Canção do desparabéns

Desparabéns a você

( ? CUSPE ! )

Nesta data ( ? )

Que data é mesmo ?

Você tem direito a três chutes

Muitas felicidades

Muitas

Sim

Muitos anos de quê ?

Vida ?


Blogando 0017


Nasce a manhã. É tenra. E perfumada. Um pêssego branco-amarelado de pelugem quase invisível. Resisto a lhe dar uma dentada. Pode estar envenenado.
Nasce a manhã sob sacudidelas. Sacudidelas dos ganidos dos vizinhos. Danou-se. Deixa os delírios oníricos pra lá.
Então, a intolerável conscientização do corpo. "Não tenho um corpo, sou um corpo." Christopher Hitchens. Insight dos enfermos atentos. Rezo mentalmente para que no futuro descubram um jeito de vivermos sem a necessidade desta pequena usina de doenças, fomes, desejos e dejetos. Provavelmente a primeira raça simbolista do universo.
O corpo que sou está afogueado de náusea. Os vermes e as bactérias que habitam em mim vão me tostando para a janta. Peralá, gente. São umas dez horas até a noitinha. E mamãe não estará aqui, muito menos sua sopa de feijão com couve às seis da tarde com papai sugando cada colherada para produzir aqueles frofrozinhos no biquinho abrochado e prudente. Agora vejo tudo. O assado para o prato principal de domingo sempre fui eu.
Almoço de domingo, disse e já repito, frango regado a malzbier para os adultos e a guaraná para as crianças. Quando lhe dava na telha, papai me deixava batizar o guaraná com um dedo da cerveja preta. E eu já notava quão promissoras podiam ser as sendas etílicas.
O papo gastronômico me faz lembrar do estômago subindo pelo esôfago e culminando no azedo no fundo da garganta, forrando a língua e as bochechas. O vômito vem sendo cada dia mais constante. A ideia do vômito. Lá se vão décadas a caçar, devorar, mastigar, destrinchar e engolir. Carne, gordura e osso demais para os meus dentes frágeis.
Os ganidos na casa vizinha amainam um tico e posso me virar. Uma camada espessa de suor reveste minha pele. A banha em que venho sendo marinado. Sim, agora percebo. O grande prato do almoço do domingo sou eu.
Podia terminar aqui, com a fome relativamente sob controle. Mas tenho fome mesmo quando estou sem fome.
Então, lá vamos nós de novo.
A fronha do travesseiro e os lençóis estão úmidos. Em alguns pontos, molhados. Me sinto embebido e ainda faltam tantas horas para a janta.
Em algum lugar nas redondezas um fedelho de três anos reclama. Reclama de quê? De ter nascido.
Rezo para que no futuro nascer seja uma opção. E não mais como funciona hoje, quando o único remédio à vida é voltar atrás. 
Precisamos duma prerrogativa em que possamos chegar a um ponto de poder discernir a possibilidade de desistir sem termos já provado as delícias e a tragédia de ser quem somos e as vastas potencialidades da vida que podemos levar.
Ao lado da cama, Zezeí suspira e bufa. Desconfio que não esteja tão indiferente quanto parece aos meus delírios  oníricos metafísicos. Pai, me ensina a ser feroz.
O guri de três anos que berra algures sou eu. Okay, não precisava ter dito. Mas quis dizer porque sabia que seria gostoso dizer. Percebeu a retrorreferida prerrogativa? Posso também iniciar um berreiro bem aqui, bem agora, a que Zezeí se juntaria com seus afinados uivos de serzinho dionisíaco. Em cinco minutos atrairíamos bombeiros, ambulâncias, viaturas da PM, 
Bombeiros, ambulâncias, viaturas da PM. Eis um belo titulo para um romance. Mais um na minha lista de títulos belos para romances. Se nada mudar, logo farei um romance apenas com essa lista.
Afluem os carros, camionetes e caminhões com suas sirenes ligadas e seus giroflexes a girar e seus pneus a guinchar quase tão alto quanto meu coro matinal com Zezeí. Cercam a casa. Em meio ao escarcéu dos vizinhos, uma voz se impõe. É dona Angelina, líder das vicissitudes humanas no pedaço. Capto partes de palavras e trechos de frases: "meio certo", "esquisito", "não se dá", "esquisitão", "ninguém sabe direito".
Ante este último delírio matutino, uma última borrifada de suor. Será suficiente para me juntar à enxurrada de verão que logo se formará na calçada aqui em frente? Quase empanturrado.
Zezeí bufa, agora mais categórica. Está acordada sabe-se lá há quantas horas. Mas só se levanta quando me vê em pé.
Em pé.


Nat King Cole

O ator nascido para
não ter personagem

O cantor nascido
para ser mudo

Sou

Fim

Que mundo era aquele
Que homem era aquele
Capaz de chamar 
uma mulher de
doce?

Título

Preciso ser direto agora.
Agora preciso ser claro.
Estou sob um título
Morto.

Vim falar da morte
Vivo.
Proferirei palavras sem mexer
Os lábios
Ventríloco mudo.

Me desonerem, peço,
da minha responsabilidade
de abrir o coração.

Não encostem em mim!
peço.
Estou adverbiamente frio.
Substantivamente livre.

Tão compadecido da raça que foi minha
Sem nunca ter me querido
Sem nunca minha ter sido.

Mas não os frustarei.
Eis a resposta que todos esperam
esta vastíssima espera para saber:

O maior gozo é esquecer.

Nada desopressora revolta


Caí vítima da maldição de Lasch. A de que os tatibitates tecnológicos 1) não dão conta da nossa "alma", 2) nos afastam desesperadoramente dela e 3) fazem de nós pobres alienados indefesos do mal oculto que guardamos aqui dentro.
Por isso Lasch é um bom primeiro passo para quem se aventurar a encarar Heidegger.
Dou uma guglada, caio num site qualquer, bato o olho, o autor tasca que Cultura do narcisismo está datado, lá vou eu de novo buscar um tico de conforto para este meu fatigado olhar.
Outra noite sem sono, dou uma guinada, resolvo rever Caro Francis.
Sofrível como documentário. Não abre cinco por cento de Francis. Ele mesmo reclamava, claro, entre outros, das limitações do cinema. Noventa por cento da humanidade se prostrar ante uma tela e Sérgio Augusto dedicar a existência a lançar encômios sobre os ombros à sétima arte não a eleva muito acima da porcaria que de fato é. Francis tem tudo a ver com literatura. Diante dela, literatura, seu jornalismo, seu polemismo, não restam lá muito relevantes. Mais que escritor, foi seu próprio grande personagem. Mais que criador, desenvolveu uma vida que considerava minimamente bastante para ele. No fim, e o que interessa, é que teve de ser o que foi para poder escrever. Mais ou menos como Vinícius teve de atravessar a existência de pileque para amar. E escrever. E Hemingway e Robert Lowell. Raros são os daltons.
Mas o documentário merece ser assistido pela meninada que perdeu a chance de o ler duas ou três vezes por semana na Folha e depois no Estadão. O maior cronista brasileiro de todos os tempos. Period.
Paragraph.
Para a molecada que se interesse, aqui vai uma amostra grátis: “Escrever é a maior satisfação que um autor pode ter, um diálogo íntimo com um leitor desconhecido. É o que sinto em passagens de Joyce, Dostoiévski e outros favoritos, a impressão de que eles escreveram aquilo exclusivamente para mim.”
Seguidas porretadas dessa veemência/potência/clarividência bem ali no jornal, ao lado de notícias sobre Sarney, Ulysses Guimarães, Lula. Logo cedinho, durante ou não o café da manhã à discrição do freguês. Era ser salvo do inferno sob a operação dum milagre, por milagre, insuspeito. Entrava planando nos céus do pensamento livre, e puro, reconfortado por saber que havia inteligência, das fartas, neste mundo de boçais e primitivos que não permitem que nos esqueçamos obsessivamente de que faltam dez mil anos para o fim da barbárie. E pelos céus prosseguia flanando, esquecido dos homens sujos, até atingir a última linha da avalanche, embora igualmente infernal, igualmente celestial. Um palavrório entuchado de pensamentos e impressões a se atropelar, se comendo pelas pernas, tentando chegar primeiro que os outros e as outras à glândula gustativa do leitor. Técnica a se exercitar quase obscena em sua desenvoltura bem diante dos meus olhos, a se consumar magistral num deboche cordial ao leitor desprevenido. Acima de tudo, o estilo como fim em si, a imperiosidade de marcar o texto com o ferro das próprias percepções, que, especialíssimas, não podem simplesmente verter-se para a banalidade do mundo qual batatas derramadas dum saco de feira a se rasgar subitamente. A marca estilística não encontrável alhures, o drible maneiro, e para quem quisesse, imperceptível, à poesia fácil, a esquiva desconcertante do esperado, e até aguardado, a cisma do leitor de repente curioso em descobrir de que tipo de destilaria metafísica emanava o feitiço. Até a renovada descoberta, a cada leitura, de que nas mãos dum mágico a língua encanta.
O documentário traz uma pitada de cada Francis frustrante para os que o admiram. Mas parece estar tudo lá. Dos gatos ao cuidadoso cultivador de amizades ao processo da Petrobras à morte besta e infame, precipitada por um bando de burocratas. Depoimentos emocionados de Sonia Nolasco, encômios insuficientes dos vários amigos. As sempre sacais perorações de  Sérgio Augusto querendo elevar o cinema aos pés da literatura. E as indefectíveis tentativas de análises sobre o Francis romancista reduzido a incapaz de construir personagens deveras literários. Essa arenga já corria pelas bocas quando ele ainda era vivo e deve ser desmentida. Irritante no documentário que sejam dois de seus amigos, Luiz Schwarcz e Daniel Piza, os mais insistentes em registrar a falha inexistente, a imperecível mania do brasileiro em achar que ou o escritor atinge a esfera divina dum Shakeaspeare ou passa a ser digno da lata de lixo. Piza faz uma tentativa de explicação com a ingenuidade que lhe era peculiar. Schwarcz, petulante, conta que deu muitos conselhos a Francis que Francis acolheu. Pfiu.
O tira-gosto das imagens atiçou a fome. Queria mais. E melhor. O grosso se foca na tevê, quase desinteressante. Mas foi a oportunidade que tive de conhecer o então badalado Manhatan Connection. Ficamos constrangidos pelos outros três participantes. É visível o esforço que vira e mexe Francis se impõe de pisar no freio para não achatar os colegas de mesa à insignificância. Foi aqui que fiquei conhecendo Nolasco e pude saber como e quanto se amavam.
Faltou a literatura, ou seja, quase tudo.
Nestes tempos nauseabundos de corruptos ordinários explícitos e assumidos, de exaltação a celebridades nulas e glorificação dos bandidos, faltou choramingar pela falta que um Francis faz. Hei de fazê-lo sempre que me vir compelido a. Este deve ser o terceiro panegírico que lhe rendo. Não há mal nenhum em chorar pelos valentes que se foram. Melhor que chorar por causa dos bananas que sobraram.
E pensar que Nelson Motta, anos ao lado de Francis em NY, não conseguiu aprender que um escritor que preste não pode ir a público clamando que tá todo mundo cansado do mensalão.
Se algum escritor tirou das nuvens a existência-fantasia dos endinheirados, botando-a ao alcance de nós caipiras enclausurados em nossa casamata feita de casca de ovo, foi ele, sim. Não apenas, logicamente. Mas Francis descortinou num só rompante o mundo dos ricaços aos nossos olhos perplexos. Antes éramos inconscientes da abismal diferença entre nossa vidinha devotada ao trabalho e o glamur (ugh) permanente dessa gente para quem grana não é problema, problema filosófico talvez maior que o suicídio de Camus. Eis o muro intransponível. Você pode encontrar produto equivalente em Proust, com a diferença concebível.
E foi ele quem nos aproximou dos geniozinhos literários que fazem parte da raça contra a vontade. Mastigando para nós os caraços que de outra forma nos entalariam na garganta. Com ele aprendi a conhecer e a compreender pelo menos duas dúzias dos grandes. Como diz alguém no documentário, isso é generosidade. Você nunca imaginaria, não é? Para a galerinha empoleirada na frente da fila das esmolas governamentais, bonzinho é Lula. Que dá dez real a cada caraminguá esfomeado e dez bilhões a um Eike Batista. De quem Francis também se tornaria amigo do peito, se vivo, o tipo de incongruência que não tem importância neste caso.
Acabou deixando o gostinho azedo e macabro de mais uma constatação, entre tantas infindáveis, de que se há um adjetivo apropriado para a definir a vida, este é “injusta”.
Os últimos momentos do documentário falam dos últimos momentos de Francis, o processo movido por diretores da Petrobrás contra ele por, num dos Manhatan Connection, ter acusado a súcia de manter cem milhões de verdinhas na Suíça. De pronto foi interpelado pelo mediador do programa sobre provas. O mediador parecia ser provido duma anteninha vibrantemente sensível a potenciais enrascadas. De fato. Francis não as tinha. Reclamou com Nolasco de o programa ser gravado às dez da manhã, horário em que estava sempre deprimido, e suscetível a disparar temeridades. E, sendo um inveterado cabotino, a receita desandou bem diante da câmara. Os abutres da estatal souberam como atingi-lo em seu ponto mais fraco, a náusea que lhe causavam as vicissitudes comezinhas, de que padecemos juntos.
Logo adveio a dor no ombro, diagnosticada como bursite por seu médico em diagnóstico flagrante e absurdamente furado. O documentário mostra que tanto Nolasco quanto vários amigos pediram que fosse ver outro médico, debalde. Morria de medo de médico, eu, idem. Temos essa inelutável desconfiança desses sujeitos que cospem sua infalibilidade em nossas fuças a cada consulta, sendo os felizes portadores de vasta e amedrontadora ignorância. São os hiperespecialistas que desconhecem absolutamente tudo que não diga respeito à sua hiperespecialidade. Tenho uma luz-espia que se põe a piscar sempre que me aproximo mais de dois metros de um. E um alarme sonoro tipo caminhão de bombeiro que dispara a estrebuchar quando o sabe-tudo desanda a discursar suas pílulas de sabedoria envenenadas de impostura.
Segundo Nolasco, Francis começou a se queixar da dor no ombro na sexta-feira e veio a morrer na segunda seguinte. Quatro dias enfartando. Segundo Nolasco, reclamando de náusea e do vômito que não conseguia pôr fora. No ínterim, o médico insistindo com a bursite. Quem leu os artigos de Francis sabe que ele gastou muito teclado denunciando a mediocriade intelectual e a frouxidão profissional desses pajés de jaleco.
Imperdível Nolasco contando da paixão de Francis por Wagner. Que botava pra tocar no último volume, chacoalhando as paredes do apartamento e gerando queixumes da vizinhança. Wagner é o compositor dos artistas que não suportam as barreiras entre a arte e a vida que os medíocres teimam em tentar nos impor.
De repente o documentário era curtinho e acabou.
Repasso as centenas de devedês, nenhum reassistível. Exausto ao talo, não dá para ler. Sento diante do computador, abro um arquivo qualquer dos inúmeros que comecei e parei na metade.
Mas vamos pras cabeças.
Domingo à noite. Noite de domingo. Jesus meu pai pai meu, quanto já sofri numa noite dessas. E sofri aquele sofrimento injusto, de cabo a rabo me perguntando, oh Lord, que foi que fiz afinal?
Domingo à noite, papai diante da tevê, mamãe ao lado de papai, a mana aos pés de ambos, este vosso little blogger em estado infantil sonhando estar alhures ures ures onde o Tejo deságua no rio dos Meninos me vendo a boiar na tona desta minha água isenta de superfície.
Vejam que ainda estou relativamente são. A essa altura papai ainda não tinha se levantado do sofá para me recolher em seus braços de capinador dessas ervas daninhas que nunca desistem de confrontar o valoroso, o ufanista pé de café.
Não ter pra onde se voltar! Gosh, a fonte de todos os suicídios da roça.
Ter aonde se voltar e mesmo assim não se voltar porque se voltar não é uma opção.
Você tem um dia que é o dia do seu equilíbrio e você não pode deixá-lo passar.
Um. Um dia só.
Um em que terá de dar dois ou três goles na Malzbier semicálida ao mesmo tempo em que mantém os olhinhos de criança na folhinha de parede.
A infinita liberdade de ser o que sou.
Quero ver Chico Buarque acorrentado numa cela nos confins de Cuba por ter ousado uma cançãozinha crítica ao regime.
Estou cercado de vários Sabáticos do Estadão.
Maria Lúcia Pallares-Burke resgata a trajetória do alemão Rüdiger Bilden.
Quem lê essas coisas?
Quem as escreve?
Todos precisamos comer, sim, está certo.
Não, não há como ser cem por cento íntegro. E uma pequena corrupçãozinha no dia a dia não há de fazer mal. Esperavam que na facul eu tolerasse gente que passa a vida remedando resgate. Fiz de conta, alguns meses. Os resgatistas venceram. Sempre vencem.
Haverá serviço mais indigente que tentar retomar um texto abandonado? E não importa o tempo do abandono. Pode ter sido há cinco anos, pode ter sido ontem à noite. Na maioria dos casos, impossível fisgar outra vez o monstrinho abissal que se esgueira gaiato sob as águas turvas da indolência herdada do primeiro vagabundo que preferiu deitar num galho para desfrutar o néctar duma dúzia de pêssegos a persistir na perseguição ao tatu.
Tenho aqui este texto abortado em 1998, christ. Em todos, o ânimo evidente com a visita da inspiração, a alegria de poder criar por minguados minutos que sejam. De repente o corte do vazio, o vazio do corte. Na maioria, impossível descobrir por quê. Estava indo tão bem, puta merda. Até minha mastodôntica preguiça acordar. Nas horas mais impróprias. Lá se foi o interesse no assunto para não voltar nunca mais. Vou reunindo umas gotas de disposição, releio várias vezes, procuro me reimbuir, mergulho, me acorrento lá no fundo de respiração presa, permito que a pressão me leve de volta à tona, imirjo, interiores me dão claustrofobia, os meus mais ainda, me pelo de medo do que possa enxergar aqui dentro, de me afogar em meu próprio vômito.
Quantas pecinhas interminadas, intermináveis, perolazinhas esmeradas, promissoras e decepcionantes.
Muitos textos, muitos já perdi. Assim por perder. Sem imaginar onde ou quando. Da maioria lembro apenas que eram fantásticos. Minha salvação. Provas cabais de que sou um escritor, mesmo que sem público, ainda que sem livro publicado.
Um dos que mais me arrependo foi aquele escrito há uns seis anos. Sobre a língua alemã. Devia ter umas três páginas. Bom tamanho. Nem ligeiro nem profuso. Do texto não sobrou lembrança, exceto que resplandecia de vigor e veemência. O fogo queimava insentido. Acabara de descobrir a alma da língua naquele instante e estava inchado de orgulho e alegria. Conseguira ultrapassar as óbvias tiradas sobre a pobreza do português ante o alemão, conseguira me abster de apelar ao hoje clichê de Heidegger de que não se filosofa plenamente senão no idioma que era o dele. Desliguei o computador e fui dormir satisfeito como poucas vezes houve. Não lembrei do texto senão três ou quatro dias depois. A lembrança me deixou feliz. Abri meu arquivo geral em que guardo tudo que escrevo para eventual revisão final. Sumiu. Comecei a abrir outros arquivos e nada. Horas depois entreguei os pontos.
Nessas horas só me resta ouvir Bach comendo sopa de grão-de-bico e me imaginando sob LSD, tentando me conformar que minha existência jamais terá um auge, que devo gastar meu tempo com o Aurélio, a única leitura digna dum cara feito eu.





Blogando 0016


Não sou eu quem vem postando neste blog nos últimos tempos e quero me desculpar.

(Não, não é o caso legítimo de se desculpar, mas nunca é demais pedir desculpas quando você confessa não ser quem realmente é.)
((Não, não estou confessando ser quem realmente não sou. Ou não ser quem realmente sou. Tampouco ter omitido que não sou quem sou. Ou que sou quem não sou.))
(((Na verdade (uggggghhhh!), não estou confessando porra nenhuma. Detesto confissões. Odeio confidentes. Sobretudo os confidentes espontâneos, a quem ninguém está pedindo que confesse o que quer que seja. Ah deus maldito, por que me fizeste nascer nesta era dos homens-bananas e seus fantásticos sentimentozinhos de percevejos? Okay, okay, não sobreviveria dois minutos como carregador de escudo dum sir qualquer nas Cruzadas, confesso. Não, não estou tentando fazer graça, jesus! Como me exaspera esta época que nos exige ser simpáticos a cada palavra a cada segundo a cada ciclo a cada bocejo. God! God! God!)))
Sim, Pessoa já disse tudo sobre não-ser depois de Shakespeare ter dito tudo sobre não-ser 400 anos antes.
Porra! Qualquer poeta digno do nome já disse tudo e mais um pouco sobre não-ser, qualquer poeta digno do nome já disse tudo e mais um pouco sobre tudo que é caro a cada um de nós, qualquer poeta digno do nome já firmou a jurisprudência das nossas infinitas fraquezas, ohhhh!!!! quão fracas, quão infinitas, quão pusilânime é cada um de nós em sua pusilanimidade de inseto, jesus!
Mas nem Pessoa, Shakespeare nem qualquer outro dos meus santos poetas poderá me substituir agora em meu papel de admitir — é isso mesmo, caralho! admito, admito, admito (e admito (e admito (e admito))) — que, ó senhor, não, não sou, não, não sou eu quem vem postando neste blog nos últimos tempos!
E já não sei se quero me desculpar.
Já não sei nada.
E quero me desculpar.
Não sei nada.
E não vou me desculpar.

Estrepitosa manhã desta segunda, 11 de novembro

Ah! essas ondas que não arrebentam.

Vêm vindo, vêm se estufando nefastas vêm
Bruxuleando grávidas dos entes misteriosos,
Virulentos que populam esse meu seco mar
Incerto.

Vão indo, vão a ninar em seu medonho colo
O boneco adiposo que herdou as profundezas,
E dos reconfortantes abismos saudoso, vai
Indo a rosnar murmúrios desconhecidos dos
Seus próprios ouvidos.

Ah! arrebentem duma vez, benditas ondas.
Ocupem meus olhos do teu estardalhaço
Devastador.
Liberem incontinenti os glutões à espreita
Em seu ventre
Para que se entreguem enfim à devora.

Eis que o Fantoche Flutuador se exauriu e
Não pode mais boiar na esperança de que
As afiadas presas do mito o exterminem a
Mordiscadas.

E quando desabarem poderei seguir o
Canto que haverá de emanar por detrás
Desta insolúvel manhã.



Protege de mosquitos, pernilongos, moscas, baratas e formigas mas porém


Se quero me encarar no espelho ou sem, sou um covarde e minhas palavras fogem assustadas como se minha consciência acendesse a luz na alta madrugada dum domingo.
Foi assim ontem, foi assim antes de ontem, foi assim toda a semana e assim tem sido há sei lá quantos meses.
Exaurido de tanta covardia, hoje decidi me enfrentar. Por isso você haverá de perceber que ainda vocifero tremulamente. E meus braços riscam o ar não com vigor e sim com a tibieza dos inseguros. E meus pés pousam no chão irresolutos do seu lugar. E é assim que eu ou você poderíamos prosseguir a encher a linguiça desta fatídica noite de domingo até as paredes se derreterem num mingau viscoso em que naufragaria e se afogaria a raça que repudio desde o nascimento.
Mas porém.
Junto as mãos numa prece — é esta minha primeira vez e portanto rogo tua misericórdia.
Não repara nas palavras. Aquelas a que estou acostumado desde criança não me servem agora, como está tão pateticamente patente. Feito um supercomputador capaz de um zilhão de cálculos por nanossegundo, meu cérebro desclassifica e refaz e subtrai e trai e monta e craveja ávido por meu velho sossego de senhor de mim mas a dissertação — quão horrorosamente óbvio está — não haverá de resistir ao escrutínio rigoroso da professora.
(Dona Eva, preciso duma pausa e suplico. Meu copo, digo, minha caneta-tinteiro secou. É apenas um pecadilho dos sôfregos.)
— Laranjeira!
A classe emudece. Todos voltam os olhares e cada um volta o olhar para a fessora.
Ninguém responde.
— Laranjeira! Você era minha última esperança!
Dona Isaltina está com os olhões de coruja pagã pregados na minha cara.
A classe gira suas cabecinhas para o meu lado.
Por causa do caroço de manga-rosa entuchado no meu esôfago, renuncio a negar. Mas porém.
Logo fazer que não com minha cabeçorra assarapantada.
Então a fessora se dá conta. (Embora se furte a vestir a carapuça.)
— Vaccari!
Engulo o caroço da manga-rosa. Sem saliva. Sem afeto.
— Que é que você está pensando? Hein? Diga! Responda!
Minha longa toda vidinha se reduz à sensação do intenso rubor no rosto. Não me cabe sequer o direito de espremer as pálpebras.
— Você teve a coragem de fazer uma dissertação sobre COVARDIA?
E dá-lhe pontos de interrogação que poderiam assorear o oceano Pacífico.
As cabecinhas estão apontadas na minha direção. Algumas se permitem um risinho de deboche nervoso.
Estou com a boca qualhada de uísque. Os nervos das pernas e dos braços tensos. O saco retesado. Fiz vasectomia à toa.
Preciso sair. Dar uma volta no quarteirão. Se tiver forças, duas. Repisar meus passos. Rever e me reconfortar com minhas xilogravuras murais que arrasto atrás de mim desde então. Atentar à reverberação do luar em cada folha nos parcos jardins dos prédios. As plantas são minhas amiguinhas.

Novo velho

Se tudo me seduz
Solta
Quero afundar

O detetive cego e surdo


Começo
Não. Início.
Deixaram pegadas?
Por que não deixariam?
As pegadas levam aonde?
Aonde levariam?
Silêncio, por favor. Preciso me concentrar.
Ouço rastros.
Serão os mesmos?
Sempre são.
Uns se distanciam, uns se aproximam.
Vejo. Sim. Vejo que o autor ama.
Quem?
Bela pergunta.
Sim. Quem?
Basta amar alguém.
Silêncio, por favor.
Ele volta.
Ele avança.
Se recusando o presente.
Poderá ser qualquer um nesta sala?
Por que não?
Não sei. Parecem tão inamáveis.
Sim. Parecem. E são.
Que grotesca coisa de se dizer.
Se a tivesse dito aos meus doze anos.
A vítima não aprendeu a enxergar desde então.
Nem a escutar.
Cego e surdo e sentimental. Pobre de mim.

Acidentes


Quem diria
Que teus dias consistiriam de entradas
Que tuas noites se fariam de partidas
Tua vida, de saídas e chegadas

Quem diria que serias ora interno, ora externo
Ser de contínuas transições
Agora a evoluir
Noutro instante a dilatar
Até teus inexoráveis encolhimentos

Que serias um homem por dentro
Outro por fora

Fazendo do ranger da porta
O fundo musical para teu 
Grande mise-en-scène de
Coçar a cabeça
E estalar os lábios
Antes de resmungar 
Quem diria...

Come, come into my arms

Pai
pai
pai
pai
pai!
pai!
pai!
pai!
pai!pai!
pai!pai!pai!
pai!pai!pai!pai!
pai!pai!pai!pai!pai!
pai!
pai
pai
pa
p

A porta


Não posso ficar na sala. Estou só de passagem. Saio rumo à cozinha. Preciso de algo que deve estar ali. Ao passar pelo corredor, como já fizera milhões de vezes, dou com uma porta. Que faz aqui esta porta entre a sala e a cozinha? Não tinha me dado conta. Ou quem sabe tinha mas não quisera prestar atenção. Pensando bem, me lembro de certas manhãs, ainda sonolento, em que me passou vagamente pela idéia, “o que esta porta faz aqui? Aonde dará? Que estranho, aparecer assim de repente...”
Mas também não dou muita bola. Você já pensou quantas coisas estranhas passam por sua cabeça sem que queira se dar conta? Milhares por hora, milhões por dia. Detalhezinhos a que não vale a pena atinar mesmo. Ou então grandes, imensas aflições, medos, paúras e paixões em que você não se atreve a mexer para não acordá-los. Monstrinhos e monstrões que vicejam aí dentro, como se você fosse uma incubadora alienada.
Não, não se perturbe. Estamos apenas falando deles – não com eles. Que durmam. Existem para isso. Você sabe que estão lá, em algum lugar do escuro, sossegados, inócuos. Talvez até mesmo sonhando com você... E sabe que tudo estará bem enquanto estiverem assim.
Mas tem dia que faço tanto barulho, que não sei como não acordam! Talvez apenas finjam.
Sinto um frio no estômago.
Passei noventa e nove por cento da minha vida avançando, e retrocedendo, pé ante pé, tomando todo cuidado para não pisar num graveto, numa folha seca, desviando dos abajures para não derrubá-los, evitando tropeçar num chinelo. Nem respirar direito respirei. Quantas vezes segurei o diafragma para não acordá-los. Estômago apertado. Punhos crispados. Cabisbaixo. Angustiado de aflição de despertar os desgraçados. Noventa e nove por cento da minha vida assim.
E esse tempo todo eles acordados!
Não pode ser. Estou viajando, como tão deliciosamente diz a moçada hoje em dia. Viajando sem destino. Às vezes acontece. Começo a pensar, e penso que estou pensando, mas logo vejo que não, estou apenas viajando. Mais que só às vezes: freqüentemente. Não! Já que estou me confessando, vou desembuchar duma vez: sempre! Não penso; deliro, tergiverso, flutuo, afundo, flúo, devaneio, desatino.
Há quanto tempo não viajo de verdade. Quem dera poder, deixá-los trancados em casa. Mas também não posso. Tenho minhas coisas para cuidar. Minhas coisas. O que seria de mim sem elas? O modo como arrumo os livros na estante, como alinho os sapatos na prateleira, como deixo displiscentemente as almofadas cair no sofá dando a impressão de que estão desarrumadas (uma desarrumação, mas, que faz parte dum todo). Estas são minhas coisas. Orquestradas. Como viver sem elas?
Minha orquestra de músicos silenciosos. À espera. O que me importa é que estejam aqui. Tocarão o dia que eu morrer. Sim, é para isso que existem. Assim como eles. E se eu sair em viagem, quem ficará aqui para escutá-los? E a casa, meu pai! Quem ouvirá os discretos ruídos cotidianos da minha casa? O ranger das portas, o tiritar das venezianas, o estalar da mobília, o ecoar nas paredes, o gorjear dos pássaros lá fora, o roncar dos carros na rua. Quem estará aqui para ouvi-los? De que serve um ruído se ninguém o escuta?
Não foi esta a razão que levou os dinossauros à extinção, afinal?
E esta porta. Que fazer com ela?
Virgem umbral. Jamais penetrado. Será meu fatídico hímen? Por que logo uma porta? Bem que podia ser um desses trastes que guardo no armário. Um que fosse menos sugestivo, não se prestasse a representações, não desse margem a tantas metáforas quanto a porcaria duma porta. Que faço, afinal?
Mesmo sem abri-la, mesmo sem jamais tê-la cruzado, sei o que oculta.
O outro lado.
Se decidir abri-la, provavelmente darei com uma escada. Uma escada descendente, pois todos os meus caminhos levam para baixo. Apenas os primeiros degraus estarão à vista, claro; o restante certamente se perderá na penumbra lá no fundo.
Devo descer? Ainda estou empunhando a maçaneta, representando a mim mesmo o Grande Indeciso no eterno, torturante auto-teatro que estou inexoravelmente condenado a encenar. Vou? não vou?, me pergunto frivolamente, sabendo que minha decisão já estará tomada e nada me fará desistir.
Nunca desisto. Não por qualquer razão mais nobre nem por um senso de persistência. Nunca desisto porque sou curioso demais. E aprendi que só os patéticos desistem. Todos os caminhos que tomei em minha vida segui até o fim, só para ver aonde dariam. Mesmo quando sabia que estava no caminho errado. Agora não será diferente. Ainda mais em se tratando duma porta. Com tantas possibilidades.
Dou um passo, auscultando a escuridão lá embaixo.
Pena que não esteja sendo filmado. Haverá uma câmara oculta neste negrume?
Dou o segundo passo e cruzo. Definitivamente. Já não há volta. Daqui não retorno, haja o que houver.
Ponho-me a descer. Cauteloso a princípio, logo me acho familiarizado com o lugar e meus movimentos adquirem mais desenvoltura.
Aos poucos meus olhos se habituam ao escuro – e não consigo evitar pensar na facilidade com que sempre me habituo ao escuro – e começo enxergar algumas formas.
Embora ainda indistintas e incolores.
Prossigo por dez, quinze minutos.
Como foi possível existir tão longa escada dentro da minha casa sem que soubesse?
Durante todo o tempo estou ciente e cioso das minhas velhas amarras internas, os nós, apertos e embaraços que me protegem desde que existo.
Vou escutando nada além dos meus próprios passos, até que começo a ouvir algo ao longe. Parece um vozerio. Um vozerio abafado. Que decresce à medida que avanço. E quanto mais avanço, mais distintas ficam as vozes e mais baixo falam.
Como se não quisessem se fazer ouvir.
De repente o som das vozes cessa e o farfalhar de roupas e ruídos indistintos de movimentos discretos se realça no silêncio. Não estou só.
Não estou só.
Curiosamente, sinto um certo conforto e ao mesmo tempo espanto por não ter me aterrorizado. Pela primeira vez, penso, não quero saber o porquê de estar onde estou ou de fazer o que faço. Pela primeira vez não quero duvidar, especular, negar. Estou em casa e isso basta. Mesmo que nesse... nesse...
Pelo farfalhar de roupas percebo que estou rodeado de... pessoas? Entes? Fantasmas?
– Bem-vindo! – uma voz exclama em algum lugar na escuridão.
Não me assusta a repentina pergunta. E, com calma suficiente para examinar em mim mesmo como meus sentidos estão reagindo, verifico que até agora estou bem.
Estou bem.
– Obrigado pela acolhida!
– Estamos com presença de espírito hoje!
– Sou sempre bem-educado. Sobretudo com desconhecidos.
– Não sou exatamente desconhecido...
– Nos conhecemos de onde?
– Exatamente daqui.
– Nunca estive neste lugar antes.
– Esteve, sim. Vem aqui todos os dias.
– O senhor deve estar me confundindo...
– Como sabe que sou homem?
– Bem, a voz...
– Posso muito bem ser mulher.
– Nunca se sabe.
– Hm, estamos bem-humorados hoje.
– Sempre estou. Mesmo nestas circunstâncias.
– Não parecia muito, lá em cima.
– Lá em cima onde?
– No alto da escada.
– Ah, estamos lendo pensamentos hoje!
– Aliás, parecia deveras... digamos... acabrunhado enquanto descia a escada.
– Sim. Sempre acontece quando fico sozinho com meus pensamentos.
– Já esperava essa sua clássica resposta de quem não conhece sequer o próprio rumo.
– Ninguém conhece o próprio rumo.
– Mais uma clássica afirmação dum desorientado. Os membros da maioria sabem aonde vão.
– Pensam quê.
– No fundo, você os inveja. Queria saber em que direção está indo, ter noção dos pontos cardeais, saber onde é o leste, o norte, de que lado nasce o Sol.
– Bah! Essa é a clássica idéia que fazem os pragmáticos a respeito dos que não o são. Você é que está confuso por eu não ter indagado que lugar é este nem quem é você.
–Reles sofisma.
– Gente como você acha que sabe tudo. Pior: que precisa saber tudo.
– Clássica resposta de quem não sabe nada!
– Clássico isso, clássico aquilo. Confunde dar sempre o mesmo padrão de resposta às dúvidas com saber. Isso é apenas ser cego. Aliás, ser cego cai bem para quem vive na escuridão.
– Que escuridão?
– Ora, esta escuridão! Que outra seria?
– Mas aqui não há escuridão alguma. Ser incapaz de enxergar não significa que o mundo é escuro.
– Bah! Nada mais que frases de efeito. Aplicar um belo bordão a cada incógnita que lhe surge pela frente não quer dizer saber.
– Estou vendo que o comprade não resiste a muita pressão.
– A ironia é a arma dos mentirosos.
– Vejo também que a diplomacia não é um dos seus fortes.
– Que mais poderia esperar de quem vive no mundo das sombras? Com licença.
Dizendo isso, retomo resolutamente minha caminhada à frente, mesmo sem poder enxergar coisa alguma.
De repente, a escuridão desaparece e me vejo na cozinha. Abro a geladeira e apanho uma latinha gelada. Que bom ver tudo às claras de novo. Embora o que eu queria de verdade era pegar a fôrma de gelo e me empanturrar de uísque. Mas o médico proibiu, o miserável.

Mas o elemento evadiu-se numa fuga de Bach

O gari varre a guia coberta de poeira acumulada, lixo e cocô de cachorro
para não pensar na vida

O vigia do prédio joga um game no celular, ergue a cabeça para olhar o trânsito, responde ao bom-dia de alguém
para não pensar na vida

Os peões da obra de trinta andares, enquanto carregam, puxam, empurram, martelam e serram, vão trocando berros entre si
para não pensar na vida

O motorista de táxi passa olhando para a frente, mudando a estação do rádio, resmungando do trânsito
para não pensar na vida

Vou caminhando pela calçada
alheio 
ao mundo
a mim
a mim
ao mundo
alheio

Blogando 0015


Hoje cedo dois pontos. Estou entrando querendo sair da padaria do Lá travessão. Não se preocupe três pontinhos.
Sô ainda não acordou. O balcão está a cargo de dona Jussara, que outro dia me pediu para chamá-la só de Ju e fiz que não registrei. Mais uma a fim deste titubeante, precavido blogueiro, não. E, jesus, tem o Lá ponto. Que me fura sem toscarejar se eu crescer os olhos pra cima da sua digníssima consorte.
Não que Ju, i.e., dona Jussara seja de menoscabar dois pontos. Tem a bundinha mais arredondada do universo, que Sô herdou sem tirar nem... pôr. E digo bundinha não por ser piquitita e sim pela mais perfeita concepção e relação projeto X finalidade. Tamanho ideal próprio para as funções previstas por deus. 
Deix'eu pregar os olhos em outra coisa. Acho que o Lá está me sacando aperreado, já não basta a filha minha?
Vodka, stein, rum, dreher, balla12...? Dona Jussara sorri esperando, c'uma força irresistível de quinze mil newtons arrastando meus olhos para o risco entre as mamas nutritivas e mimosas domadas cheias de si sobre as semicopas do sutiã azulzinho-mar emolduradas pelo decote petulante, razões de viver do Lá. Pombas, DJ nunca tinha me magnetizado tanto assim, que foi que houve?
As opções ofertadas assim todas juntas me desalinha os sentidos, digo, o pensamento por uns instantes. Fico escolhendo mentalmente.
Todas.
O sorrisinho de dona Jussara se inaugura num escancaramento, expondo seus dentões desconjuntados de cabra silvestre mastigadora de coraçõeszitos de franguinhos carentes de carícias.
Sério?
Nunca experimentei, dona Jussara. Acho que vale a pena tentar.
Num copo de cerveja?
Façamos de conta que é um aperitivo normal.
Ela bota um copinho de pinga no balcão e vai preparando a efusão, digo, infusão em dosesinhas imparciais se colorindo num marrom amarelado pastel.
Dou um golinho, fecho os olhos. A muralha da comporta arrebenta e um córrego-do-ipiranga deságua mundo abaixo, arrastando num segundo a habitual leva de mesas de cozinha, a cadeira que era de vovô, o velho jogo de sofá da Santa Catarina e outras tralhas. Desta vez carrega até meu querido Chevrolet vermelho que pintei de azul e escondi e nunca mais achei.
Reabro os olhos. Dona Jussara foi para as mesas servir pingado com pão na chapa. Meu anjo-demônio está em pé ao meu lado.
Me dê um nome, exige.
Já disse que não.
Então um sexo.
Hm-hm.
Por que me maltrata assim?
Porque gosto de judiar.
Dou o segundo golinho. O licor buliçoso do rio-amazonas esconde a sujeira do mundo visível.
Só desta vez.
Vou pensar.
Pensou?
Um arrebatamento. No mínimo dez minutos.
Não pense.
?
Não pensou?
Entorno o copinho dentro dos lábios.
Ele(a) sumiu. A(o) filha da puta.
Me deixando com minha febre dois pontos.