Blogando 0017


Nasce a manhã. É tenra. E perfumada. Um pêssego branco-amarelado de pelugem quase invisível. Resisto a lhe dar uma dentada. Pode estar envenenado.
Nasce a manhã sob sacudidelas. Sacudidelas dos ganidos dos vizinhos. Danou-se. Deixa os delírios oníricos pra lá.
Então, a intolerável conscientização do corpo. "Não tenho um corpo, sou um corpo." Christopher Hitchens. Insight dos enfermos atentos. Rezo mentalmente para que no futuro descubram um jeito de vivermos sem a necessidade desta pequena usina de doenças, fomes, desejos e dejetos. Provavelmente a primeira raça simbolista do universo.
O corpo que sou está afogueado de náusea. Os vermes e as bactérias que habitam em mim vão me tostando para a janta. Peralá, gente. São umas dez horas até a noitinha. E mamãe não estará aqui, muito menos sua sopa de feijão com couve às seis da tarde com papai sugando cada colherada para produzir aqueles frofrozinhos no biquinho abrochado e prudente. Agora vejo tudo. O assado para o prato principal de domingo sempre fui eu.
Almoço de domingo, disse e já repito, frango regado a malzbier para os adultos e a guaraná para as crianças. Quando lhe dava na telha, papai me deixava batizar o guaraná com um dedo da cerveja preta. E eu já notava quão promissoras podiam ser as sendas etílicas.
O papo gastronômico me faz lembrar do estômago subindo pelo esôfago e culminando no azedo no fundo da garganta, forrando a língua e as bochechas. O vômito vem sendo cada dia mais constante. A ideia do vômito. Lá se vão décadas a caçar, devorar, mastigar, destrinchar e engolir. Carne, gordura e osso demais para os meus dentes frágeis.
Os ganidos na casa vizinha amainam um tico e posso me virar. Uma camada espessa de suor reveste minha pele. A banha em que venho sendo marinado. Sim, agora percebo. O grande prato do almoço do domingo sou eu.
Podia terminar aqui, com a fome relativamente sob controle. Mas tenho fome mesmo quando estou sem fome.
Então, lá vamos nós de novo.
A fronha do travesseiro e os lençóis estão úmidos. Em alguns pontos, molhados. Me sinto embebido e ainda faltam tantas horas para a janta.
Em algum lugar nas redondezas um fedelho de três anos reclama. Reclama de quê? De ter nascido.
Rezo para que no futuro nascer seja uma opção. E não mais como funciona hoje, quando o único remédio à vida é voltar atrás. 
Precisamos duma prerrogativa em que possamos chegar a um ponto de poder discernir a possibilidade de desistir sem termos já provado as delícias e a tragédia de ser quem somos e as vastas potencialidades da vida que podemos levar.
Ao lado da cama, Zezeí suspira e bufa. Desconfio que não esteja tão indiferente quanto parece aos meus delírios  oníricos metafísicos. Pai, me ensina a ser feroz.
O guri de três anos que berra algures sou eu. Okay, não precisava ter dito. Mas quis dizer porque sabia que seria gostoso dizer. Percebeu a retrorreferida prerrogativa? Posso também iniciar um berreiro bem aqui, bem agora, a que Zezeí se juntaria com seus afinados uivos de serzinho dionisíaco. Em cinco minutos atrairíamos bombeiros, ambulâncias, viaturas da PM, 
Bombeiros, ambulâncias, viaturas da PM. Eis um belo titulo para um romance. Mais um na minha lista de títulos belos para romances. Se nada mudar, logo farei um romance apenas com essa lista.
Afluem os carros, camionetes e caminhões com suas sirenes ligadas e seus giroflexes a girar e seus pneus a guinchar quase tão alto quanto meu coro matinal com Zezeí. Cercam a casa. Em meio ao escarcéu dos vizinhos, uma voz se impõe. É dona Angelina, líder das vicissitudes humanas no pedaço. Capto partes de palavras e trechos de frases: "meio certo", "esquisito", "não se dá", "esquisitão", "ninguém sabe direito".
Ante este último delírio matutino, uma última borrifada de suor. Será suficiente para me juntar à enxurrada de verão que logo se formará na calçada aqui em frente? Quase empanturrado.
Zezeí bufa, agora mais categórica. Está acordada sabe-se lá há quantas horas. Mas só se levanta quando me vê em pé.
Em pé.


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