"Fui!"
E ela se foi. Foi com ponto de exclamação
e tudo. Gosh, quanta vontade de ir. O dia que ele for, quer ir assim.
Pelo horário já deve ter chegado. Não é
de dar boa-viagem. Até pensou. Ela, espertinha que é, ia estranhar, tirar uma.
Como quando a chamou de sedutora. Ainda não acredita que cometeu tal
barbaridade. Quem mandou seduzir ele, tirar ele do seu sério destrambelhado?
Não sabe cumprir formalidades. Se
assombra que as pessoas digam bom-dia, boa-tarde, beijos, abraço-na-patroa. Se
assombra mas entende. Entende mas não aceita numa boa. Não sabe aceitar o que
não é natural. O mundo dessa gente é ritualístico. Em certas situações,
teatral. Os caras vivem de representar. É um acordo tácito — eu finjo pra você,
você finge pra mim. Tudo bem, tem de ser assim, até certo ponto. Até uns anos
atrás era radical — não tinha de ser assim porra nenhuma. Depois de muita
cacetada e dor, aprendeu a engolir. Vem engolindo na marra, bebericando vinagre
com suco de malagueta pra ajudar na digestão. E vai ficando tudo entalado aqui,
formando um nó gigantesco e indeglutível.
Aceitar a teatralidade da vida
"adulta" requer um tanto de corrupção. Os atores, naturalmente, não
usam termo tão pesado. Preferem "flexibilidade", "tato",
"diplomacia" e pleonasmos do gênero. Palavras duras não caem bem no
teatro. Pelo menos não de espontânea vontade; vez ou outra o fingimento impõe
ajustes e os carinhas esquecem a comédia, partem pro pau e desembucham todos os
palavrões que tinham engolido até então. Se ninguém sair (muito) ferido depois
do pega-pra-capá, se olham com cara de culpa, choramingam pedidos de perdão e
arrependimento e prometem do fundo do coração que dali em diante tentarão levar
a farsa às últimas consequências para que nunca mais se machuquem outra vez.
Ninguém tá aqui pra se machucar. Viemos todos nos divertir, não viemos?
Até aqueles anos atrás mencionados acima,
era um cara incorruptível. E se orgulhava de ser. Não é moleza. O preço é meio
exorbitante. À medida que o tempo passa, fica mais e mais. Ainda é um pouco.
Mas agora parece tudo tão complicado. Perdeu as referências. E, surprise!
precisa ser amado. Tem de admitir: ninguém ama um cara averso ao psicodrama.
Resistiu na solidão e na hostilidade quanto pôde. Quando desmoronou ("vem
disfarçar os meus assombros, recolher os meus escombros...") teve de fazer
psicanálise. Aí sobreviveu. Tem hora, lamenta. Sendo um romântico mórbido, se
espicaça por ter fraquejado. Fantasia com os limites que podia ter rompido. Não
teria obtido resultado prático nenhum, obviamente. Mas teria ao menos abreviado
essa jornada besta que chamam vida. Os religiosos — que são os reis do teatro —
não gostam de pensar que tudo acaba "aqui". Tem de ter um sentido
nesta merda toda. Sempre que ouve essa asneira se pergunta por quê? Quem disse
que tem de haver um sentido? Não havendo, forjam um. Tudo bem, não poderíamos
tolerar este vale de lágrimas sem um. Mas é um sentido forjado all the same.
Nada a ver com o que os bufões e seu dramalhão chamam de "verdade".
De repente vê uma placa na estrada e
sacode a cabeça pra expulsar da mente a viagem imaginária. Precisa se ater à
real.
Olha o GPS. Rota de carro para Brasília
DF 200 km aprox. 2 horas 31 minutos.
Siga na direção noroeste na Av. Oitenta e
Dois em direção à R. Dezoito. Não sabia que a cidade tem rua com nome de
número. Em SP há algumas assim no interior. Cidades aritméticas, exatas demais
pro seu gosto de anarquista atávico. Sua tia Ana morava na rua 4 número 18.
Porra, não eram nem número primos. Uma vez, petizinho, saiu só em suas
andanças, se perdeu, pra variar, foi parar na rua 16, nos confins da cidade,
Araraquara. Sempre em busca da raiz quadrada. É um radical.
No km 173 o GPS diz que tem uma curva
suave à direita na BR-080/BR-543, continue na BR-040, passe 1 rotatória.
Jura que queria, queria dizer alto o que
lhe veio à mente quando leu esse curva suave. Merda, tudo pra ele é evocatório,
a cabeça um inferno, nenhuma estrada reta, não pode sair dum lugar pra chegar a
outro, se sai não chega, vaga, divaga, procura atalhos, não existem atalhos
afora o suicídio, cria bitrifurcações, antigamente lia Spanca, cantava Chico, o
namoradinho do Brasil, homem idealizado das mariazinhas incapazes de um cara de
carne e osso, todo mundo vive num mundinho fictício e sujo menos os donos do
poder, os que sabem que delirar de paixão pode ser suicídio, a imaginação é
nossa mais perigosa condição, você tá pra lá de marrakesh quando devia estar
bem aqui, depois da curva suave em que o carro resvala no acostamento e o braço
dela roça o dele e pode sentir o perfume do
sabonete lux e do xampu que não sabe a marca e se olham e ela ri mas ele
fica sério, é um cara sério, não ri por qualquer coisa, depois da curva pegue a
rampa de acesso à esquerda, entre na primeira viela de terra batida, pare o
carro, desligue o motor, recoste no banco e feche os olhos.
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