lambe a cara me limpando a boca e a barba. Dorme bem, fofo. Sonha comigo. Se roncar, amanhã vou te botar aquele anel terapêutico que a anvisa proibiu.

Desmaio sonhando que nunca mais haverei de ler Jorge Amado, a culpa não é minha. 

Twenty-Ninth of the Year

Nos abraçamos, ele entra no carro, o carro começa a se afastar.
É um dia quente. O céu está azulado. Geringonças mecânicas e gentes mecânicas sobem e descem a rua.
A seiva que nos une vai se esticando à medida que a aumenta distânca entre nós.
Fico olhando o esticamento, até que me dou conta de mim e do mundo e tomo meu rumo.
Tento esquecer mas é impossível. A seiva esticando é minha consciência.
O carro em que ele está vai dobrando esquinas, vencendo avenidas, fazendo contornos e retornos. De minha parte, vou seguindo meu caminho na direção oposta, olhos no chão, dentes cerrados, ouvidos adormecidos.
E a seiva vai se esticando a envolver muros e postes e troncos de árvores e casas e postos de gasolina e posso ficar assim anos e é assim que estou há anos olhando e escutando.

Twenty-Eighth of the Year

Tarde de sexta. Juquinha volta da escola. Na calçada ao seu lado direito está Zinho. No esquerdo, Dinho.
Zinho é um bobalhão. Dinho também. Juquinha não conhece ninguém que não seja um bobalhão.
Juquinha está melacólico. Acabrunhado. Olha de soslaio para Zinho, esperando que ele também esteja. Decepcionado, lança uma zoiada para Dinho. Ninguém jamais fica acabrunhado. Só ele. Só ele.
Sabe – bem no fundinho, sabe. Existem umas milhares de razões para estar assim. Dessas milhares consegue “identificar” umas três. A segunda é esse nome miserável pelo que os outros o chamam. A primeira é não saber enumerar. Não adianta – nunca acerta as coisas na ordem.
Tirando algumas histórias de criança que sua mãe lhe contou quando era pequeno, nunca conheceu nenhum outro juquinha.
Há uma quarta razão: Ferônica, a princesinha do quinto ano por quem está apaixonado tresloucadamente. No recreio ela o chamou a um canto da quadra de futebol de salão:
— Facultates mechanicae omnes magistros linguae latinae!  disse.
 Huius temporis scriptorio facta emendavi ut spero  Juquinha respondeu aos cochichos para que a molecada em volta não escutasse.
 Nos complures et varios auctores?  Ferônica estranhou.
 Notionibus modo et constructionibus servatis...  Juquinha desbaratinou.
 Hoc est tomus felatio!  ela finalizou, rumando para o banheiro dos professores.
Depois desse diálogo Juquinha ficou ainda mais triste. Também sem saber por quê.
São esses tipos de obscuridades vagas e indistintas que passam pela chapa de aço-carbono que lhe reveste a cabeça quando dobram aquela estranha esquina da rua com outra rua... e dão com o Furgão.
Juquinha estremece. Zinho fica lívido. Dinho empalidece. O açougueiro que observa a cena coça o saco e entra em seu estabelecimento para atender uma freguesa que acaba de chegar.
O vidro do Furgão desce, um braço surge lá de dentro. A mão do braço faz um gesto. É para Zinho se aproximar. Zinho obedece. A porta traseira do Furgão se abre. Zinho entra. O Furgão se afasta guinchando os pneus. Juquinha fica olhando o furgão preto luzidio sumindo no fim da avenida, lindão de morrer. No fundo, no fundo está em dúvida se prefere ter um furgãozão desses ou uma mulher como a mãe de Ferônica quando crescer.
Agora vai ter de contar pra mãe do Zinho. Ela vai chorar. Que é que pode fazer? O furgão sempre pega crianças voltando da escola.

Twenty-Seventh of the Year

Taux indo depressa demais. Tenho essa cociguinha de que meus quase três leitores não tão me acompanhando direito. Caras, peço que prestem atenção, é absolutamente importante.
Só não me peçam trocadilhos ou joguinhos de palavras com as âncoras que lastreiam minha vida. Vocês sabem, não dou valor (muito) pra minha vida mas esse desprendimento não significa porra nenhuma when the saints come marchin' in.
Sô me pede pra acompanhar ela até o Extra. Precisa dumas coisinhas que o mercadinho do Dudu aqui na esquina não dispõe. O taxista dela nos leva, orgulhoso do carrão que o governo lhe franqueia quase de graça com isenção total de impostos. No problem. Cara, sou da geração woodstock, vi uma cacetada de pilares da sociedade se abalroarem na lama daquela fazenda a algumas dezenas de quilômetros de New York City. Eu mesmo sou um enlameado virtual.
O táxi para na esquina e entramos. Se não se diverte num supermercado, desista, você não nasceu pra perceber a comédia humana, não nasceu pra escrever, vá ver tevê. A ferocidade com que os fregueses pilotam seus carrinhos, o fascínio com que se deixam atrair pelos rótulos nas prateleiras, a insensatez com que se ferram uns aos outros pelos corredores, está tudo lá. Não precisamos de antropólogos da USP.
Sô me incumbe de pegar frutas, muitas, todas. A metade vai pro lixo, não tem quem come. Não, apaga o último período. O espírito do Fabrício Carpinejar desceu de novo. Ô praga.
Enquanto peso as frutas Sô pega um monte de laranjas pera e mistura com as lima. Se bota a um canto, cruza os braços e fica olhando.
As freguesas vão chegando com aquelas carrancas de águias que sabem o que esperar da vida. Quando saímos do mercado ela tira um sabonete lux do bolso e um salame que escondeu entre as calças e a barriga.
Quando entramos no carrão do taxista, ele diz que um sujeito chegando tinha parado o carro no meio da rua, esperando que outro saísse e desocupasse uma vaga. Um pouco mais adiante havia três ou quatro vagas que o sujeito não quis ver.
De repente sinto alguma simpatia pelo taxista da Sô. O cara é versado em Freud sem saber. Não somos todos?


Twenty-Sixth of the Year

"Fui!"
E ela se foi. Foi com ponto de exclamação e tudo. Gosh, quanta vontade de ir. O dia que ele for, quer ir assim.
Pelo horário já deve ter chegado. Não é de dar boa-viagem. Até pensou. Ela, espertinha que é, ia estranhar, tirar uma. Como quando a chamou de sedutora. Ainda não acredita que cometeu tal barbaridade. Quem mandou seduzir ele, tirar ele do seu sério destrambelhado?
Não sabe cumprir formalidades. Se assombra que as pessoas digam bom-dia, boa-tarde, beijos, abraço-na-patroa. Se assombra mas entende. Entende mas não aceita numa boa. Não sabe aceitar o que não é natural. O mundo dessa gente é ritualístico. Em certas situações, teatral. Os caras vivem de representar. É um acordo tácito — eu finjo pra você, você finge pra mim. Tudo bem, tem de ser assim, até certo ponto. Até uns anos atrás era radical — não tinha de ser assim porra nenhuma. Depois de muita cacetada e dor, aprendeu a engolir. Vem engolindo na marra, bebericando vinagre com suco de malagueta pra ajudar na digestão. E vai ficando tudo entalado aqui, formando um nó gigantesco e indeglutível.
Aceitar a teatralidade da vida "adulta" requer um tanto de corrupção. Os atores, naturalmente, não usam termo tão pesado. Preferem "flexibilidade", "tato", "diplomacia" e pleonasmos do gênero. Palavras duras não caem bem no teatro. Pelo menos não de espontânea vontade; vez ou outra o fingimento impõe ajustes e os carinhas esquecem a comédia, partem pro pau e desembucham todos os palavrões que tinham engolido até então. Se ninguém sair (muito) ferido depois do pega-pra-capá, se olham com cara de culpa, choramingam pedidos de perdão e arrependimento e prometem do fundo do coração que dali em diante tentarão levar a farsa às últimas consequências para que nunca mais se machuquem outra vez. Ninguém tá aqui pra se machucar. Viemos todos nos divertir, não viemos?
Até aqueles anos atrás mencionados acima, era um cara incorruptível. E se orgulhava de ser. Não é moleza. O preço é meio exorbitante. À medida que o tempo passa, fica mais e mais. Ainda é um pouco. Mas agora parece tudo tão complicado. Perdeu as referências. E, surprise! precisa ser amado. Tem de admitir: ninguém ama um cara averso ao psicodrama. Resistiu na solidão e na hostilidade quanto pôde. Quando desmoronou ("vem disfarçar os meus assombros, recolher os meus escombros...") teve de fazer psicanálise. Aí sobreviveu. Tem hora, lamenta. Sendo um romântico mórbido, se espicaça por ter fraquejado. Fantasia com os limites que podia ter rompido. Não teria obtido resultado prático nenhum, obviamente. Mas teria ao menos abreviado essa jornada besta que chamam vida. Os religiosos — que são os reis do teatro — não gostam de pensar que tudo acaba "aqui". Tem de ter um sentido nesta merda toda. Sempre que ouve essa asneira se pergunta por quê? Quem disse que tem de haver um sentido? Não havendo, forjam um. Tudo bem, não poderíamos tolerar este vale de lágrimas sem um. Mas é um sentido forjado all the same. Nada a ver com o que os bufões e seu dramalhão chamam de "verdade".
De repente vê uma placa na estrada e sacode a cabeça pra expulsar da mente a viagem imaginária. Precisa se ater à real.
Olha o GPS. Rota de carro para Brasília DF 200 km aprox. 2 horas 31 minutos.
Siga na direção noroeste na Av. Oitenta e Dois em direção à R. Dezoito. Não sabia que a cidade tem rua com nome de número. Em SP há algumas assim no interior. Cidades aritméticas, exatas demais pro seu gosto de anarquista atávico. Sua tia Ana morava na rua 4 número 18. Porra, não eram nem número primos. Uma vez, petizinho, saiu só em suas andanças, se perdeu, pra variar, foi parar na rua 16, nos confins da cidade, Araraquara. Sempre em busca da raiz quadrada. É um radical.
No km 173 o GPS diz que tem uma curva suave à direita na BR-080/BR-543, continue na BR-040, passe 1 rotatória.
Jura que queria, queria dizer alto o que lhe veio à mente quando leu esse curva suave. Merda, tudo pra ele é evocatório, a cabeça um inferno, nenhuma estrada reta, não pode sair dum lugar pra chegar a outro, se sai não chega, vaga, divaga, procura atalhos, não existem atalhos afora o suicídio, cria bitrifurcações, antigamente lia Spanca, cantava Chico, o namoradinho do Brasil, homem idealizado das mariazinhas incapazes de um cara de carne e osso, todo mundo vive num mundinho fictício e sujo menos os donos do poder, os que sabem que delirar de paixão pode ser suicídio, a imaginação é nossa mais perigosa condição, você tá pra lá de marrakesh quando devia estar bem aqui, depois da curva suave em que o carro resvala no acostamento e o braço dela roça o dele e pode sentir o perfume do  sabonete lux e do xampu que não sabe a marca e se olham e ela ri mas ele fica sério, é um cara sério, não ri por qualquer coisa, depois da curva pegue a rampa de acesso à esquerda, entre na primeira viela de terra batida, pare o carro, desligue o motor, recoste no banco e feche os olhos.

Twenty-Fifth of the Year

Bate o portão da rua
Começa a se afastar
Ergue os olhos
Vê seu rosto estampado
Num outdoor do outro
Lado da rua

Procura-se
Diz o cartaz
Se você conhece ou
Viu este sujeito, ligue
Para o número tal

Anota o número
Mentalmente. Ele
Que se procura
Há anos, talvez possa
Enfim sossegar

Quem sabe descansar.

Ainda se dessem uma
Recompensa, a piada
estaria completa e

Então poderia sorrir.