O arauto


Literalidades


O rapaz entra no boteco, mal olha para o balconista vai logo exigindo:
— Me dá uma pinga aí. E depressa. Pois sou poeta!
O homem atrás do balcão, lavando alguns copos na pia, enxagua as mãos e seca-as num pano encardido. Solta o pano, olha enviesado para o rapaz e contrafeito retruca:
— Tem semancol não? Não se vai falando assim sem mais nem menos “sou poeta”. Tremenda falta de pudor, seu. Vê aquele sujeito ali? — ele aponta um tipo tomando cerveja no balcão, ar nem solerte nem indiferente nem prazeroso. — Esse não é poeta. Nem por isso chega dizendo “devagar, pois não sou poeta”. Questão de sensibilidade. Você, sendo poeta, devia saber disso.
— Eu sei — diz o rapaz. — É que às vezes me esqueço.
O balconista meneia a cabeça num gesto de censura e o rapaz emenda:
— A, é verdade. Não devia me esquecer. Nem me lembrar. É que sou poeta.
O outro faz novamente não com a cabeça, agora com mais vigor:
— Não diga que é poeta. Já falei. Está vendo aquele ali? — ele indica outro sujeito ao balcão, este tomando um cafezinho. — Ao contrário do outro, esse aí é poeta. Não, não está escrito na testa nem se distingue pelo jeito de se recostar no balcão. Vê-se, simplesmente. Não me pergunte como sei. Só posso dizer que sei. É algo indefinível, você sabe. Você sabe, não?
— Acho que sei.
— Sabe, sim. Reconhecer um poeta é tão difícil quanto reconhecer a poesia. Às vezes, mais. O mundo está cheio de exemplos. Veja o Drummond. Quem, olhando aquele homúnculo a primeira vez e não sabendo tratar-se do Drummond, diria que era poeta? Poucos. A maioria pensaria estar diante de um funcionário público (o que era fato), dentista ou caixeiro viajante (pois, você também sabe, na época do Drummond existiam caixeiros viajantes. Mas também não me pergunte que fim deram, pois aí já é especular demais da conta). E o Oswald de Andrade, que profissão você lhe daria só de olhar?
— Açougueiro.
— Isso aí. Vejo que temos bastante em comum, embora eu seja balconista de bar e você, poeta. E o Mário de Andrade, tinha cara de quê?
— Esse é fácil — o rapaz se anima. — Professor de música.
— O que também é fato, claro. Murilo Mendes?
— Padre.
— Bandeira?
— Empresário.
— Vinícius?
— Dono de padaria.
— Êpa. Essa doeu. Pessoa?
— Esse tava na cara que era poeta.
— É. Também acho. Mas…
— E a minha pinga? Sai ou não sai?
— Já vai — o balconista ergue uma das mãos, pedindo paciência. — Às vezes poetas também precisam esperar, como nós mortais.
O rapaz, que a essa altura já tinha sentado num tamborete, apóia um cotovelo no balcão e com o punho cerrado e ar resignado, segura a cabeça. O balconista prossegue: 
— Bem, onde estávamos? A! Falávamos daquele sujeito ali bebericando cafezinho. É poeta, mas sabe que isso não lhe dá o direito de vir exigindo isso ou aquilo, pois sou aquil'outro. Chega humildezinho, compenetrado, atento a algo que lhe passa dentro d'alma. Eu, do meu lado, fico na minha, assuntando, esperando enquanto a poeira cósmica abaixa dentro dele. De repente, ainda distraído, ele, com simplicidade, pede, um cafezinho, por favor. Para mim, basta. Sei que estou diante de um. Com o tempo aprendi a reconhecer. Hoje vejo de longe. Até de costas. É só um botar os pés aí na porta, já penso, olha outro aí. Então sirvo e fico aqui no meu canto, observando discreto. Sei que ele sabe que observo, pois, claro, é poeta e, ao que consta, poetas sabem tudo. Mas tem outra coisa que me admira nesses sujeitos. O estoicismo. Pombas! penso comigo (e você, poeta, não importa se bom ou não, há de concordar que só posso pensar comigo e com mais ninguém), o sujeito tem uma sensibilidade de outro planeta, sofre todas as dores deste mundo e de outros que possam existir por aí, vive cada segundo a se indagar, testando a si e aos outros, especulando desconfiado de todas as verdades que já deveriam ser certezas mas que só se tornam mais dúbias a cada dia, matutando uma ideazinha constante que de repente aflora aqui e ali no inefável teatro da cabeça lírica, torcendo para que a ideazinha venha de mãos dadas com a palavra certa, a palavra justa, quase implorando aos céus só mais esta palavrinha, senhor, para que formem um par indissolúvel que reluza feito a peróla rara na aurífera corrente da afinidade, tão espetacular afinidade que as testemunhas (pois sempre as há) desse encontro do pensamento com a palavra certa, extasiadas, comovidas, buscam dentro de si uma forma para definir a magia mas nada logram senão elogios arrebatados como puxa! quanta harmonia. Como pode alguém ter idéia tão singular e expressá-la com tamanha propriedade? O mais interessante, porém, é que esses pensamentos não se geram assim tão cristalinamente e aí! aí está o segredo! O desprevenido leitor põe os olhos no versinho ali no papel, entre distraído e impaciente, irresoluto se vai se meter ou não na empreitada de ler o poema até o fim, mas se já chegou até ali é porque está carente dum pouco de poesia, não sabe por que mas está (a, quanta gente está), e meio a contragosto vai avançando, querendo saltar alguns versos mas intimado a querer ler, afinal precisa dum bálsamo, precisa se revoltar, se conformar, não sabe o quê mas está necessitado... De repente, se o que tem diante de si é de fato poesia, se as ideazinhas do poeta estão de fato casadas em comunhão de bens com as palavras, o sujeito começa a beber cada uma delas como se fosse a pinga que lhe vai redimir todos os sofrimentos. Por falar nisso, tome lá a sua. — O balconista apanha uma garrafa de 51, entorna-a sobre um copo e pacientemente deixa gotejar uma dose de cachaça, sob o olhar sôfrego do rapaz. — Da próxima vez, já sabe: a palavra justa. Tenho horror ao supérfluo. Além do mais, todos os que chegam pedindo uma pinga feito você são poetas. Eu sei. Não precisa anunciar.



Casa cidade


Entre minha cidade,
A cidade que é minha,
E a cidade vizinha
Há outra

Cidade em que entre uma 
Rua e outra há outra e
Entre uma casa e outra
Há outra casa que é 
Minha à casa vizinha.


Beleza em extinção

Poucas bobagens são mais patentes que a discussão sobre o aquecimento do planeta.

Progressistas lamentam o lento, inexorável fim da Terra, conservadores batem o pé (ou será a pata?) que é balela. Esquerdistas dizem que a destruição resulta do capitalismo selvagem, direitistas clamam que tudo não passa de mais uma batalha ideológica.

Debate inócuo, por supuesto.

O armagedão virá cedo ou bidu, para mim não importa quando. O que me interessa é a destruição possível e passível de ser vista e sentida no curso da minha vida, overdose de testemunho para este espécime deveras fraco, indigno da raça.

Dei um google nas espécies recém extintas e em vias de extinção, em anos, sei lá, décadas, séculos, sobrarão apenas cachorros e gatos e olhe lá. Não tem pra ninguém, de grandes mamíferos, baleia azul, rinocerontes, jacarés, elefantes, gorilas, tigres, leões, a pequenos, macacos, lêmures, lobos, raposas, gazelas, morcegos, e cobras, lagartos e corujas, albatrozes, falcões,e tudo que é ave e tudo que é molusco e tudo que é peixe e tudo que é anfíbio, e tudo que é inseto e tudo que é réptil, e tudo que é crustáceo, o extermínio é geral, democrático, irrecorrível. 

E como imaginar um mundo sem a grande, a linda, a fabulosa Floresta Amazônica? E mares e oceanos sem corais nem floras, movendo ao redor do globo uma borra espumosa, melequenta, fedida de que nem sequer o sal será capaz de se livrar?

Que a espécie humana talvez seja a última a soçobrar mas soçobrará inelutavelmente, não precisa grande inteligência para deduzir.

Que imensa merda que a temperatura vai subindo ou descendo. "Pensadores" como Pondé e seus guias práticos para pensar o mundo talvez tenham a lamentar apenas o fim dos zoos pelo mundo. Até gosto do Pondé. O único probleminha é que, para um filósofo que se quer esperto, ele limita o patos humano ao simples reconhecimento da animalidade que trazemos aqui no fundo. Quem dera.

Vou correndo regar minha samambaia.


Outro cafezinho envenenado

Deito, durmo.

Para a vida passar rápido.
Quanto tempo leva a noite?
Nada, se você dorme.
Acordo e durmo.
Para a vida passar logo.
Quantas eternidades me cabe esperar?
A epopéia até o banheiro.

A mijada. (Quantos decalitros de urina carrego dentro de mim? Parece a primeira vez que mijo nesta vida.)

(Cocô, evito. Pois não existe a escatologia no mundo lírico. Preciso me concentrar no divino, na ascese, nas coisas que estão além. Quão além estão certas coisas.)

(E, quando não posso evitar, faço de madrugada enquanto o mundo está deitado. Que inveja dos que dormem.)

(Lavar o rosto, não lavo. Pra quê? Pra quem? Eis as perguntas que eu faria, se tivesse a quem fazê-las. Não há ninguém por aqui que me diga que estou com remela nos olhos.)

Do banheiro à cozinha, via-sacra. Não fizeram atalhos nesta casa? Malditos portugueses e sua cultura do atraso e os mil dias que levaram pra descobrir este país dos infernos.

Boto a caneca debaixo do filtro, por que esta água não desaba do alto qual tempestade em vez de pingar como se marcasse os anos na folhinha da parede? Um dedo d'água é tudo que espero. Virarei fóssil com esta caneca na mão? Serei exposto na Bienal das Artes?

Agora a fervura. Milagre, acendedor automático. Abençoados americanos que me poupam de esfregar dois pauzinhos. Se dependesse de mim, a humanidade não dominaria o fogo. Viveríamos todos na praia de Ipanema esperando a eterna passada daquela garota.

Libera tuas labaredas, boca dos infernos! Ferve duma vez, líquido teimoso! Incendeia o ar, as paredes, o telhado e as nuvens, extermina o tempo na tua fogueira, enevoa o dia em teu vapor.

Não posso acreditar -- serão borbulhas que ouço? A água está pronta? Tenho finalmente alguma coisa pronta na minha vida? Só acredito me queimando.

Próximo passo -- por que nos obrigam a andar? Seria tão bom se fôssemos todos parados --, próximo passo: ir até o armário, abrir a portinhola, apanhar o nescafé, desenroscar a tampa (prendendo a respiração pra não cheirar o pó), abrir a gaveta dos talheres, pinçar uma colherinha, extrair duas vezes, despejar, adoçar, mexer, experimentar, puta merda, quero apenas um cafezinho, não ir a Marte.

Chega a fatídica hora: descer até o escritório.

Não, não se dá a largada simplesmente. Requer preparação. É uma maratona. Preciso me concentrar. São quase 30 metros.

Tem dia, logro hibernar antes de largar e venço a competição sonâmbulo. Nem sempre me é dada esta dádiva. Não mantenho boas relações com deus.

E, quando logro sonambular, vupt! já estou diante do monitor ao recobrar a consciência. Obrigado, deus! Deus lhe pague.

Mas de que me adianta ter atravessado o Rubicão literalmente num fechar e abrir de olhos, se agora tenho de aguardar o Windows inicializar? Bill, tende piedade de mim.

Aperto o maldito botãozinho que já está quase quebrado de tanta raiva com que aperto o maldito botãozinho. Por que os americanos não inventam um Nescawindows instantâneo?

Enquanto a luzinha não bruxuleia na tela, acendo um Marlboro, que se consome em 3 ou 4 sôfregas, impacientes, fulminantes baforadas. Fuço em minha Estante para Emergências, que mantenho ao lado do computador, apanho O jogador, o da vez. No desespero da manhã paralisada, só Dostô pra me acalmar. Leio umas 3 páginas e o hinozinho do Windows anuncia que o fantástico mundo cibernético está enfim ao alcance do meu mouse. Precisava quase 2 minutos pra isso?

Acho que finalmente estou chegando. Só falta executar o Opera, digitar o endereço do blog, entrar com o email e o password (não posso deixar meus dados sigilosos na memória do programa. Tá cheio de bisbilhoteiro por aí.)

Eis que a tela amarronzada se descortina diante dos meus fatigados olhos. Eis aqui minha carinha barbuda. Olha, até que sou bem apanhado.

Corro pra ver se tem comentário.

Ontem à noite eram 57 comentários. Agora são 56. Apagaram um. Por que essa gente é tão indecisa?

Não! Me enganei. São 58. Uma alma caridosa deixou um comentário. Deus lhe pague, meu bom samaritano.

Clico no ícone. Anda logo, seu Opera molenga.

Não precisa ser simpático. Ou autêntico. Tudo que peço é, só não diga que não sei escrever.

E não precisa mais de dez linhas. Umas quatro bastam. Ou duas. Ou mesmo uma. Sei que hoje em dia estão todos apressados. Não quero abusar da paciência dos navegantes.

Abro. É apenas um smiley.

Meus dedos se crispam, apertando o Dostô como se fora um crucifixo. Nessas horas, lamento não ser crente. Até ontem à noite, me achava um agnóstico.

Um smiley? Quero rir. Mas, como diz a Dilma, isso parece integralmente meio impossível.

O jeito é reler minha última postagem. Escrevi ontem e já cheira a bolor?

Bom, pelo menos fede. A maioria não me cheira nem fede. A maioria até que me constrange.

Me sinto tão mal-amado.

Rompe-tímpanos

Para Paulo Francis, Pavarotti não passava (puta porca madosca) dum asno barulhento. 

Pensando mal, se você escuta El adiós a la vida com o carcamano gigante, parece tudo haver, no dizer de dez entre dez analfabetos digitais. 

E, olha, Francis era uma autoridade, vivia perto da Broadway e conhecia tudo e todos literalmente ao vivo, provavelmente viu Maria Callas de perto, reconhecia o talento único, inigualável de Caruso.

Pavarotti tinha de concorrer com o rock, christ.

Sei que os adoradores de barulho atuais vão ficar surpresos. E obviamente praticamente nasceram semissurdos. São incapazes de captar as nuances dum tenor verdadeiro ou duma soprano na acepção da, ugh, palavra.

Que dirá da própria, my dear god?

Verônica

chega de poesia
sonsa, leda,
besta, fria
amanhã ao

mal raiar o dia
deletarei todos
meus posts
e do teu rosto

nas tuas fotos
e promessas
em tua boca
não haverá

mais alegria

C e c i

Olhar de víbora, presas de felina, pomos de predadora inclemente, sorriso de fêmea impenitente, qual é seu MSN?





(E fui destroçado na primeira entrevista.)

Pausa pr'um velho post perdido no espaço e no tempo II

Prezada, peco-lhe licença para lhe dar uma informação: de todos os milhões de rostos da orkut, tens o sorriso mais simpático e encantador e sincero, e ante tal sorriso não poderia me furtar a ajoelhar e rezar para que ele, sorriso, brilhe sempre.

Memórias Livres do Cárcere Químico, Enfim V

Não tenho opinião formada — e nunca vou ter — sobre dividir vida e obra de artista. Os estruturalistas nunca me convenceram com seu suprematismo da obra, Castoriádis quase chegou lá.

Não consigo me convencer de que o sujeito que faz a obra não é importante. E sempre me pergunto por que se fala montanhas sobre a vida pessoal dos artistas e suas biografias. Começou séculos antes do asqueroso celebridadismo atual.

Ah, todo santo dia fetichiso Sylvia Plath, seu pai, mote de muitos de seus poemas, seu marido e também (puta dum) poeta Ted Hughes que as feministas acusaram de precipitar seu suicídio, a segunda mulher de Hughes que também enfiou a cabeça no forno do fogão igualzinho Plath e o poema que ela cometeu depois de cortar o dedão fazendo janta pro, ugh, maridão.

Jesus, gosh, mãezinha, tenham dó de mim.


Memórias Livres do Cárcere Químico, Enfim IV

Que tarde bela e quente no silente julho
Própria, mais que própria, para assistir
À bout de souffle com o sonso Jean-Paul 
Belmondo e a devoradora de homens Jean
Seberg e finalmente perecer na tarde seca

Memórias Livres do Cárcere Químico, Enfim III


Tenho pena da borboletinha voando
elétrica sem saber onde pousar.

A forma mais barata e eficiente de
atacar uma pessoa é a luz.

Pausa pr'um velho post perdido no espaço e no tempo


A orkut e os fóruns internáuticos em geral são um banho de inovação vernacular. Minha professora de gramática Claudete morreria fulminada por um peremptório relâmpago se visse. Graças aos céus já foi pro além.
Umas das novidades que mais me espanta!!! na novilíngua cibernética é o entusiasmo pelos !!!!!!!!
A meninada parece pensar que ninguém vai ouvir o que dizem se não houver pelo menos 3 !!! ao fim de cada período !!!!!!
O vernáculo tá passando por uma revolução genética e isso é ótimo. No início embirrei um tico mas agora me amarro nessa singular, expressiva comunicação gráfica.
Os rsrsrsrs, huauuauahuauauahua, hehehe, hahaha, kkkkk são defacto hílares. A gente ri até sem querer. Até quando tão nos insultando.
Mas o que me encafifa fifa fifa de verdade são as reticências com apenas 2 ..
Então queria saber se alguém da última geração aí sabe.
Reticências com apenas dois pontinhos é o quê?
Um ponto final reticente?
Uma elipse finalíssima?
Reticências encabuladas?


Memórias Livres do Cárcere Químico, Enfim II

Vem, solidão, vem 
e cresce qual a flor
de Sergio Endrigo
Para que te cultive
em meu jardim de
— é triste dizer —
dores impossíveis.

Poliédrico anti-guru


Fôdasse.
Soo piegas.
Frequento assíduo meu curso autodidático de estraçalhamento de pudores e pruridos bobos.
Talvez me diplome antes que a cicuta faça finalmente o efeito que espero que as cicutas façam.
Tomar cicuta não é fácil. Não requer coragem nem covardia. Esses seriam os requisitos dos que lavram bobos pruridos e pudores.
Tomar cicuta requer simplesmente nada. E tudo que requer nada é a mais inalcancável das metas.
Venho tomando cicuta há algumas décadas. Tempo suficiente para descobrir que a cicuta é a minha cura.
Se um dia você vier a São Caetano, enclave com o maior IDH do País, citadela de novos-ricos deslumbrados pomposos em suas negras carruagens espaciais a brincar de Loucos Responsáveis, paraíso dos Grünkranz de Bernhard cercado de favelas por todos os lados, se um dia você vier a São Caetano, vou te levar ao buteco do Lacerda, o mais sujo e simpático deste pedaço de céu no inferno, onde passo dias e noites inebriado da suave aca de urina desprendida do banheiro que se mistura à torrente de cachaça barata derramada no balcão e nas mesas sob a mais angelical algaravia dos gritos e sussurros dos ubíquos pinguços em perfeita união com os urros do BBB na imensa tevê pendurada no teto, eis aí, bem ali na esquina, o estado de deleite perseguido há milênios pela humanidade. E pensar que está tão pertinho.
Abandono de hoje em diante meu autoapodo de “zonzo multipolar” para orgulhosamente me rebatizar “poliédrico anti-guru”.
Soo piegas mas fiquei emocionado.
Obrigado.


O botão



Literalidades


Cada um, cada um de nós nasce com um botão.
Botão simples, consistindo duma peça inteiriça com quatro elementos: cabeça, sede, mola e anel de fixação.
A cabeça, de material plástico, presta-se a ser pressionada com a ponta do dedo. Acha-se montada na sede, cujo interior guarda uma mola elástica – reles molinha de arame (este sendo igualmente reles, sem ter recebido sofisticados tratamentos térmicos ou químicos) destinada a restituir a cabeça plástica à posição original depois de pressionada.
A sede, igualmente plástica, recebe em seu topo um anel também plástico (com a diferença de que, no caso deste último, o plástico recebe injeção especial de elastômero, sendo protegido por revestimento anti-ferrugem à base de borracha vulcanizada). O anel tem por principal finalidade auxiliar a fixação da sede na superfície em que está instalado o conjunto do botão. Secundariamente, a argola serve de acabamento, de modo a suavizar o impacto visual produzido pelo botão sobre a superfície, que por sua vez atua como suporte propriamente dito.
A cor do botão varia de acordo com o dono. Mas é cor atribuída a cada um de nós, donos, sem obedecer a nenhum critério. Trata-se de processo que se dá ao acaso. Sequer se distinguem homens e mulheres, para desalento dos que desejariam que ao menos fossem azuis os de uns e rosa os de outras. Você, eu, seu vizinho, um antepassado, conterrâneo, transeunte, qualquer um de nós pode ser aquinhoado com um botão da mais inusitada das cores do espectro cromático. Como já se explicou anteriormente, trata-se de atribuição aleatória. E, dentro dos princípios da aleatoriedade, você (ou até eu – quem sabe?) pode muito bem receber um botão amarelo tenebroso ou (quem também sabe?) vermelho maligno.
O curioso é que, seja qual for a cor que nos cabe, cada um de nós a aceita sem reclamar (ou, se reclama, não é reclamação conspícua) e logo a assimila naturalmente. E quando alguém nos pergunta qual é nossa cor preferida, não titubeamos em responder com a cor do nosso botão.
Para combinar com a simplicidade do material e da cor, o botão tem a mais básica, despojada, insuspeita e simbólica das formas: o círculo. Por isso, é possível afirmar: cada um de nós nasce com um botão plástico colorido redondo.
Em contrapartida, a localização do botão, diferentemente do formato e do material constituinte, que são universais (e que, como se há de convir, trata-se de características elementares que não poderiam suscitar intrincadas celeumas, pois o primeiro, como já explicitado, representa o mais básico de todos, ao passo que o segundo, por poder ser facilmente encontrado no mercado e a custo relativamente baixo em comparação a outros materiais mais nobres como a porcelana, o marfim, o ébano, a madeira ou – por que não? – o cristal, havendo mesmo a possibilidade – nada remota, cumpre notar – de provir do espantoso processo da reciclagem que os avanços tecnológicos do nosso fatídico século finalmente lograram pôr à nossa disposição), e mesmo da cor, que, embora possa variar de indivíduo para indivíduo, acha-se sempre dentro duma gama limitada e conhecida de tons, pois bem, a localização do botão com o qual cada um de nós é agraciado ao nascer pode ser literalmente – e, creia-se, nunca é demais enfatizar – literalmente qualquer uma.
Ei-nos, portanto, cada um de nós às voltas com um botão plástico colorido redondo localizado sabe Deus onde.
Às vezes, os botões de todos nós podem ser achados em locais previsíveis como o painel de comando dum aparelho de tevê, um controle remoto, um fogão (tendo-se, obviamente, o cuidado de não confundi-lo com os demais botões instalados de fábrica em tais utilidades domésticas e cujo propósito é, por exemplo, tão somente aquecer o prato de feijão e arroz na hora do almoço ou aspirar o pó do carpete da sala) e assim por diante. Noutras, podem estar atrás duma penteadeira onde jamais nos passaria pela cabeça olhar, dentro duma gaveta trancada cuja chave se perdeu há anos sem que alguém se interesse em procurá-la, debaixo da cama, no forro do banheiro, dentro do lustre da sala, no bolso dum casaco enfiado há séculos no fundo do guarda-roupas ou mesmo em alguma recôndita fresta no quintal que, por estar exposta às intempéries, consideramos impossível. 
Geralmente, a indeterminação do local em que fica o botão ajuda a explicar alguns pequenos mistérios que alguns de nós guardamos (e entre esses há mesmo aqueles que não apenas guardam mas inclusive alimentam os pequenos mistérios, e o fazem com afinco, até que vicejem e se tornem grandes enigmas labirínticos, mas essa já é outra história).
Dentre os aludidos pequenos mistérios que alguns de nós conservamos perante o botão, um dos mais corriqueiros talvez seja a inconsciência. Referimo-nos não à falta de percepção geral em relação ao mundo e sim à nossa capacidade de dar atenção à existência do botão. Muito simplesmente não tomamos conhecimento dele.
Seria natural supor que o botão serviria para fins, digamos, benéficos. Tais fins incluiriam ou poderiam incluir futilidades tais como elevar o prazer do orgasmo à máxima potência e experimentar assim o contato supremo com o divino através da combinação do gozo, o mister procriador e a necessidade de dar uma desafogada nos pequenos martírios do dia-a-dia, pois, afinal, ninguém, absolutamente ninguém é de ferro. Ou rastrear o caminho que um inesperado sorriso recebido numa manhã fria e entediante percorre desde nosso olhar, passando pelo cérebro e atingindo o coração. Ou finalmente erradicar da memória aquela lembrança da infância que insiste em nos assombrar sempre que suspiramos aliviados, pensando ingenuamente estar livres dela (e de algumas – ou muitas – outras).
Seria natural, mas não é. E seria bom se assim fosse. Mas o botão serve a propósito menos nobre, utilitário até. Propósito que evoca em cada um de nós sentimentos díspares.
Alguns de nós sentimos calafrio (uns na espinha, outros na base da nuca, outros em outros pontos do corpo – esse pobre corpo que nos é dado arrastar dum canto escuro a outro desde o nascimento e que vai ganhando massa, volume e peso e degradação e desconforto à medida que nos aproximamos do ainda mais escuro fim, mas talvez esta também seja outra história). Outros de nós somos tomados de pavor quando nos damos conta da serventia do botão (estremecemos em patético sinal a um deus inexistente mas onipresente de que, sim, somos fracos e estremecemos; abanamos a cabeça em inútil negação da nossa condição de seres aturdidos; sopramos o ar dos pulmões para mostrar que não estamos sufocando; soltamos uma gargalhada escrachada para mostrar que não, não estamos nervosos).
Certos dias, à noitinha, em alguns pontos espalhados pelos bairros mais longínquos, dois cidadãos (independentemente de sexo, raça, cor e religião) se cruzam em esquinas, balcões de padaria, caixas de supermercado ou guichês de casas lotéricas e, como se não tivessem segundas intenções, perguntam um ao outro:
– Então? Resistindo?
– Resistindo. Por incrível que pareça.
– Nem uma espiadinha hoje?
– Nem uma. A última foi no mês passado.
– Quem dera eu fosse assim. Hoje cedo quase cedi à tentação.
– Não diga!
– O meu fica atrás do armário da cozinha, você sabe. Eram umas dez horas. Não aguentei. Puxei o armário, desencostei da parede. Pus o bicho à mostra.
– Uau! E então?
– Então alisei. Passei o dedo bem de mansinho na cabeça.
– Que calafrio.
– Desisti bem na hora. Bem na hora.
– Espero nunca ter de passar por isso.
– A esperança é a penúltima que morre.
– A penúltima.


Memórias Livres do Cárcere Químico, Enfim I

It slips away, and all your money won't another minute buy


Parei a químio, hehehe. Taux me sentido ótimo, ótimo como já não me recordava poder me sentir, ótimo como quando me deitava às oito da noite depois dum banho redentor que me enxaguava do corpo a capa de poeira após um dia inteirinho de pelada no campinho na esquina de casa nas féria de julho, ótimo como o primeiro gole de Johnny Walker depois dum dia inteiro me irritando ante a tela do computador, ótimo como na primeira audição de Bluest Blues de Alvin Lee, ótimo como a primeira audição de A Day in the Life sentado no banco traseiro do DKW azul-cobalto de papai indo para Paranapiacaba em 1967, espetacular como minha primeira audição da Quinta Sinfonia sentado no sofá da sala numa tarde de 1965.

Tão ótimo, que só não encho a lata porque ainda dependo da metadona para me deletar as dores, de outra forma intoleráveis.

A metadona faz parte das drogas pesadas, you know. É usada por viciados em heroína para ajudar a passar pelo processo de privação, o chamado desmame, palavrinha que pode ser tão poética e ao mesmo tempo dura quanto o próprio opiáceo. Antes passei por Tramal e pela morfina, ambos insuficientes diante da Grande Dor tumorosa.

A metadona também é opiáceo. I mean, provavelmente me deixou viciado depois de todos esses meses e não tenho como comprovar. Provavelmente again, terei de tomar até o dia final, o dia em que Deus me convocará à Sua Presença no salão mais nobre do Palácio Celestial para a devida prestação de contas.

— Como te justificas? — perguntará Ele.

— De forma alguma, meu Senhor. Tudo que sei é que fui um grande desperdício.

— Sim, foste, obviamente. E a quem haveremos de imputar a Culpa?

— Só a mim, meu Senhor. A quem mais seria? A Ti?

Vem cá, a morte pode ser um barato. Um dos problemas são os alertas que te enfiam no cuca desde teu primeiro dia neste inferno paradisíaco em que tivemos o azar de cair. Sem falar da infinidade de ritos, liturgias e cultos em que nos metem de cara (sem filtro) para nos proteger da maldita.

(Pausa para um Continental, o preferido de papai, que o transportou sem escalas para o retrorreferido palácio, por obra dum enfarte fulminante: progressistas e afins estão jurando de pés juntos que não submeterão seus filhotes aos ritos, liturgias e cultos que nós outros mais velhos fomos obrigados a enfrentar. Tais progressistas acreditam que, impondo aos filhos uma educação (ou doutrinação) diferente daquela que receberam de seus pais, protegerão os coitados dos males que afligiram as gerações anteriores. É um erro abissal, claro. Que tipo de orientação darão a seus meninos e meninas que não tenha por base a experiência de vida? Simplesmente agirão ao contrário do que aprenderam com seus pais? Que e como conduzirão seus filhos pelo labiríntico caminho da vida se se recusarem a passar adiante o que aprenderam? Se foram ensinados a aceitar a religião, dirão a seus rebentos para repudiá-la como obra da fraqueza moral e psíquica humana? Se foram criados sob regras de disciplinas, permitirão que seus filhos cresçam mais ou menos ao deus-dará, sem referências, sem normas, sem leis, sem conceitos adquiridos na labuta diária pela sobrevivência? Se aprenderam, sob a "velha" biologia, que aquele que nasce com pênis é homem e aquela que nasce com vagina é mulher, deixarão que os filhos atinjam a pré-adolescência para então decidirem a que "gênero" pertencem? Se são esses o novo homem e a nova mulher, projetados na prancheta dos grandes engenheiros anticonvencionalistas que pretendem inaugurar a nova raça livre de preconceitos e destituída de crendices e intolerância, enfim apta a elevar a humanidade a um nível inédito de convivência e consciência, então me incluam fora dessa.)

Sim, a morte pode ser um barato, ao contrário do que pregam religiosos acríticos. Os há ainda piores, pseudorreligiosos que usam a religião para ganhar adeptos a esse ou aquele culto e ou conquistar corações e mentes de sofredores por meio de grosseiras rezas utilitaristas visando ao lucro fácil. Não, nada tenho contra a religião, mesmo a "organizada" como dizem os anglossaxões, como pode parecer quando assaco essas diatribes meio debochadas contra esse que considero um dos mais profundos SENTIMENTOS da raça. Quem me lê amiúde e atentamente sabe. Sou ardorosamente religioso, duma religiosidade que não se encontra em qualquer loja do ramo. Um dos meus maiores desgostos (que palavra, essa!) é não ter herdado de mamãe a crença fácil, fácil mas sincera e enorme, na religião e por consequência na vida, na vida após a morte, no sentido de passagem da humanidade no que é terreno e, naturalmente, nossa irrecorrível pequenez ante a Criação. Mamãe, mais que tudo, não se angustiava com a procura da Resposta, pois estava ciente de que não nos é dado conhecê-la e sim simplesmente cultivar a crença. Morreu aos 96 com o rosário entre os dedos, rosário que conheci ainda pixote nos infalíveis terços que rezávamos toda noite antes da novela das oito. Ou do Repórter Esso, não estou bem certo. Auch, que saudade, que falta me faz saber que não havia nada melhor ou maior que ver a família reunida em torno dum fim uno e comum, que nos unia com laços amorosos e delicados.

Meu fim "já" está planejado, se me permitem nesta hora algum non-chalance por falta de comportamento mais conveniente. I mean, mais ou menos planejado. Tomara que na hora não dê nenhum chabu. Correrei o risco, mãezinha. Você, com papai ao lado e a mana também, haverá de me conduzir. O primeiro sinal virá do meu rim esquerdo, o único que me resta, quase todo tomado por um tumor. Há na família quem me inste à hemodiálise. Há décadas decidi que never, já sabendo que um dia terminaria sem os dois rins. Combinei com os médidos dos Serviços Paliativos, dado o primeiro sinal, saio correndo para o pronto-socorro. Ali, ao consultar meu prontuário, o pessoal saberá que é caso terminal. Daí em diante será, ah como espero!, sedação e bye-bye, Jesus, 63 aninhos de dor e padecimento terão enfim encontrado um termo decente. Ao contrário do que dizia Nelson Cavaquinho, o sol não haverá mais de brilhar e o corvo de Poe terá sacramentado o desenlace, never more, never more e, com o trem já deixando a estação, you will hear the whistle blow e sob a lírica voz de Petula Clark, entoarei This is My Song, why is my heart so light, why are the stars so bright, why is the sky so blue...?


Taila







Taila,





Está quase na minha hora, acho que preciso ir.
Veja só, nem deu tempo de nos conhecermos.
Mas sei, ou melhor, tenho certeza de que estaremos bem.
Você sob as poderosas, tenras asas de sua mamãe,
Uma das moças mais formosas que tive a oportunidade de conhecer,
E sob a terna inflamação do tonitruante vozeirão de seu pai,
Esse esbelto, altaneiro mancebo que também pude conhecer desde o primeiro dia.
E estarás ainda sob a afetuosa e atenta fiscalização de sua avó,
a mulher mais meiga, mais adorável que a loteria da vida julgou por bem colocar ao meu lado.
Por quê? você um dia haverá de se perguntar — ou talvez a ela própria —, olhando uma foto antiga, por que o destino resolveu unir essa deusa da doçura a um cara tão feioso, tão sem-graça, quase um inveterado boboca?
Se me permite, minha doce Taila, se me permite estragar a expectativa da resposta, posso lhe afiançar agora mesmo — é por causa desse nosso estranho coração, que nos faz ao mesmo tempo geniais e otários, auspiciosos e amaldiçoados, felizes e tristes.
E você estará ainda — ah que sorte a sua, minha cara menina — sob a égide da mulher mais admirável que conheci em toda minha vida.
Se tivesse tempo, passaria dois dias inteiros aqui tricotando encômios à sua tia Vera.
Por isso serei rapidinho, e rasteirinho, neste item — Vera é tudo de bom ao mesmo tempo, o barco e as ondas, o cais e a bússola, a âncora e o horizonte...
À medida que crescer, minha suave Taila de olhos do fundo do mar, você verá quanto é fácil agarrar-se à mão de Vera e cerrar as pálpebras e partir com a segurança e a certeza de que encetarão uma viagem ao redor do mundo e da vida e retornarão ao ponto de onde saíram sãs e salvas.
E se ainda fosse pouco, você contará com a proteção do mais bravo, do mais forte guarda-costas que pode haver — seu tio Ulisses. Como o nome indica, Ulisses nasceu para perambular e travar guerras. Não, não se preocupe — cada guerra que trava ele a vence c'uma tipoia num ombro e, como se desdenhasse do perigo, um olho fechado.
Sim, estou certo de que estaremos bem.
Mesmo que não te possa dizer onde estarei eu, estarei bem.
Em primeiro lugar, porque fui e sou amado por esses seres memoráveis que descrevi aí acima.
E no mesmo lugar, porque os amei e os amo em cada segundo desta minha vida parca.
Que ora esvanece.
Não, não acredite quando te falarem sobre o pós-vida.
Esse troço de vida após a morte é bobagem inventada por fariseus que não tinham mais o que fazer e covardes que tremiam ao troar dum trovão. Quer uma prova? Ei-la — se nunca mais voltar para te roubar um beijinho desse teu rosáceo bochechão...
Não. A vida é simplesmente uma lâmpada que se acende, rutila (e, dependendo da vítima, pode resplandecer ou apenas, como é meu caso, ir queimando óleo até tremelicar e puf! morrer sem motivo nem razão — e, pior, sem bem porquê).
A tal da lâmpada pode pifar de repente ou — Deus me livre e guarde — ir judiando do cabra até ele pedir arrego.
Sim, como também é meu caso.
Não, não se preocupe, meu anjo. Vou te contar um segredo — nós serzinhos humanos de terceira somos dotados desse botãozinho mental — invisível quando nascemos e estamos bem — que surge do nada só para nos permitir tolerar o fim sem maiores polêmicas. Clique! e pronto. Até a próxima.
De minha parte, estarei bem, esteja certa, minha amorosa Taila.
De resto, espero que seu pai não torça aquele naso italiano dele pra essa gororoba de tempos verbais que deixo aqui. Simplesmente diga a ele, pai, o vovô disse que essas coisas são normais e você vai se acostumar com o tempo, hehehe...
Que nada, estou brincando. Se não fosse a fortaleza que é, ele não teria chegado aonde chegou.
Deixei por último o homem mais macho e terno que conheci em minha vida e acabei encerrando o textículo sem ele. Val, sorry. Você merece um verbete único, especial em minha claudicante enciclopédia, um estudo à parte. Se há uma oportunidade de lhe agradecer por tudo que me proporcionou e me ensinou na lida, é esta.
Ainda de resto, estarei bem, minha dileta Taila.
Junto com meu pai, junto com minha mãe, junto com meus irmãos, te olhando crescer, te olhando brincar, chorando quando chorares, rindo quando rires, todos torcendo para que teu caminho seja iluminado, de minha parte doidinho pra te dar um beliscão nessa tua tez de porcelana...

O elástico, a mola e o cabo



Literalidades

Descobri agora, tenho um elástico atado às costas — elástico que vou esticando a cada dia, a cada dia que passa. Se uma das pontas desse elástico está presa em mim, a outra está... Não vejo onde está presa a outra ponta. Talvez num dia longínquo. Que já vivi ou ainda vivirei. No amanhã. Ou não está presa.
É um elástico que nem esticado está. E, se estivesse, estaria simplesmente por estar. Achar que pudesse esticá-lo é apenas mais um dos meus desejos insatisfeitos. Estou atado a uma teia deles, em cujo centro bamboleio feito uma aranha vibrando ao sabor de suas tensões. 
Fiz outra descoberta — descobri que, além do elástico que não estica, tenho uma mola. Está armada, pronta para o disparo. Ela se retesa a cada pensamento que nasce dessa mina que me borbota por dentro, se retesa a cada palavra que preciso dizer e não digo, se retesa a cada gesto que me cabe fazer e não faço.
Devia haver um equilíbrio entre o elástico e a mola, mas não, é impossível, sei que é impossível. Pois que o impede uma presilha, que me sujeita ao hoje, à minha amada, a tudo e a nada.
Poderei abrir a presilha?
Sim. Abro. Pronto, estou solto. Alivio a tensão dos ombros, livre. Saltito. Tento correr. Só posso ir alguns metros, pois tenho um cabo, cabo atado à cabeça, que me controla meu curso e determina minha órbita e circunscreve meu alcance. Como se os tivesse, curso, órbita, alcance. Qual um radinho de pilha quebrado, o mecanismo de brinquedo desmontado e esquecido no fundo duma caixa de tranqueiras, um projeto que levaram tantos anos a desenvolver e por fim decidiram não dera certo, o velho radinho de pilha de alguém na vizinhança que encrencava bem no meio da transmissão do futebol para depois retornar à vida no meio da noite de domingo quando ninguém mais desejava ouvi-lo.
Quando penso nas distantes tardes de domingo, a mola se retesa. Me encorajo. Continue empurrando, penso. Subo. Vejo-me no telhado, nas mãos um punhado de pedregulhos, com os quais, um a um, armo meu velho estilingue e arremesso longe, bem longe, só para escutar cada pedra cair alhures. O esforço me deixa cansado. A mola se retesa e me vejo condenado a fazer milhões de lançamentos. Esperar nascer milhões de pensamentos. Nutrir milhões de amores.
Paro, escorrego, despenco. Caio no jardim. Aqui não, reluto. Aqui sim, insisto.
Descubro que o jardim está tomado de esperanças, esperanças que brotam do chão, das árvores, das folhas que se retorcem pela força do vento, reverberam a luz do sol. Aqui não, repito. Essas esperanças são fraudes — o rebanho de mentiras que mantenho trancadas em meu celeiro de mistérios, atrás da porta do tempo, para que não infestem os céus deste pobre jardim.
Mais devagar, peço. O cabo, a mola e o elástico, como se escutassem meu rogo, reduzem a pressão.
Se fosse sempre assim. Pedir e ser atendido. Prometeria, darei todas as contribuições que esperam de mim, adorarei todos os reis, pagarei todas minhas dívidas. Andarei devagar, serei prudente, previdente, cauto, o que quer que queiram de mim. 
O elástico às minhas costas me puxa para trás. Recomeço. Me leve aos dinossauros, peço. Antes da magnífica colisão do fabuloso meteoro na baía mexicana. Antes que refloresçam esperanças neste jardim. Antes do fim do ano. Antes das minhas modorrentas tardes de domingo.
Me deixo distrair pelas flores mortas. Terão nascido por mim? Morrido por mim? Nascido e morrido por mim? Meu sabiá-laranjeira pousa num galho próximo, surpreendentemente próximo, e desata a trisnar. A custo, presto atenção nele. É um sabiá-laranjeira de plástico, negro, terrivelvemente negro, postiço, entoando uma canção mecânica:
não me vejo, não há nada em mim, não
tenho começo, não tenho fim, sou feito
de encaixes, eles se abrem, me divido
você não tem fundo, você não tem lado
você nasceu para ser dividido, nasceu
para ser substituído, você é apenas
culpado. Nada mais que culpado.
Desesperado, me livro do elástico, da mola e do cabo e, sem olhar para trás, fujo do jardim. Quando me vejo na rua, tento me lembrar de meu próprio nome. Avanço pela rua sem saber como me chamo nem aonde vou. Escuto que clamam meu nome.
Como? pergunto.
Se não lembro como me chamo mas chamam meu nome, só podem ser os mortos.
Aperto os passos na rua escura, sem ousar prestar-lhes atenção. Em meio ao vozerio distinguo uma sentença:
— Somos os sem-voz!
Aperto ainda mais os passos, sacudo a cabeça para negar. Eles gritam mais forte:
— Somos os sem-voz!
Paro, vencido.
Eles falam:
— Paladino dos miseráveis, escuta! Tu, de todos os homens e entes que já habitaram este desafortunado planeta, tu és nossa esperança! Não nos abandonai!
— Seres destituídos! — replico — cuja morte não valeu sequer uma notícia aos parentes mais próximos ou aos vizinhos. Cujo desespero não produziu no Céu uma conferência de anjos. E cuja dor não logrou que Deus se comovesse e por fim aceitasse exterminar duma vez por todas vossa raça! Desisti! Amputai a esperança que teima em inflamar vosso peito!
Pensando ter-me desincumbido do meu fardo, prossigo pela rua com meus passos duros e determinados, sem saber meu caminho.
Sinto na nuca um assoberbante arrepio quando as vozes daqueles para quem a vida é sempre suja clamam mais alto. Simulo o olhar gélido de quem tem o coração impertubável ante o sofrimento alheio. Mexo os lábios imitando chamar o nome impronunciável de Deus.
A mais difícil missão, penso — penso e me desprezo por ainda parecer tão frívolo a meus próprios olhos –, a mais difícil missão é você se olhar e ter aceitar que você e as idéias que você tem de si e os planos com que forrou suas idéias não valem nada. Você não tem saída. Você é um erro — uma sujeira fora do alcance da eficiência nipônica, defeito irreparável pelo Geist germânico, tão supérfluo que nem como escravo te querem os senhores deste mundo.
De tudo que existe, nada pode ser meu. Esta rua que não sei aonde vai, esta placa cujos dizeres não me dizem nada, estas pessoas cujo olhar me atravessa como se eu não estivesse aqui. As soluções encontradas por grandes homens para outros grandes homens não são para mim.
Escuto algo novamente. Desta vez são passos. Alguém se aproxima. Ao passar por mim, diz a outro alguém que está a seu lado:
— É tarde demais!
O veredito começa a ecoar em meus ouvidos: é tarde demais! é tarde demais! é tarde demais!
Será tarde ainda? — pergunto em voz baixa e me espanto com a ternura em minha própria voz e me refaço. Procuro forjar uma razão que me leve a me sentir desprezível. Sou o mais execrável dos racistas. Sou o mais asqueroso dos misóginos. Nazistas que massacravam crianças enquanto riam de suas patéticas súplicas são meu ideal, infantes que morrem esmagados sob os negros tacões dos justiceiros, o martírio deles é minha regra! Benditos sejam os que inventaram todas as guerras e suscitaram todas as dores e separaram mães e filhos e torturaram todos os justos!
Olho a rua, está tudo em ordem. Tudo em ordem.