Acordei madrugada
ainda, um poema na cabeça pronto para consumo qual uma lata de sardinha
Coqueiro. É sempre assim quando estou sob o inferno da emoção. Talvez pudesse
dizer "império", mas está mais para dor que celebração. E
império da emoção teria um tom cafonerrimamente publicitário, me daria urticária, tenho profundo nojo de publicitários, campeões dos sentimentos e das emoções ready-made e da manipulação. Corri para a minha
escrivaninha e, entre suspiros fundos, garatujei os versos numa folha de
sulfite. Ao terminar, com uma mistura de água, orgulho, sentido de dever
cumprido, desconfiança e óleo, fitei a mancha de palavras em tinta azul no
papel branco. O poema se elaborara durante o sono, assim, no reflexivo, como
que dotado de mecanismo de criação próprio. Poemas que nascem desse parto
involuntário são os mais certeiros. (Sim, o propósito de todo poema é ser
certeiro.) Não passam pelo crivo da consciência. A matéria onírica emana de
algures nas sombras mnemônicas e sobe para a subconsciência, onde se converte
em esboços de ideias através de palavras em neon magmático que vão entrando
numa fila intangível até formarem os versos. Então acordo. Na grande maioria
das vezes em que isso acontece esse processo meio milagroso revolve placas
tectônicas tão formidáveis no fundo de mim, que o sono é interrompido como que
por um terremoto. Me ergo na cama, olhos estatelados fixos no escuro, cérebro
se debatendo para não naufragar de novo na voragem primeva, memória lutando com
força máxima para preservar o poema que, fresco qual uma geleia feita de
prótons e nêutrons, ameaça evaporar, escorrendo contra a lei da gravidade para
as nuvens. "Transcrevi" o poema como se o psicografasse de mim mesmo
num estado de morte do qual tivesse retornado. Chamo esse processo de
"anteninhas elétricas", apenas para fins de catalogação interna. Eis
aqui o produto do que sinto, pensei, dobrando e guardando a folha
de sulfite numa gaveta da escrivaninha. A manifestação do que — em parte, ao
menos — sinto. Embora a missão de registrar meus sentimentos em
palavras estivesse cumprida por ora, ainda teria de decidir que destinação
final daria ao poema — e isso também envolve um laborioso e igualmente dolorido
trâmite. Escrever um poema sob esse tipo de hipnose inspiracional sempre me
deixa exausto. As emoções sobem das profundezas e vão se desfazendo para se
refazer em pensamentos mais ou menos racionais e quem "facilita" essa
transformação são as palavras. Estas são a ponte entre o abismo interminável,
intratável que guarda o que "sou" e a pontinha da montanha que se
sobressai acima da névoa. E é aqui que a exaustão começa. As palavras emergem
sempre repentinamente, imprevistas, em borbotões gozosos e ao mesmo tempo
assustadores, irresistíveis, convulsionadas feito a lava dum vulcão prestes a
rebentar. São centenas, milhares delas brotando ininterruptas na consciência só
para submergir no segundo seguinte sob o peso de chumbo das que irrompem atrás.
É aqui que o poeta deve mostrar que sabe exercer seu ofício. Ele deve ser um
apanhador exímio de emoções e sentimentos e fantasticamente rápido para decidir
num átimo quais palavras são as melhores tradutoras do que sente e quais devem
ser sumariamente descartadas. O descarte sempre é angustiante. É uma
carnificina. O poeta se vê qual um pai forçado a sacrificar os filhos que se mostram
menos competentes para a vida. É uma eugenia poética. Comandar o matadouro requer a
sensibilidade do poeta, a fragilidade da criança que vê o mundo pela primeira
vez e a crueldade dum carrasco que não nasceu para brincar em serviço.
E o pior vem agora.
Depois de desempenhar
esse papel impossível de seres tão antagônicos que são obrigados a coexistir
dentro duma só cabeça, o poeta agora tem de decidir se tamanho sacrifício valeu
a pena. Pois nem sempre ele vê seu esforço recompensado. Vezes há em que bate o
olho no que acabou de registrar no papel e sente instantaneamente que não era
nada daquilo. As emoções e os sentimentos subiram como sempre fazem mas o
encarregado da seleção das palavras dormiu no ponto. Talvez estivesse cansado
demais da conta no ápice do processo e simplesmente cochilou. Talvez tenha se
distraído mais do que é lícita a distração a um poeta. Ou quem sabe no momento
crucial estava meramente pensando em outra coisa. Em outro poema. Outra
matéria. Outro poema...
Por tudo isso e outras
razões que seria prolixo mencionar, naquele momento só me competia deixar o
sofrido produto das minhas trevas ali na gaveta a hibernar por um período cuja
duração também ainda não tinha condições de decidir. O poema precisava
descansar qual um bolo de fubá. O descanso podia durar dez minutos ou podia ser
uma semana. Ou amanhã, quando achasse que já descansara o bastante, eu podia
amassar esta folha de sulfite e atirá-la à lata de lixo.
Parágrafo.
Acho que existem
poucas coisas neste nosso mundo de trapaças e escaramuças mais complicadas que
escrever um poema. Não
vou elaborar. É assunto exaustivo. E estressante. E assoberbante.
Meu último desejo é deixar meu leitor assoberbado. Assoberbar é uma palavra
demasiado forte, cabe em situações raríssimas na vida e, depois de todas as
experiências amargas que já passei por não empregar palavras com a devida
cautela, tento me munir da prudência possível quando expresso o que sinto.
(Ah que vontade de
elaborar...)
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