Memórias Livres do Cárcere Químico, Enfim I

It slips away, and all your money won't another minute buy


Parei a químio, hehehe. Taux me sentido ótimo, ótimo como já não me recordava poder me sentir, ótimo como quando me deitava às oito da noite depois dum banho redentor que me enxaguava do corpo a capa de poeira após um dia inteirinho de pelada no campinho na esquina de casa nas féria de julho, ótimo como o primeiro gole de Johnny Walker depois dum dia inteiro me irritando ante a tela do computador, ótimo como na primeira audição de Bluest Blues de Alvin Lee, ótimo como a primeira audição de A Day in the Life sentado no banco traseiro do DKW azul-cobalto de papai indo para Paranapiacaba em 1967, espetacular como minha primeira audição da Quinta Sinfonia sentado no sofá da sala numa tarde de 1965.

Tão ótimo, que só não encho a lata porque ainda dependo da metadona para me deletar as dores, de outra forma intoleráveis.

A metadona faz parte das drogas pesadas, you know. É usada por viciados em heroína para ajudar a passar pelo processo de privação, o chamado desmame, palavrinha que pode ser tão poética e ao mesmo tempo dura quanto o próprio opiáceo. Antes passei por Tramal e pela morfina, ambos insuficientes diante da Grande Dor tumorosa.

A metadona também é opiáceo. I mean, provavelmente me deixou viciado depois de todos esses meses e não tenho como comprovar. Provavelmente again, terei de tomar até o dia final, o dia em que Deus me convocará à Sua Presença no salão mais nobre do Palácio Celestial para a devida prestação de contas.

— Como te justificas? — perguntará Ele.

— De forma alguma, meu Senhor. Tudo que sei é que fui um grande desperdício.

— Sim, foste, obviamente. E a quem haveremos de imputar a Culpa?

— Só a mim, meu Senhor. A quem mais seria? A Ti?

Vem cá, a morte pode ser um barato. Um dos problemas são os alertas que te enfiam no cuca desde teu primeiro dia neste inferno paradisíaco em que tivemos o azar de cair. Sem falar da infinidade de ritos, liturgias e cultos em que nos metem de cara (sem filtro) para nos proteger da maldita.

(Pausa para um Continental, o preferido de papai, que o transportou sem escalas para o retrorreferido palácio, por obra dum enfarte fulminante: progressistas e afins estão jurando de pés juntos que não submeterão seus filhotes aos ritos, liturgias e cultos que nós outros mais velhos fomos obrigados a enfrentar. Tais progressistas acreditam que, impondo aos filhos uma educação (ou doutrinação) diferente daquela que receberam de seus pais, protegerão os coitados dos males que afligiram as gerações anteriores. É um erro abissal, claro. Que tipo de orientação darão a seus meninos e meninas que não tenha por base a experiência de vida? Simplesmente agirão ao contrário do que aprenderam com seus pais? Que e como conduzirão seus filhos pelo labiríntico caminho da vida se se recusarem a passar adiante o que aprenderam? Se foram ensinados a aceitar a religião, dirão a seus rebentos para repudiá-la como obra da fraqueza moral e psíquica humana? Se foram criados sob regras de disciplinas, permitirão que seus filhos cresçam mais ou menos ao deus-dará, sem referências, sem normas, sem leis, sem conceitos adquiridos na labuta diária pela sobrevivência? Se aprenderam, sob a "velha" biologia, que aquele que nasce com pênis é homem e aquela que nasce com vagina é mulher, deixarão que os filhos atinjam a pré-adolescência para então decidirem a que "gênero" pertencem? Se são esses o novo homem e a nova mulher, projetados na prancheta dos grandes engenheiros anticonvencionalistas que pretendem inaugurar a nova raça livre de preconceitos e destituída de crendices e intolerância, enfim apta a elevar a humanidade a um nível inédito de convivência e consciência, então me incluam fora dessa.)

Sim, a morte pode ser um barato, ao contrário do que pregam religiosos acríticos. Os há ainda piores, pseudorreligiosos que usam a religião para ganhar adeptos a esse ou aquele culto e ou conquistar corações e mentes de sofredores por meio de grosseiras rezas utilitaristas visando ao lucro fácil. Não, nada tenho contra a religião, mesmo a "organizada" como dizem os anglossaxões, como pode parecer quando assaco essas diatribes meio debochadas contra esse que considero um dos mais profundos SENTIMENTOS da raça. Quem me lê amiúde e atentamente sabe. Sou ardorosamente religioso, duma religiosidade que não se encontra em qualquer loja do ramo. Um dos meus maiores desgostos (que palavra, essa!) é não ter herdado de mamãe a crença fácil, fácil mas sincera e enorme, na religião e por consequência na vida, na vida após a morte, no sentido de passagem da humanidade no que é terreno e, naturalmente, nossa irrecorrível pequenez ante a Criação. Mamãe, mais que tudo, não se angustiava com a procura da Resposta, pois estava ciente de que não nos é dado conhecê-la e sim simplesmente cultivar a crença. Morreu aos 96 com o rosário entre os dedos, rosário que conheci ainda pixote nos infalíveis terços que rezávamos toda noite antes da novela das oito. Ou do Repórter Esso, não estou bem certo. Auch, que saudade, que falta me faz saber que não havia nada melhor ou maior que ver a família reunida em torno dum fim uno e comum, que nos unia com laços amorosos e delicados.

Meu fim "já" está planejado, se me permitem nesta hora algum non-chalance por falta de comportamento mais conveniente. I mean, mais ou menos planejado. Tomara que na hora não dê nenhum chabu. Correrei o risco, mãezinha. Você, com papai ao lado e a mana também, haverá de me conduzir. O primeiro sinal virá do meu rim esquerdo, o único que me resta, quase todo tomado por um tumor. Há na família quem me inste à hemodiálise. Há décadas decidi que never, já sabendo que um dia terminaria sem os dois rins. Combinei com os médidos dos Serviços Paliativos, dado o primeiro sinal, saio correndo para o pronto-socorro. Ali, ao consultar meu prontuário, o pessoal saberá que é caso terminal. Daí em diante será, ah como espero!, sedação e bye-bye, Jesus, 63 aninhos de dor e padecimento terão enfim encontrado um termo decente. Ao contrário do que dizia Nelson Cavaquinho, o sol não haverá mais de brilhar e o corvo de Poe terá sacramentado o desenlace, never more, never more e, com o trem já deixando a estação, you will hear the whistle blow e sob a lírica voz de Petula Clark, entoarei This is My Song, why is my heart so light, why are the stars so bright, why is the sky so blue...?


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