Sou mais foda que você

Melhor não medir forças.
Aceite meu conselho.
Tudo bem, sou fudidaço, mas sofro de comiseração por terceiros.
Cães abandonados me dão pena.
Gente à deriva na internet me dá pena.
Uma porrada de coisa me dá pena.
Sou foda mesmo assim.
Não, daqui não tenho como provar.
Fodaço que sou, vai por mim.
Veja lá no meu perfil como estou sem máscara. Só um sujeito dos bem fudidos é capaz de se apresentar assim de cara limpa.
E veja meus textículos. São foda ou não são?
Me exponho em cada um deles. Tem fracote por aí que já me chamou de maluco. Inclusive meu ex-analista. Nem a psicanálise tá preparada pra tanta fodice.
Não estou mentindo não.
Fiz 20 anos de terapia.
Com o dr. G., o mais fudidão dos analistas.
Numa sessão até dei um esculacho nele.
Com o cara você larga mão de faz-de-conta besta.
Não tem enrolação.
Com ele não tem onda.
Comigo não tem bronca.
Ao contrário de muitos por aí, não escrevo pra enrolar.
Nunca.
Não nasci pra carretel.
Se tenho algo a dizer, digo na lata.
E olha que estou só no começo. Ainda não tive o tempo de que preciso. E sou tão foda, que provavelmente nunca terei.
É tanta safadeza, é tanto defeito, é tanto pecado, tanto pensamento inconfessável pra contar.
Precisaria dum milênio de vida.
Precisaria da gana de escrever uma bíblia.
E, porra, sou dostoievskiano.
Quer mais?
Responde honestamente.
Não vá pensando que é simples fricote literário. Detesto misancene.
Te peguei, hein?
Você se amarra numa simulação, eu sei.
Não sirvo pra fazer farol. Nunca servi. Nunca fiz.
A internet e os que escrevem futilidades na internet e os que dedicam a vida a brincar na internet me dão asco.
O paraíso, se existisse, seria incalculavelmente menos aborrecido que este rebanho virtual de personas idealizadas.
Eu sou foda. Mais do que você.

Olhar de Alberto pela janela às oito e quarenta e sete

Àquela que hoje cedo me pediu um instantâneo

Os peões da obra em frente descarregam sacos de areia dum caminhão enquanto o corretor de imóveis anda de cima abaixo na calçada falando ao celular.
Rex, o cachorro pertencente a um dos peões, se encarapita num dos sacos de areia na carroceria do caminhão e lá de cima observa o trânsito das pessoas e dos carros.
Um casal caminha a partir da esquina de baixo rumo à outra esquina onde fica a padaria; o homem alguns passos à frente, a mulher atrás segurando dois cães numa guia vermelha ou cor de laranja. Os cães são de raças distintas.
Diante do edifício de alto padrão, um segurança ergue o walkie-talkie até a orelha e cochicha algo enquanto um automóvel embica na entrada da garagem e aguarda a abertura do portão.
O skatista duas ou três casas vizinhas à esquerda se recosta na parede e fuma e observa o trânsito dos carros e das pessoas subindo e descendo a rua.
Mais adiante, o sujeito que abriu uma oficina e/ou revenda de eletrodomésticos estaciona a camionete em frente à revenda e/ou oficina, desce, vai até a caçamba do veículo, apanha uma caixa de papelão e espera a passagem dum senhor grisalho que caminha ao lado dum cão sem guia.
Na calçada do edifício ao lado do primeiro um carrinho carregado de sacos pretos de lixo é empurrado por um faxineiro e puxado por outro em direção a um suporte feito de barras de ferro destinado a armazenar sacos de lixo enquanto o caminhão da coleta não passa.
Na casa do outro lado da rua uma senhora de idade avançada abre o portão de alumínio, sai, volta-se para trancar o cadeado e volta-se para a rua e para e olha uma vez para a esquerda e uma vez para a direita, se decidindo que rumo tomar.
Alguns metros no sentido oposto três frentistas do posto de gasolina estão postados próximos à calçadas, olhando o movimento na avenida. Dois cruzam os braços e o terceiro segura um pano de estopa numa das mãos. Um carro entra e se detém diante duma das bombas de combustível e o frentista da estopa sai em sua direção. Em frente ao posto, ainda na avenida, um caminhão tenta entrar à esquerda na contramão e vários veículos que vêm atrás disparam suas buzinas. Cada qual num diapasão diferente.
O sujeito que mora algumas casas do outro lado abre o portão da garagem de sua casa e torna desaparecer dentro da garagem e quando reaparece está trazendo sua moto até a sarjeta. Repousa a moto no pedal de descanso, volta, tranca o portão, volta para a moto, monta, dá a partida e sai rumo ao posto e para diante duma bomba de combustível, sendo atendido por um dos frentistas que estavam de braços cruzados.  
Oito e quarenta e oito.
No posto, o motoqueiro dá nova partida, sai e desce a avenida enquanto o outro veículo que abastecia a sobe. Os frentistas reassumem suas posições originais, mais ou menos nos mesmos pontos em que estavam, apenas um cruzando os braços desta vez. O caminhão completa sua manobra de entrada na contramão e alguns veículos que tinham parado atrás arrancam guinchando os pneus, cada qual num diapasão, acompanhado duma carreira de palavrões proferidos no ar. A senhora que saiu de casa toma sua decisão e caminha para a esquerda com seus passinhos curtos e trôpegos. Ao lado de sua casa, os dois faxineiros terminam de depositar os sacos de lixo na lixeira. Na outra calçada, o senhor grisalho que caminha ao lado dum cão sem guia passa e o sujeito que abriu uma oficina e/ou revenda de eletrodomésticos entra no estabelecimento. O skatista comprime a bituca do cigarro entre o polegar e o dedo médio duma das mãos e, c'um piparote, lança a bituca no meio da rua. Caminha até a guia, solta seu skate no asfalto e sai deslizando rua abaixo. Diante do edifício de alto padrão, o segurança baixa o walkie-talkie e observa enquanto o automóvel que tinha embicado na entrada da garagem atravessa o portão. O casal constituído dum homem a caminhar alguns passos à frente da mulher que segura dois cães numa guia vermelha ou cor de laranja chega à esquina e para, aguardando um brecha no trânsito para cruzar a avenida. Na obra em frente, um peão enxota Rex, que salta do alto do caminhão carregado de sacos de areia para a calçada, onde se deita novamente e prossegue em sua rotina de observar o trânsito das pessoas e dos carros. Os peões estão quase terminando de descarregar os sacos de areia. O corretor de imóveis encerra sua conversa ao celular e enfia o aparelho no bolso direito das calças.




Rindo, chorando sem querer saber por quê

Deu chilique, é?
Quer mandar no mundo?
Não acha que é ainda é cedo?
Dois segundos de vida.
Deixa de traquinagens, moleque.
Mandar no mundo, só o Lula.
O Collor.
O Hitler.
Não pode ir esquentando a moringa assim, não senhor.
Traquinagens têm hora.
E essa volúpia aí...
Tá com pressa de quê?
Pode esquecer.
Não vai tomar meu lugar, não senhor.
Nem chega e já vem pensando que os outro é lixo.
Sô lixo não nego.
Arrogância comigo não, chefe.
Daqui uma semana na certa vai querer que eu pense qual um encarcerado.
Só pode ser piada.
Pra mim é a pá de cal neste mundo que já estava moribundo bundo bundo.
Moleque sai assim do nada já se impondo.
Não seja autoritário, cara.
Não seja babaca.
Diga pelo menos oi.
Antes de dizer adeus.


Doces selvagens

A violência emana dos risonhos lindos bosques.
Enquanto a brava gente pasta de rabos entre as pernas pela pátria salve salve.
A promover das violências, a mais nefasta.
Surda: devora sem ruídos incômodos.
Democrática: ceifa sem pedir passaporte ou RG.
Os filhos que não fogem à luta se trucidam maciamente — nem pensam em estampar no auriverde pendão suas carrancas de ódio.
Uns, assassinos pela própria natureza. Outros, estupradores da mãe gentil.
Em breve todos os conflitos nacionais se diluirão sob a catarse nos campos. O delírio nem precisa substituir a realidade.
O matador realiza seu desejo de infância. Desde o esplêndido berço sentiu na pele que não teria escolha.
O matado realiza o desejo da mídia e dos consumidores da mídia.
E a família pela enésima vez lembra que nem tudo se resume a estatísticas.
(É questão do lado em que você está do balcão.)
A maioria, porém, ainda não se convenceu.
Nunca haverá de.
A história da humanidade não ensina que há males que vêm pra bem?
Lamentável mas antes ele do que eu.
Melhor na rua de cima do que nesta.
O povo heroico é meio dado a loteria.
Dos duzentos milhões, quase meia dúzia ficou rico. Destes, metade foi trucidado por um não afortunado no lance dos dados.
A Globo martela incessantemente em nossos ouvidos que o futebol é o esporte pátrio. Se até Nelson Rodrigues acreditou, que mais se poderia esperar da brava gente que habita o florão da América? Se alguém ousa erguer a voz para negar, eles simplesmente soltam salvas de rojões para não ouvir.
Assim seguimos a trucidar cooperativamente.
Ao trucidador ofereço minha simpatia por não ter trucidado a mim ou um dos meus.
Não se esqueça desta minha oferenda caso nos encontremos numa quebrada da vida.
Trucide à vontade, vou olhar pr'outro lado.
Vou olhar a tela da tevê.
Vou olhar a página do meu perfil no facebook.
Sou mais um daqueles — desses? — sujeitos que, quando veem algo estranho sabem que nada pode ser insuportavelmente estranho às margens do Ipiranga.




Carente de festas-surpresa

O amofinado blogueiro que garatuja eletronicamente este sorumbático blog vive, desde que passou a ter alguma consciência das coisas, esperando que alguém lhe faça uma festa-surpresa.
Quando volta — pois o amofinado blogueiro que garatuja preguiçosamente este sorumbático blog volta sempre, pois eis que sempre vai —para e do trabalho, para e da escola, para mas não do boteco (pois deste nunca volta) ou simplesmente da e para a rua, volta pensando “É hoje!” (Sim, com ponto de exclamação, pois o amofinado blogueiro que garatuja mecanicamente este sorumbático blog é antes de tudo espantadiço.)
Mas o amofinado blogueiro que garatufa solertemente este sorumbático blog não precisa mais cultivar seu sorumbático estado de amofinamento. Pois, em postando uma nova postagem neste sorumbático blog, SURPRESA!!! alguém na mesma noite lhe fará uma festa, assim sem mais nem menos, e o coitado poderá enfim pensar, pela primeira vez em sua vegetativa existência — e mesmo ilusioriamente —, que viver vale, sim, a pena.


The desinspirators

Neste exato instante existem oito bilhões, novecentos e vinte e quatro milhões, quatrocentos e trinta e duas mil, quinhentos e sessenta e uma, duas, três, quatro... pessoas na Terra.
Sabe quantas dessa montanha de gente no planeta são inspiradoras?
Salvante os gênios e artistas de praxe, uma.
Desses 8.924.432.560 (8.924.432.561 - 1) são raríssimos os que merecem um poeminha, tosco que seja. A maioria não é digna sequer dum “a”. Alguns até que parecem, à primeira vista, só para logo se mostrarem mais desinspiradores que os que dão na vista.
(E como dão. Só não enxerga quem é cego. E cego é o que não falta neste mundo.)
Na internet então a coisa é crítica. Os que conheci até hoje, não apenas me desinspiraram mas também me desinstigaram, desapaixonaram, desentusiasmaram, desiluminaram, esfriaram, resfriaram, desalentaram, desanimaram, desarrebataram, brocharam e despentearam.
É a essa gente que dedico esta insuflante postagem. São eles que fazem o mundo girar, é deles o reino do céu.

Confissão

Sou um poeta disposto a demonstrar que minhas confissões são versos do poema da minha vida.

Sabático Sísifo

Se já fui até onde podia ir!
Se já fiz tudo que podia fazer!
E disse tudo que podia dizer!

Não.
A quem estou enganando?
Estou enganando só a mim mesmo.
Sou o sujeito mais ingênuo que já vi a caminhar de olhar baixo pela rua.

Minha fome de amor é infinita.
Mas minha sede de vingança é
Mais.

Tomem

A noite está passando num flash

Do crepúsculo ao despertar

Para a crueza da visão.

Há tempo

Para nos prepararmos

Para o belo nas manifestações da natureza.

Todo este mundo faz parte dum mundo que não é meu. 

Quando chegar minha hora

Vou tentar dar meu primeiro passo.

Será a eternidade.

Depois, outro. Me esforçando para não me preocupar com a direção.

Para, em cada um, arrancar de mim mesmo, a fórceps se preciso, a beleza de que preciso para prosseguir.

Todo sacrifício é vão

Hoje vou tentar que minhas palavras não se bifurquem como fissuras nas paredes da casa.
Serei razoável.
Como qualquer habitante deste planeta de descaminhos e ventos.
Não espere o que não estou preparado para lhe dar.
Você vai dizer que não espera.
Não minta.
Basta dizer, que obedeço.
Não tema comandar.

Hoje vou tentar que minhas palavras não se transmitam qual os vírus duma epidemia letal.
Estou disposto a obedecer a ordem expedida.
Qual vai ser? 
Mais um dia de esperança?
Mais uma hora de paz?

Vou tentar que minhas palavras  não ladrem feito cães famintos vagando pela noite.
Quer que vista minha coleira?
Pronto.
Estou a postos.

Vou tentar que minhas palavras não desfigurem o que vim lhe dizer depois duma vida inteira de hesitação.
Vou tentar que minhas palavras não se metam entre nós.
Tente apenas não lhes dar importância.


Tratado do homem ordinário

A um adulto que me perguntasse
Aos meus quatro anos
Você tem medo do escuro?
Responderia: não.

A outro adulto que me perguntasse
Aos meus quatro anos
Você tem medo de monstros debaixo da cama?
Diria: não.

A cada expressão de espanto que já abriram diante da minha cara, queria dizer, querido, querida, estranhe à vontade.
Nasci acostumado ao espanto.
Sou o cara mais espantosamente estranho que conheço.

Se me acusarem de crime por ser o que sou, direi que foi uma persona minha.

Se alegarem que a desculpa não é suficiente, alegarei que sou poeta.

Detesto poetas que têm personas.
Detesto pessoas que são poetas.

Sou apenas um sujeito sonolento que mal pode esperar a hora de dormir.
Nunca tirei foto, nunca procurei o amor da minha vida, nunca li Virgina Woolf, não sei quem é Virginia Woolf nesta tarde sufocante de novembro deste dezembro em que ainda estou vivo.

Se ainda houver tempo
Se alguém me perguntar
Você tem medo de alguma coisa?

Responderia: de truques

Outro roubo

Temos coisas infinitas que têm nome.
Temos infinita preguiça de classificá-las.
Temos infinito medo de inventá-las.

Não me interessa se pudéssemos isso ou aquilo.
Me importa o que somos.
O que poderíamos, deixo aos poetas.
Que têm tempo e imaginação e sentimento de sobra para perder.

Tá tudo dominado

Acordei madrugada ainda, um poema na cabeça pronto para consumo qual uma lata de sardinha Coqueiro. É sempre assim quando estou sob o inferno da emoção. Talvez pudesse dizer "império", mas está mais para dor que celebração. E império da emoção teria um tom cafonerrimamente publicitário, me daria urticária, tenho profundo nojo de publicitários, campeões dos sentimentos e das emoções ready-made e da manipulação. Corri para a minha escrivaninha e, entre suspiros fundos, garatujei os versos numa folha de sulfite. Ao terminar, com uma mistura de água, orgulho, sentido de dever cumprido, desconfiança e óleo, fitei a mancha de palavras em tinta azul no papel branco. O poema se elaborara durante o sono, assim, no reflexivo, como que dotado de mecanismo de criação próprio. Poemas que nascem desse parto involuntário são os mais certeiros. (Sim, o propósito de todo poema é ser certeiro.) Não passam pelo crivo da consciência. A matéria onírica emana de algures nas sombras mnemônicas e sobe para a subconsciência, onde se converte em esboços de ideias através de palavras em neon magmático que vão entrando numa fila intangível até formarem os versos. Então acordo. Na grande maioria das vezes em que isso acontece esse processo meio milagroso revolve placas tectônicas tão formidáveis no fundo de mim, que o sono é interrompido como que por um terremoto. Me ergo na cama, olhos estatelados fixos no escuro, cérebro se debatendo para não naufragar de novo na voragem primeva, memória lutando com força máxima para preservar o poema que, fresco qual uma geleia feita de prótons e nêutrons, ameaça evaporar, escorrendo contra a lei da gravidade para as nuvens. "Transcrevi" o poema como se o psicografasse de mim mesmo num estado de morte do qual tivesse retornado. Chamo esse processo de "anteninhas elétricas", apenas para fins de catalogação interna. Eis aqui o produto do que sinto, pensei, dobrando e guardando a folha de sulfite numa gaveta da escrivaninha. A manifestação do que — em parte, ao menos — sinto. Embora a missão de registrar meus sentimentos em palavras estivesse cumprida por ora, ainda teria de decidir que destinação final daria ao poema — e isso também envolve um laborioso e igualmente dolorido trâmite. Escrever um poema sob esse tipo de hipnose inspiracional sempre me deixa exausto. As emoções sobem das profundezas e vão se desfazendo para se refazer em pensamentos mais ou menos racionais e quem "facilita" essa transformação são as palavras. Estas são a ponte entre o abismo interminável, intratável que guarda o que "sou" e a pontinha da montanha que se sobressai acima da névoa. E é aqui que a exaustão começa. As palavras emergem sempre repentinamente, imprevistas, em borbotões gozosos e ao mesmo tempo assustadores, irresistíveis, convulsionadas feito a lava dum vulcão prestes a rebentar. São centenas, milhares delas brotando ininterruptas na consciência só para submergir no segundo seguinte sob o peso de chumbo das que irrompem atrás. É aqui que o poeta deve mostrar que sabe exercer seu ofício. Ele deve ser um apanhador exímio de emoções e sentimentos e fantasticamente rápido para decidir num átimo quais palavras são as melhores tradutoras do que sente e quais devem ser sumariamente descartadas. O descarte sempre é angustiante. É uma carnificina. O poeta se vê qual um pai forçado a sacrificar os filhos que se mostram menos competentes para a vida. É uma eugenia poética. Comandar o matadouro requer a sensibilidade do poeta, a fragilidade da criança que vê o mundo pela primeira vez e a crueldade dum carrasco que não nasceu para brincar em serviço.
E o pior vem agora.
Depois de desempenhar esse papel impossível de seres tão antagônicos que são obrigados a coexistir dentro duma só cabeça, o poeta agora tem de decidir se tamanho sacrifício valeu a pena. Pois nem sempre ele vê seu esforço recompensado. Vezes há em que bate o olho no que acabou de registrar no papel e sente instantaneamente que não era nada daquilo. As emoções e os sentimentos subiram como sempre fazem mas o encarregado da seleção das palavras dormiu no ponto. Talvez estivesse cansado demais da conta no ápice do processo e simplesmente cochilou. Talvez tenha se distraído mais do que é lícita a distração a um poeta. Ou quem sabe no momento crucial estava meramente pensando em outra coisa. Em outro poema. Outra matéria. Outro poema...
Por tudo isso e outras razões que seria prolixo mencionar, naquele momento só me competia deixar o sofrido produto das minhas trevas ali na gaveta a hibernar por um período cuja duração também ainda não tinha condições de decidir. O poema precisava descansar qual um bolo de fubá. O descanso podia durar dez minutos ou podia ser uma semana. Ou amanhã, quando achasse que já descansara o bastante, eu podia amassar esta folha de sulfite e atirá-la à lata de lixo.
Parágrafo.
Acho que existem poucas coisas neste nosso mundo de trapaças e escaramuças mais complicadas que escrever um poema. Não vou elaborar. É assunto exaustivo. E estressante. E assoberbante. Meu último desejo é deixar meu leitor assoberbado. Assoberbar é uma palavra demasiado forte, cabe em situações raríssimas na vida e, depois de todas as experiências amargas que já passei por não empregar palavras com a devida cautela, tento me munir da prudência possível quando expresso o que sinto.
(Ah que vontade de elaborar...)



Sem trava de segurança

Espere.
Estou tentando me entender.
Todos aí sabem, não é fácil.
À medida que tento vou experimentando sentimentos conflitantes.
Os sentimentos que sinto desde que existo.
Reluto. Tenho pudor em assumir ostensivamente que foi assim que passei, é assim que ainda passo, é assim que passarei minha vida.
Percebi, hoje cedo ou ontem, que para me entender preciso entender os outros.
Nunca pensara nisso em meu plano para me safar com relativamente poucos danos.
Os outros são para mim tão incompreensíveis, que frequentemente acho que frequentemente não me compreendem.
Olho, olho o rosto de cada um deles e procuro captar. Captar o que minha habilidade de ser incompreensível e de ser incapaz de compreender me permite captar.
E se, ao invés de compreendê-los e eles a mim, tentasse compreender o mundo deles e o eles o meu?
É um processo mais ou menos ameno.
Há ocasiões em que penso ser capaz de distinguir em mim mesmo um sentimento que distingo em outros.
Em outras, me vejo incapaz de distinguir em mim mesmo um sentimento que não distingo em outros.
Fico torcendo para que não esperem de mim o que eu mesmo não espero.
Você alguma vez já parou para esperar o imprevisto?
Eu já. E não foram poucas vezes.
É atividade sujeita a altos índices de acidentes.
Nas vezes em que esperei, o imprevisto me surpreendeu. Não necessariamente da maneira que esperava, não necessariamente da maneira que não esperava.
Neste processo de tentar me entender — e entender um pouco por que não me entendo —, venho logrando ficar cada vez menos confuso.
Será esperar a amarga sensação de impotência de ter de admitir amargamente a impossibilidade da compreensão possível?
A minha, sua, a sua, minha.
Você pensa, com razão, que estou falando com meu umbigo. Ao passo que penso que você está falando só com você mesmo.
Provavelmente estes sintomas se devem a esperar provavelmente.
Queria ter aprendido que nunca poderia dar certo.
Assim, fui obrigado a concluir que tudo que devo, devo à minha própria compreensão das minhas próprias palavras.
Supremas, não se prestam a esclarecer.
Ou a me aproximar.

Para Henrik

Não quero ter razão.

Por isso não tenho.

Quero ter é minhas palavras e minhas frases.

Minhas explicações são minhas.

Por isso são explicações.

Tomo nas mãos minhas próprias leis e assim me conduzo pelo meu planeta.

O assassino que empunha um fuzil para me matar não é meu assassino. 

Meu assassino sou eu mesmo.

Os donos da vida vão envenenando uma gota do próprio sangue a cada xeque-mate que dão, a cada xeque-mate que levam. 

A vida minha não é minha.

Sou animal voraz sem fome.

Não fujo nem me escondo dos meus predadores e eles se encolhem e enfiam o rabo entre as pernas.

este é meu poema pessoal
esta é minha ciência
estas são minhas palavras
se quiser, meu genocídio.





Gueixa maldita

Me deixa em paz com minh'aflição

Sonhei 
ser um pássaro
e Masami, ave

Voamos a descrever
paralelas 
se cruzando
em impossível 
orgia

Em teu voo, uma linha:  promessa no meu 
céu

No meu, um rabisco: sentença da 
tua presa

Vamos juntos!
Chamaste
Adejando as asas de seda incolor

Debochando das de 
chumbo

Mundo de medíocres

Este mundo é controlado por medíocres porque
os medíocres são a maioria
como a maioria são 
os vermes
as baratas
e as partículas de ar inorodo

nasceram os medíocres para 
esmagar e
existem para esmagar pois
se não esmagarem
os não esmagados podem se sublevar 

ah quanto me sublevei, dio mio

não, a sublevação dos não esmagados 
não significaria o fim dos medíocres
apenas mais dor de cabeça

e se aprendi alguma nesta merda de mundo dominado por medíocres é que os medíocres são medíocres porque não querem ter dor de cabeça


Georgia on my...

Queridas reticências, quantas possibilidades ensejam reticências
Prestam-se a gracejos, poemas, haikais, piadas reticências
Quando nos faltam palavras, nos acodem reticências
Quando nos acodem, nos faltam as reticências

Dos símbolos da pontuação, abundam tanto quanto reticências
Éramos três, hoje somos dois, mas que vocação pra reticências

Haroldo de Campos foi reticências
Machado cresceu para se tornar reticências
De qualquer forma reticências
Pois quando reticências, somos meros reticências

Seu ideal é reticências ponto de exclamação
Como assim reticências ponto de interrogação
Diz o que ponto de exclamação reticências
Faz o que não ponto de exclamação exclamação exclamação

Já um bom e dois pouco três pontinhos

Emoções na linha de montagem

Sorrir parece ser nosso estado mais natural hoje em dia.

É gente pra todo lado exibindo os dentes num trejeito singelo e desarmante. Não se dão o trabalho de duvidar da pertinência dos seus dentes expostos.

Sorriem sem saber se levam ou não aqueles a quem sorriem a se perguntar o motivo de seus sorrisos.

Vão vivendo a interminável era da mensagem. Para os sorridentes, nada é mais natural do que passar a mensagem.

Qual mensagem?

A de que é preciso sorrir.

Pois foi assim que os publicitários os ensinaram. Foi essa a lição que aprenderam nos cursos de gestão de negócios ministrados por gurus que enchem o rabo de dólares mostrando aos indigentes digitais o que as gigantes do mercado querem de seus candidatos a um lugarzinho ao sol.

E um sorrisinho básico é apenas o começo.

Em seguida vem a necessidade de demonstrar que os sorridentes estão sempre dispostos à cordialidade. À hilária política da boa vizinhança. Que são homens e mulheres de boa vontade.

Mais que tudo, devem evitar fazer um rosto apenas sóbrio.

Seria inequívoco sinal de ambiguidade de intenções.

Conforme o planejado

Vou tentar calibrar o tom de voz à medida que escrever. Não me sinto corretamente escrevendo assim de improviso. Nos bons tempos — vou tentar não abrir subperíodos e parênteses (vou tentar mas sei que não vou conseguir) — cansei de explicações (cansei de tudo mas principalmente delas) — cansei de ser nostálgico sobre os tempos em que me contentava — ou fingia que — em explicar o que hoje vejo que não requer explicação pois hoje sei que não há mistérios — fechava os olhos e me entregava aos sonhos — nos bons tempos (como se tivesse tido tempos bons — quais foram? estou condenado a remedar as porcarias que deixei que me enfiassem na cabeça e que custei até aqui a me dar conta, à minha própria revelia, que não são e nunca foram pensamentos meus e que há décadas me iludiam para me sentir meio dono de mim mesmo, — nos bons tempos ainda era capaz de parar no meio da praia e, contemplando o mar e as ondas, me deixar conduzir por tolas especulações metafísicas. Olho agora naturalmente para trás — até ontem olhar para trás me parecia tão natural, hoje passo meus dias pensando como é que fui me deixar seduzir pelos meus próprios olhares — e, como todo homem desencantado pelo amadurecimento, me admiro que tenha havido um dia em minha vida em que fui capaz de me encantar pelo que quer que tenha sido.
A primeira vez que a vi foi em outubro de 1968. Estávamos descendo a escada quando ela passou, também descendo, em seu biquíni branco. (Estou em dúvida se devo expor este episódio. É um dos muitos que trago comigo um dia após o outro qual relíquias. Okay, vou expor. Mas não tudo. Não quero perder aquela última imagem que tenho dela.) Os cabelos castanhos claros (bem, não propriamente castanhos; o mais correto seria dizer que tinham grandes mechas variegadas de meio-tons quase loiros) esvoaçavam ao vento (sei que esvoaçar ao vento é uma imagem irrecorrivelmente batida, mas era assim mesmo que os cabelos de mechas dela faziam à medida que ela descia a escada para sair do prédio rumo ao mar).
Na época começava a trilhar determinadamente meu caminho para meu previsível fim, acompanhado indefectivelmente por um ímpeto de detonar tudo do qual nunca me livrei e que noites adentro e manhãs afora me forçava à eterna busca do inencontrável, sempre prometendo a mim mesmo que seria a última e algo ou alguém dentro de mim consentia calado como se tudo que importasse era estar aqui dentro até invariavelmente passar a noite em claro até a luz do sol filtrada pelas nuvens balofas que tudo prometem e nada cumprem espargir sobre a cidade uma névoa doentia na manhã vazia numa vigília inútil em que meu sancho-pança interno se recusa a me levar de volta à minha origem na praia onde minha vida de fato começou.

Aquele verão foi a última vez que a vi como sonhava ver. Depois só pude vê-la em instantâneos que mesmo surrados nunca me forçarão a esquecer o biquíni branco.

Relembragem de outubro tardio

Revoada

Não, não é uma revoada de pássaros.
Tampouco sumiço súbito de pensamentos. Nem uma debandada de ideias em greve.
Não é sequer revoada. Nunca vi revoada. Sei lá o que é revoada.
Botei revoada no título só para pescar. Assim meio que jogando farelo na superfície da água.
Você se amarra em revoadas, eu sei. Embora, como eu, nunca tenha visto uma. E, ao contrário de mim, adoraria testemunhar uma no fim dum dia duro de trabalho.

Revoadas dão as melhores iscas.
Não é difícil botar uma revoada no título duma postagem. E se o peixe for afoito, basta sacudi-la entre as pontas dos dedos.
Você sabe, peixes nascem para ser comidos.
E se não te fisgasse eu podia apelar brandindo uma "Revoada de borboletas".
E se mesmo assim você se recusasse a morder, eu não hesitaria em intitular minha postagem de "Revoada de borboletas azuis num crepúsculo de primavera enquanto a lua acorda no céu".
Só que, além de não saber nada de revoadas, borboletas de qualquer cor me dão alergia, o lusco-fusco me dá palpitação, me sinto mal na primavera, não gosto da lua nem do céu. Acho mesmo que não gosto de nada.
E me entediam pescarias. Na verdade nunca pesquei. E me encafifam pescadores e sua paciência interminável à espera da mordida na beira do lago, assim como a manha que desenvolvem ao longo dos anos até adquirir traquejo, embora eu não seja dado a cismas. Cismas e revoadas são para apaixonados.

Perdi a fórmula da paixão.
Esqueci os objetos das minhas antigas curiosidades.
Mas sinto em mim nós.
Sinto em mim nós que não podem ser desfeitos.
Sinto em mim nós que nasceram antes de mim.

Isto posto, te faço aqui alguns alertas.

Não confie em mim.
Não, não sou desonesto. Ou baixo.
Só não aprendi a apreciar revoadas.
Por isso cresci confuso, atrapalhado, tristemente desastrado.

Assim me desonero de responsabilidade por propaganda enganosa.
O conteúdo é imprestável qual a embalagem.
Sou antes de tudo e depois de tudo um sujeito doentiamente desapaixonado.
Desapaixonado pela morte, pela vida, por todas as coisas