Não insista, sou incorruptível

O olhar de minha mãe deitada no sofá tendo o derrame que em dez segundos a carregaria embora não era tão vazio quanto eu.
Minha sombra assomando no muro contra o qual caminho e do qual não saberei para que lado virar quando o atingir não é vazia como eu.
O mundo sem palavras que você me deixou quando me deixou não é vazio como eu.
O copo na mesa ao longo da interminável noite carregada de vazio não é nem nunca será vazio como eu.
Não estou certo se nasci vazio.
Minto. (Os vazios não têm saída senão dizer mentiras, que são apenas verdades vazias.)
Nasci, sim. E estou certo de outra coisa – mesmo totalmente vazio, vou-me esvaziando sem parar dia após dia. Nem por isso uma vez sequer me perguntei para que serve a ciência. Para os vazios, nada serve para nada.
Um dia, me sentindo tão vazio que não conseguia me sentir, escutei ao longe o terceiro movimento da sonata 31 opus 110 de Beethoven.

E por inteiros dez minutos pude me enganar que um dia houve alguém neste planeta que me ensinou a me salvar ao menos durante dez minutos.

Entremundos


No hay dilema

Escribir por los tontos

Escribir por los ángeles

Escribir por los sensibles

Escribir por los muertos

Escribir por los vivos

No hay misterio 

No hay dudas para

Quienes escriben

Sólo por sí.

(Las palabras que no decifrarán jamás.)

Mensagem extraviada

Bom dia, como tem passado? Raios, queria tanto lhe deixar esta mensagem bem cedinho, pra você ler assim que acordasse com a avidez habitual pelas novidades do mundo, à flor da pele a plena receptividade aos estímulos do exterior e, espírito mergulhado no que lhe é alheio, corresse a ver as novidades trazidas matinalmente pelo celular e, no aturdimento ávido do seu pulsante sorver, quem sabe seu dedinho sem querer clicasse o botãozinho das fotos no aparelhinho e sem querer tirasse um instantâneo do seu sorriso involuntariamente escancarado ao ler esta minha humilde, esta minha modesta, esta minha nebulosa confusa sibilina porém fervorosa e franca mensagem de bom dia, como tem passado! mas, que droga(!), venho acordando tarde estes malditos, estes abençoados dias, ando com o sono mais errático que eletroencefalograma de epilético, bem, "ando" é, você sabe, força de expressão, nos conhecemos de outra dimensão, aquela em que o amor não requer coragem nem estudo, por isso sei, sei que você sabe, nasci assim, é meu estado permanente, você acha que o ser humano tem capacidade de mudar, digo, mudar ao longo da vida, mudar algo tão profundo e enraizado quanto o jeito de ver as coisas, de lidar com os outros, reagir às injunções que o mundo nos impõe, pensar sobre as coisas à medida que as coisas nos acontecem ou deixam de nos acontecer, dormir do jeito que dormimos desde que nascemos? Sei que não, não, não sei muita coisa sobre coisa alguma e sei que você sabe, sei que me conhece até o último confim da minha alma, a derradeira fibra do meu mais profundo medo e, aqui é que reside a delícia de sermos o que somos aquilo que somos um para o outro, sem receios recíprocos, sem nos aproximarmos somente para explorar nossas fraquezas mútuas tal como fazem os mortos no mundo dos vivos, não, não é verdade que não sei nada, sei que mudamos apenas na periferia, na superfície, no que pode ser mudado sem que algo importante realmente mude, provocamos mecanicamente uma mudança ilusória que nos faça prosseguir mudados mesmo sendo os mesmos que sempre fomos, tudo bem, falo de mim, não sei falar de outro assunto, sou meu grande tema, sou meu grande público, sou o único sujeito que me interessa conhecer e sobre quem tenho ânimo de especular, para quem gostaria imensamente de encontrar uma saída, o único a cujas reações dou algo de importância, sou meu grande amor, minha única paixão, sou aquele que me tira do sério, que me desconcerta, que ainda me dá alguma esperança de que tenho uma saída, tudo bem, pode escarnecer, sim, talvez sofra, tal qual cinco bilhões de outros bípedes, desse narcisismo mórbido que come solto por aí, a nova espécie navegante que só acorda do delírio digital se consegue se identificar num caco de espelho que pode refletir quando muito um milionésimo do que se passa dentro e fora deles, digo, de nós, digo, de mim, não, não sou desses que deitam palavrório sobre tudo e mais um pouco, sabichões com ideia formada sobre tudo e todos, os opiniosos diligentes, sujeitos que vivem a propalar aos ventos "olha, sou assim, olha, sou assado", esses, quando proclamam esse tipo de asneira, a cara deles me faz bocejar dum sono profundo de querer virar estátua de sal in loco, já passa das dezoito horas aqui neste fatídico ponto geográfico formado por minha latitude e tua longitude a mais de 800 metros acima do mar da Praia Grande em cujas areias tomadas de lixo e manchadas de óleo e ocupadas por trogloditas tantas vezes me apaixonei perdidamente só para ficar perdidamente perdido pelo resto do verão e da vida, isso lá são horas de dar alvíssaras matinais a quem provavelmente a esta hora chega em casa depois dum dia inteirinho da mais inglória labuta? ausente de si e do mundo e de mim por tantos dias sem dar qualquer satisfação nessa típica, nessa tão execrável atitude do brasileiro que tanto me constrange, que tanto recrimino quando a vítima sou eu, sinceramente, me desculpe, vou me esforçar ao máximo para não acontecer de novo, embora deva ressalvar que o dia começa — o meu pelo menos — à hora em que acordo, não àquela que o relógio me pretende ditar e para ser inteiramente sincero mais uma vez raramente sei com certeza se estou acordado, dormindo ou sonhando, se vou sem ter voltado, se volto sem ter ido, é problema filosófico dos mais complexos, infelizmente sou um sujeito bem complexo mesmo, nasci atormentado, vivo atormentado, mas dureza mesmo foi a adolescência, aquele coquetel de hormônios diabólicos com que dona natureza costuma nos brindar, sofri o cão dos 13 aos 16, me desculpe mais uma vez, não devia falar assim, não vá pensando que me esqueci de saudar a primavera, não esqueci não senhora.


Hoje é sexta-feira

Hoje é sexta-feira, dia mais chato que folhinha de parede com alpes suíços. Como já deve estar claro a esta altura, nossa vigília preguiçosa de nós nunca nos deixou perceber muitas coisas. A ponta do dedinho pousa na veia. Bombeando que não é mole, latejuda. Nem do mundo, nem das outras pessoas com quem tivemos o breve mas intolerável amargor de conviver por algumas razões que não vêm ao caso, nem de nós mesmo. Por isso aprendemos poucas coisas na vida. Entre essas poucas está a caganeira. Quando a bicha pulsa querendo estourar desse jeito, a coisa tá braba. Não adianta bufar nem morder o lábio quase até sangrar buscando resignação.
Caganeira dos nossos intestinos.
Por isso é que sempre diz a boca que quem pensa que é hereditário se engana. Nesse aspecto cultivo até um certo nível de soberba. A memória tenta lembrar direitinho.
Descobriu-se a veia na pré-adolescência. Estávamos sentados no sofá da sala os olhos olhando o teto como faziam todos os dias durante seis, quatro horas, chateação mais aguda que a de pardal trancado na gaiola cuma jaguatirica, quando um dedo se pôs embaixo do queixo e sentiu uma bombinha. Quase tomamos um susto. Será o fim? Mas o sobressalto só durou uns três segundos e oito décimos. Melhor assim. Explodir e terminar essa merda duma vez. Sonhando, a mão começou a alisar sob o queixo, sentido o tuntuntum. De vez em quando um dedo apertava bem em cima dela com a ponta e segurava uns instantes. É agora! Agora que vamos acabar.
Embora tenhamos a cuca embotada, cedo deduzimos que nossa purice nos acabaria deixando maluco. Até aí nenhum problema, pensava inocente o cérebro. Pelo contrário. Acreditava que a combinação de purice e loucura daria um gostoso e frutífero casamento de sentimentos, sensações, emoções e pensamentos autodestrutivos e improváveis que a partir da lua-de-mel tentariam conviver em conflitos cada vez mais assoberbantes, até nos levar a todos ao Eu Supremo. Será a glória, antegozávamos abestalhado, sempre cada vez mais empurecido por estarmos tendo um prazerzinho que fosse, mesmo que antecipado.
Anotam os dedos o endereço num papel em cima da mesinha do telefone. Enfia a mão o papel no bolso das calças. Saem as pernas pra rua, os olhos olham pro céu, procurando um meteoro.
Um dia, sabe-se lá quando, uns sete, quatro anos, acordamos estranho. Tudo bem, até hoje acordamos estranho todo dia – e tem dia que a estranheza vai crescendo, crescendo até nos deixar nesse estado quando chega a noite –, mas de todos nossos dias estranhos aquele foi mais estranho que os outros.
Nenhum meteoro, pra variar. Pagávamos pra ver um do tamanho da Lua acachapando esta cidade e todos os filhos-da-puta que vivem aqui e este país e todo este mundo nascido duma esporrada de deus no rabo duma libélula gigante sem asas, e biscate.
Mas nossos horizontes não continuaram execravelmente alvissareiros por muito tempo. Depois de alguns dias em autoindulgência nauseante, uma nova dedução começou a tomar forma no fundo desta alma que não haverá de reencarnar. A dedução logo virou preocupação: e se aquilo que estávamos prevendo fugisse do nosso controle por qualquer motivo e terminasse por nos condenar a uma cela imunda no juqueri, a indômita verve domada por quilos de gardenal e ansiolíticos, balbuciando versos de pessoa e suando baba feito uma estalactite banguela pondo pus pela boca gosmenta?
Tamos amolecendo, putz. É a idade. Por isso pedimos: deus, só mais uma gota.
Os olhos olham o endereço no papel. São Sebastião, 283. Atravessam as pernas a rua, dobram a esquina, andam três quarteirões, param no ponto, cruzam-se os braços, retesam-se os ombros, crispam-se os punhos, a vida, o dia, a noite, o tempo, o furacão esperam o ônibus.
Queríamos ver a cara dos bundões. O auge da humanidade foi a época dos dinossauros, quando a gente vivia sendo esmagada por chuvas de planetas na primavera, tempestades de meteoritos no verão, garoas de cometas no outono.
Pra podermos concluir nossa missão.
Estremecem. Será o fim do doce estado furibundo a que nos acostumamos desde a mais tenra idade? Então, inefavelmente terno conosco mesmo, abandonamos o projeto. Não poderíamos correr o risco de perder toda a suculenta purice que este nefasto espírito-de-porco-espinho vinha paciente e diuturno cozinhando, puro de esperar a hora em que Ela finalmente maturaria, transbordando sôfrega pelas orelhas, escorrendo lascivamente pelo chão do quarto, se espalhando pela sala e pela cozinha, se infiltrando pelos vãos das portas e janelas, extravasando para a rua, ganhando corpo e consistência e cor e brilho, fluindo pelas estradas, inundando as cidades, até que tudo ficasse envolto num mar de purice apodrecida em que germinariam novos seres empurecidos putrefatos.
A veia dá uma latejada, só uma, pedindo carícia. Calma, neném, calma que o dia vai ser comprido feito o novelo emaranhado da passamanaria das ruas que já trilhamos.
Começou antes de se abrirem os olhos. Olha, o que acontece aqui dentro antes de se abrirem os olhos dava uma bíblia. Claro, já passou pela cabeça frita a idéia de escrever um livro chamado purildos-wake. Era um terremoto n’alma. Embora venha todas as manhãs e tentemos nos precaver, nunca estamos suficientemente preparado.
Sabe-se, essa merda de pseudopoesia de segunda só serve pra nos deixar – adivinhão – puronildo da silva. (Sobretudo quando começo a imitar um enteado fremente asqueroso professorzinho de bosta lambe-rabo-de-francesa-menstruada, aí que não cabemos em nós.)
As pernas entram, a mente acha um lugar, senta-se a bunda, as mãos fecham os olhos.
Cedo aprendemos um macete com que contávamos afastar o perigo de acabar inapelavelmente de frente conosco mesmo numa vasta noite soterrada sob o silêncio.
Puralhaço. Purirífico. Purirívago. Purãozudo.
Aos oito ou onze anos matávamos aula pra passear no circular. E, tal como todas as grandes descobertas da humanidade, essa também se nos ocorrera fortuitamente.
Era uma das várias excursões que aprendemos a fazer ainda pequeno. No começo pegávamos o primeiro ônibus que passasse. Foi há uns sete anos ou onze dias. O intestino estava ficando preso por períodos cada vez mais prolongados. Não era recente, só que... só que nos últimos tempos a coisa tava calando mais fundo, se nos entende. A maioria dos motoristas não deixava.
Nos mandavam descer quando percebiam que tínhamos ido fazer excursão. Depois de alguns dias conseguimos descobrir um que não ligava. Ficamos amigos um pouco. O único amigo que já tivemos. Só podia ser por causa dessa porra de querer ser o tempo todo, claro. Isso e o hábito que vinha tomando forma havia uns meses de engolir pimenta malagueta de manhã, à tarde e à noite pra que o mundo ficasse um pouco mais puro do que já era.
É assim. Primeiro começam a aparecer umas lembranças indesejáveis. Não temos uma que não seja, certo, mas aquele dia vimos – tudo bem, as pernas ficaram meio moles – que não ia ser fácil. Você sabe, o maior estanca-Cú que existe no mundo é a pimenta malagueta. Se tu tá com diarréia, manda ver. Tiro-e-queda, nas palavras da mamãe, a purelda, que, graças, esticou as canelas quando nascemos. Então como sabemos que ela dizia tiro-e-queda? Cátso, por que não haveria de dizer?
Outra excursão que fazíamos ainda nos tempos da escola era ir na casa da marlene tomar cerveja. Mais japa e alemão. A marlene dava um copo de cerva pra cada um de nós toda vez que íamos lá deixar ela chupar nossa pica. Pena que as rolinhas são tão petiticas!, ela reclamava rindo enquanto nos batia punheta, um de cada vez, pois usava as duas mãos, uma trompeteando a rola, a outra sovando o saco e garroteando a base do pinto.
A, aquilo que era punheta. Comparando, as outras pareciam a camille-paglia dando um bloujob na mesa do legista.
 Umazinha chocha, outra como quem não quer nada. Eu só assistindo, mudo, numa de estóico. Japa e alemão tagarelando um com o outro, um papo-furado sem fim feito comercial de desodorante, queríamos enfiar uma banana de dinamite em cada orelha e acender com uma tocha de acetileno, sem prestar atenção no que o outro diz, não nos deixam também prestar atenção. Nessa época as prisões-de-ventre eram sobremaneira atrozes, embora no início tivessem sido um bom auxílio pra extinguir qualquer possibilidade de conforto que pudesse passar por esta enorme pesada cabeça cheia de cancros – as prisões-de-ventre e outros subterfúgios que devagarinho fomos aprendendo a usar contra nós mesmo, dos quais falaremos alhures se houver tempo –, bem, as prisões-de-ventre estavam se esticando cada vez mais.
A marlene era uma turca fedida – fedida no duro, aca de camela inchada do sêmen do harum-al-rachid. Pesava uns 147 quilos. Viva implorando que lhe comêssemos a buceta. Virava-se a cara enojada. Se comêssemos, dava mais um copo. Na próxima, tergiversávamos. De tanto ela encher o saco, um dia o babaquara do alemão topou. Subiu encima da pantagruela, se pôs a saracotear. De repente o fardo de banha virou o corpanzil, ficando por cima do sorongo estrebuchando epiléptica. O aparvalhado começou a gritar me-acuda. Eu e o do japa tentamos desmontar a baleia de sobre o pongó impotentes.
De oito ou dois dias no início, as prisões-de-ventre logo passaram a quatro semanas ou dez minutos. Se antes se lograva diluir discreta e satisfatoriamente os efeitos da flatulência dando as pernas curtos e dissimulados passeios no quintal antes de se recolher ou, quando não era possível se isolar de outras pessoas a distância prudente, apelando a truques como fingir a garganta limpar um pigarro ou, dependendo do volume que sentia o abdômen acumular em si, ter logo um acesso de tosse, assim que tinham início os inexoráveis peidinhos – e você não pode imaginar quão difícil é tossir e exalar puns sincronizadamente, agora o ventre produzia mais gás metano que mina boliviana, que liberava para a atmosfera feito um ônibus diesel da linha largo-paissandu-vila-sônia. Somos o que somos, não se nega, mas impolidos não. Ainda mais quando se trata de singelas manifestações destas insondáveis entranhas.  Bem, o troço começou a durar nove meses, cinco anos, sete segundos.
Já viu buceta de turca obesa? Não queira.
Japa trepou nas costas da búfala e começou a cavalgar, gritando eia-eia-eia! Alemão tava inteirinho roxo, mais um tico já era. Enfadados, se decidiu ir embora, quando se nos ocorreu que a conceição, mãe do alemão, provavelmente deixaria de nos dar o rabo se ele falecesse sem uma explicação plausível. Vinha a rola comendo a coroa fazia uns três dias ou cinco semanas, desde o nosso décimo-sétimo aniversário. Foi a primeira mulher casada que a rola traçou. Depois dela todas as transas tinham de ser com dona corneando o marido. Conceiçãozinha era especial. Cabelinho castanho curto, franjinha no meio da testa, tetinhas salientes espevitadas cônicas prontas pra explorar o espaço celeste, biquinhos de sensibilidade instantânea, era só nos ver ficavam hirsutinhos, pedindo me-chupa! Mas o mecanismo supremo era a boquinha. Abocanhava a rola e não largava enquanto não se enchesse de porra, que não deixava escapar um pingo com linguão de sapa. Tem vitamina, a coroinha ria, engolindo e se lambendo. Eu parava em frente a porta dela e berrava alemão! alemão! Ele tá na escola, conceição berrava lá de dentro. Mas entra pra tomar um guaraná. Entrava. E saía pouco antes d’alemão voltar da escola.
Lembramos dum filme que o irmão tinha comentado. Mesmo não vendo a mínima grança em cinema, foram as pernas no quintal, pegaram as mãos um rodo, foram as pernas na geladeira, besuntaram as mãos o cabo do rodo com margarina, voltaram as pernas pro quarto e fez a mão sinal pro japa pascacito abrir a bunda da capivara. Nos afastamos um metro, os olhos miraram, as pernas arremeteram. O cabo entrou que foi uma seda. A leitoa ergueu a cabeça e os braços, berrando, gozei! gozei!
Se quer saber, não há maior martírio. Embora fique bonito, certo, os pensamentos começam a dançar ainda mais confusos do que já são, você perde qualquer agilidade que tenha, os movimentos se deixam suplantar por uma lerdeza asfixiante, não dá nem mais vontade de falar. A barriga começou a expandir, olhar, expandir, escutar, expandir, cheirar.
Quando nos tocamos já parecíamos não um homem mas um genuíno caroço ambulante. Quase começamos a mudar de nós. Se não resolver, pensava a mente, logo vamos fazer quatro anos sem cagar feito um filho-duma-alpaca e vamos ficar mais chato que sonhar com coceira. Quatro anos não cagando sem parar. Suspendeu-se a malagueta, sem êxito. Suspendeu-se o guaraná com canudinho. Nada.
Os pares de lembranças indesejáveis viram trios. Logo quádruplas. Os olhos só olhando, tímido geométrico como sempre fomos. Quando resolvemos sair do estoicismo é tarde. Estão dançando quadrilha à nossa volta. Tagarelando, batendo palmas, tagarelando, socando os pés, tagarelando.
Sabe o que é o melhor de tudo na nossa vida?
É este nosso estado permanente de empurado.
Mas às vezes vacilamos. Vem a vontade de dizer chega. Quem já teve vontade de dizer chega sabe. Também não se explica.
Certo dia, já adulto nos deu uma fina saudade sem mais nem menos e voltei na casa da marlene. Levamos a peixeira, por via das dúvidas. Não por causa duma possível reação dela. Mas nossa. Naquele tempo andávamos taciturno e quando andamos tacirtuno começamos a querer ficar imprevisível. Desceram as pernas no ponto e chegaram direitinho. Nós mesmo vivemos nos espantando com essa memória geográfica mecânica. Quando se trata de endereço, então é infalível. A memória tenta lembrar mais que o proust criado sob doses cavalares de biotônico-fontoura.
Ninguém nos deve comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes. Ninguém nos deve porra nenhuma. Tá ouvindo? Porra nenhuma. Por isso somos muito mais o que somos.
Pena que seja só na geografia. O resto, a cabecita esquece tudo. Exagero não. Esqueceu como era papai, nossos irmãos. Esses, tenta lembrar que os tinha, quantos, não.
As pernas entram no Bar São Caetano na hora marcada. Se achegam ao balcão. O pato serve um pingado a um freguês. Faz um tique com a cabeça, ele responde com outro. Depois de atender o cretino do freguês, vem pra este lado.
Senhor, vos suplico: só mais uma gotinha.
Os cachorros, esqueceu todos. As estações do ano. As flores. Os sabões em pó. Os tipos de comida. Qual presidente se matou cum tiro na barriga. A função do estômago. Quando hitler ganhou a guerra. Pra que usar roupa. A última vez que andamos de esputinique. Mas logramos perpetrar um exercício que ninguém logra – esquecer o dia em que comemoravam os nossos anos. É só querer, pronto, tá esquecido. Dura algumas horas. Se você perguntar o dia dos nossos anos logo depois do exercício, dizemos que a memória não tenta lembrar. Ninguém acredita, claro. Respondem – compreensivelmente, cremos – que é truque. Mas não é.
Não é. Muito Mais.
Começa o tremor. Incomodozinho chato, fazemos de conta que não sentimos.
Cinquenta e um uma, a voz pede. Ele põe e diz que é por conta da casa.
– A foto – a boca diz.
Chegamos, o corpo fica um tempão parado diante do cortiço, olhos olhando. Não tinha mudado porra nenhuma. Sem portão como naquele tempo, gritaria embriagada de querer um tiro de calmante na medula, sotaques de cada rincão do nosso alheio nordeste, cheiros mais vários que a escala infinita do jardim da via láctea, fios d’água multicor borbulhante rala e turva descendo inexoráveis paralelos pelo quintal de terra batida para desagüar n’algum buraco negro fantasmagórico, tudo camuflado pelo tropel de varais embarrigados dando uma triste banana à lei da gravidade.
Ele tira uma foto do bolso das calças, passa voltada pra baixo, escondendo dos outros.
Pega a mão, olham os olhos bem, viram os dedos. Atrás tem o endereço.
Vamos até a penúltima porta. A porta está aberta. Batem palmas as mãos. Sim, somos o que somos. Menos intrujão.
Vira-se de novo. O corpo fica os olhos olhando. Os olhos olhando, não estudando. Nunca gostamos de estudar.
Uma menina d’uns doze anos enfia a cara pela cortina de plástico.
Vamos pro bar do carlão.
Dona conceição está, pergunta a boca.
Cinquenta e um uma, pedimos. Ele põe e diz que é por conta da casa.
– A foto – diz a boca.
Puxa a peixeira a mão.
Ela faz que não.
Vá chamar sua mãe.
Meio metro de lâmina de ferro mole, mais afiada que a língua do oscar-wilde depois de levar corno de estivador.
Que é, a mãe aparece já querendo saber. Cabelão escorrido ensebado multicor espanta-olhos roçando no ombro. Tetões escorridos dentro da blusa de pano. Que fizeram com teus biquinhos, santa-maria? Cearense, pergunta a voz.
Ce sabe, aço não pega fio. Cabo de madrepérola ornado com pedrinhas de rubi e esmeralda. Bom-gosto não é o nosso forte, putz.
Não erramos uma. Pode pôr aí pernambucano, cearense, piauiense, maranhense, sergipano, baiano, potiguar, tudo enfileirado de banda e me os olhos. Basta uma palavrinha. Acertamos na pimba. Apostamos. Menos caixa de cerveja, que a boca não bebe nada com gás.
A marlene ainda mora aqui, perguntamos. Não sinhô. A boquinha elástica miraculosa virou murcha e informe e escalavrada. A antiereção final.
Mudou, perguntamos. Morreu. Faz tempo. Três, onze, cinco meses. De quê. De cabo de rodo. Uma sangreira que só vendo.
 Somos o que somos e também jeca, que hei de fazer wladimir-nosso-véio. Comprime-se a mão cerrada em volta do cabo espremendo com tudo que pode mas não a ponto de permitir ao rosto expressar que estamos nos esforçando. Sente rubizinhos e esmeraldinhas entrando na pele. Depois que passa, o maior barato é deixar os olhos olhando as marcas das pedrinhas na palma da mão.
Tamos ficando velho, tendência a esmorecer. Não é só força de expressão. A Tendência-A-Esmorecer puxa uma perna. Você se achava o gostosão, dono do autocontrole, de repente a capacidade de empurecer falha, navalha, farfalha pífio feito um relâmpago de 40 velas.
O cabra moreno de lábios grossos de quem tem voz pastosa e cara de quem trai a mulher e de quem não tem lembrança, uma sequer, da infância e de quem não imagina o que signifique a palavra cordura vai ao banheiro. Tô zonzo. As mãos dão um tempo. Vão atrás as pernas. Nessas horas sempre tem-se de redobrar os cuidados, dá à puta que te pariu comichão de convidar o freguês pra tomar um absinto, dizendo, nunca tomamos absinto, e você, van-gogh confrontando o Grande Vazio Cheio de Dor, e se ele dissesse que sim, seria poupado, pelo menos é uma chance, somos o que somos exceto atrabiliário, embora saiba que a probabilidade de encontrar um freguês que já tenha tomado absinto é, sim, é pequena, mas e se o cara disser que sim mentindo e eu não tiver como comprovar se ele tá sendo sincero, nem si mesmo sabe-se que gosto absinto tem, depois nunca tentar procurar encostar num balcão e pedir uma dose só pra saber, mas assim vamos nos rodeando. Mas nessas horas se fica um sujeito sério. Mas que calor hoje, hein, puxa a boca conversa, ele mijando no último mictório, tentando ficar o mais afastado possível dos outros. Pela abertura das pernas, o movimento do braço que segura o pinto e a inclinação da cabeça, percebe-se que tem dificuldade em urinar. Também temos. Às vezes o pinto só consiue mijar pondo-se no vídeo uma fita de niagara-falls e subindo-se o volume da tevê até o máximo. É hereditário. Vovô também tinha. Papai não se sabe, pois não tivemos pai. Às vezes, bem no meio da mijada, põe a mente a pensar se as cataratas-do-iguaçu não seria melhor. Aí o mijo pára e não volta mais. Empurece-se. Sempre se quis ser patriotas, mas não levamos jeito. É hereditário.
Mas que calor hoje, hein, no mictório ao lado põe-se a mão na altura do pinto, fazendo de conta que o último está para mijar. O cabra olha abalado, querendo xingar, porra, tem três mil mictórios desocupados nessa merda, ceis pegam e escolhem logo um do meu lado, seus filhos-dum-judeu.
Pobrezito, a última mijada. A última mijada quer o pinto dar em poços-de-caldas. Fantasia de criança pura, que idéia. E não gostamos que nos chamem de judeu.
Antes, não resistimos, os olhos dão uma espiada no pinto dele. Tamanho médio. Não deviam ter olhado. Agora a maquininha de sonhar vai sonhar pesadelo.
Agarram ele as mãos pela basta cabeleira, própria para ser agarrada por trás. Nesse exato instante começa a tocar o hino-nacional em algum lugar. Nossa, hora-do-brasil já? os olhos se molham. Nós e nossa mania de chorar com o hino. Desde as mais profundas purices de nós crianças.
Então sente o semblante rejuvenescer e dá à boca vontade de lascar um beijaço na boca do mijão e abre a pura uma avenida a meia altura na garganta. Ele sente só o espanto, morre antes da dor. Geralmente aplica a pura uma cutucada simples no fígado, o santo fica lá borbotando feito válvula enguiçada de sangueoduto treblinka-buenosaires-esquinas-da-nossa-infância, tentando relembrar os poucos bons momentos que teve na vida, pedindo perdão ao pai, pesando, valeu a pena ter vivido?


Não há razão. A única é ter atravessado nosso caminho. Razões factuais são excessivas. A única é o bigue bangue. Nossos destinos se cruzaram, basta. Agora temos um xis em comum. O xis da questão. Não gostamos de ser governado pela causalidade. Quem aceita isso tem de morrer.

Páscua á á


descobri meu problema
meu problema é que nenhum outro ser humano sofre do meu problema
atrás da esquina por onde o ídolo daquela infância se esgueirou
décadas antes que os seriados americanos determinassem nossas vidinhas de vidro
posso neste instante celebrar e aqui ergo o copo pronto para um tchin-tchin
papai não ficaria orgulhoso – papai nunca se orgulhou de nada
meus poemas se caracterizam pela ausência de imagens visuais – ao contrário dos de Sylvia
e lá vem ela martelando, sou vertical vertical cal cal cal
neste meu mundinho averso à geometria
que lambedores de caca e adoradores de restos têm preguiça de deslindar
como se vivessem
como se eu vivesse
num formigueiro

nojentos anjos

Para quem corre atrás de fantasias ao invés de perseguir a grana, o ônibus, as badaladas do relógio
Das pernas escandolosamente bem-torneadas duma mulher na rua
Tudo é mais difícil
Para os viciados em ver miragens – e as há, aqui e ali, que espantariam os que não as veem se as vissem
E não não dão bola para identidades
Enxergadores de miragens precisam enxergar miragens
Não correr atrás delas
Delas fazer seu currículo, seu CPF
Sua substância
Seu sentido
Suas insaciáveis amantes



Maus pensamentos marchetados de papeluchos multicores

Você acha que temos uma bandeira que hasteamos ao andar pelas ruas?

Quando for
Quero ir
Rindo

É, sei, a melhor maneira
De não atentar aos
Detalhes do Caminho
Como quando
Choramos

Passarei pelos cemitérios
E os túmulos haverão de
Ressuscitar alguma ideia
Alvissareira há décadas
Morta no fundo do meu
Cérebro

Logo pela manhã
Depararei com
Cadáveres e então
Sentirei meus pés
Chafurdando nas
Nuvens

Quero ir rindo porque
Rindo é, sei, a mais
Rápida maneira de 
Ir

Porque, sei, rindo é
A senha mágica para
Escutar os mortos ruídos
Vislumbrar os mortos rostos
Amar os mortos amores

Sim, estou convicto
Acho
Uma bandeira está 
Hasteada na proa
Da minha pequeníssima
Vida
Que outros não puderam enxergar
Porque vidas pequeníssimas desse
Tipo não vale a pena abalroar

Não tremula (ela) ao sabor dos ventos (ponto final)
Não tremo eu sob o açoite dos teus finíssimos cabelos espargindo no mundo o perfume da vida
A rolar quase abstratamente pela pele do meu rosto

Mais que rindo
Quero ir é a dançar
As mãos cruzadas
Roçando a suave protuberância dos teus quadris
Tuas mãos agarradas na minha nuca
Netuno te puxando de volta pro fundo do
Mar

Mãos ao alto

Não quero mais debochar dos otimistas, não vou mais debochar dos otimistas, daqui em diante deixo de racionalizar sobre a mecânica da vida, minha tão íntima querida, minha namorada e confidente desde meu primeiro dia nesta terra.

(Okay, os otimistas dirão que em outras também, então tudo bem, em outras também.)

Há no mundo uma energia que faz de nós humanos seres especiais e, sim, essa energia é azul.

(Vou me abster de especificar que é, provavelmente, um azul-omo-que-lava-mais-branco. Esta postagem não deve ser debochada nem irônica. Fiz 15 minutos de iôga com circunflexo no ô antes de começar a a escrever.)

A azul energia da vida se estende diante dos meus olhos fixos na parede, acho-me extático. Se os vizinhos não fossem tão suscetíveis a demonstrações emotivas, passaria a noite aos berros, juro.

O único problema é que não sei para onde evoluir daqui. Devo imaginar energias de outras cores do espectro? Falar de anjos (anjos com suaves túnicas recém-passadas a ferro a carvão (não, não vou invocar minha infância, sim, tenho meus pudores))? Lembro vagamente que o arco-íris é um dos mais belo fenômenos químicos da natureza, conjecturo, meneio, sinto a boca seca.

A energia da vida prossegue lá fora à minha revelia, cor de anil. Uma outra, esta associativa, a funde com o céu. (Se não tomar cuidado, logo terei de lidar com estrelas (mas sei que vomitaria antes)).

A solidão, você aí fora, de que cor você acha que é a solidão?

Roxa como as sandálias que minha irmã tentou usar em 1967 mas foi impedida por meu pai e minha outra irmã mais velha, ciosos da reputação da família?

Toast and Marmelade and Beer




If I had a song that I could sing for you, I'd sing a song to make you feel this way. Cara, quando foi? Semana passada, depois do trabalho? Nos tempos dos magos bigodudos? Nos tempos — veja só — em que eu usava relógio? E onde, onde é que foi? Num apartamento que ninguém mais lembra onde fica? If I had a wish that I could wish for you, I'd make a wish for sunshine all the while. O Marambaia fechou há tantos anos, já não há padarias para baixarmos as portas na madrugada povoada de vultos etílicos. Uau, pensar que era só estender meu braço e te tocar, bastava levar o copo aos lábios e escutar tua voz... Fui fazer desta musiquinha teu hino, quando já não podia cantá-la nem pra você nem pra ninguém. 

Desonesta gordura

Ah insensatez alheia!
Parecerei tão insensato aos outros
quanto os outros me parecem a mim?
O mundo não passa dum hospício?
Serei aos olhos deles tão louco quanto 
eles são aos meus?

Por que todos esperam 
solidariedade
simpatia
afeto
e nunca dão
afeto, simpatia ou solidariedade?

Por que esperam
o que não permitem
que esperem deles?

Gente há que preferia ter um câncer para provocar nossa compaixão. É a mesma gente que, claro, jamais teria compaixão de alguém.
Gente há que não escuta mas quer ser escutado, não ama mas quer ser amado.

Nunca escrevi uma carta.
Nunca escrevi uma carta que não fosse uma carta de despedida.
Quanto menor a distância, maior a carta.
Quanto maior o vice, menor o versa.

Não existe predestinação
Nem dos sábios nem das mulas
Nosso papel de pateta, porém, está garantido no programa da vida

Como escritor devo estar preparado para escrever para as paredes
Incansavelmente
Qual um Sísifo idiota que jamais se canse de ser idiota
Ao escritor não é dada a dádiva de manter uma reserva de fantasmas paradisíacos para os quais possa voltar quando precisar de ajuda.

Ele sabe que seus fantams ao menos respondem
E a razão é exatamente esta

Trato extrajudicial

De você, sei seu nome
sei sua profissão
Que belo é seu rosto
Que beijável é sua boca
Vívido seu olhar
E mais nada

De mim,
Exceto quão disforme é meu rosto
Que torta é minha boca
Que tenho o olhar morto
Exceto meu nome
minha profissão
e outros dados biográficos
Você sabe tudo

Que sou confuso
Mau poeta, versejador bisonho
letrista claudicante
Lírico fraudulento, pensador desastrado
Bebum egoísta
Um cínico
vingativo, metido, delirante, bisbilhoteiro
insidioso
Blogueiro asqueroso, estapafúrdio, ultrajante
Bandalho infame, medroso
Inseto rastejante amigo das sombras úmidas
(Sabe mesmo que sou um presunçoso.)

Exerceremos os direitos concedidos
Cumpriremos as obrigações esperadas
Sob a égide do nosso direito particular
Em que tudo parece relativamente justo

Parágrafo único:
Sou mais sabedor
Sei que a amo
Sei que você não me ama
Sei que nunca me amará
E que a amarei enquanto não amar outra

Você sabe apenas que não me ama

Assim, justas e avençadas
As partes celebram este trato
Que vigerá enquanto você quiser

Autoaula

Dificilmente vou aprender.

(Dificilmente haverei de aprender.)

Mas vou tentar.

(Mesmo assim haverei de persistir.)

Descobri um segredo.

(Acho que descobri um segredo.)

Não há vento.
Não há som.
O mundo se move
Apesar do teu espanto.

Não quero saber o significado das palavras que não me disseram a mim.

Registro diário

Você nasceu sob o princípio do "um pouco de modéstia e humildade", sei.

Quem neste país não?

Viemos (viemos?) dos portugueses, dos índios, dos africanos, não viemos? Que mais podíamos esperar?

Somos então modestos e humildes e assim aceitamos de bom grado que os poderosos de direita e os poderosos de esquerda nos botem em nossos tão ciosos rabicós.

E, ao contrário dos porcos e das cabras, não emitimos sequer um méééé.

Bem, dona Maria, bom, seu Zé, o que posso lhe afiançar no momento é que não tenho por que ser modesto ou humilde. Até queria elaborar a respeito mas certamente soaria ainda mais imodesto e jactancioso, o que neste país de humildes e modestos é, claro,  pecado. Devemos todos ser cordiais e cordatos, como nos ensinaram na escola. E hoje nos ensinaram na tevê.

Afora o retrorreferido, gostaria ainda de intelectualizar, talvez falar de literatura, falar de literatura usando o intelecto. 

(FAZER literatura sem usar o dito-cujo é bem possível. Em muito casos, aconselhável. Pena que esse assunto nunca poderia render mais de 3 leituras neste blog.)

Os leitores deste e de qualquer outro blog da internet ou da galáxia querem é espairecer, bien sûr. Se podemos, por que não curtir uma onda, não é mesmo?

A vida lá fora é uma pedreira. Relaxemos, moçada. E esse papo de levar literatura a sério é tão maçante.

Não sejamos bilhões de blogueiros correndo feito bobos atrás dum fogo fátuo. (Que porra é essa?)

Aceitemos a alegoria da fruição, desempenhemos em estado de deleite o papel que nos cabe.

Aonde agora?

Isto não é um poema
Hei de fazer um poema
Que, sem ser poema,
Não será um poema

Não terá teu rosto
Não terá tua voz
Não falará de ti
Não falará de nós

Um dia farei um poema
Que não me roubarás
Pois nunca o lerás
Pois nunca o farei

Redicionarizando

Se tivesse papo com deus, pedia pra ele equipar nós seres humanos c'um dispositivo que nos impedisse de já nascer errados.

Teria de ser algo meio mágico, claro. E tudo que é mágico, ou que pensamos ser mágico, acaba nos frustrando cedo ou tarde. Nunca gostei nem de mágicas nem de magias. Nasci já com este meu olho clínico para os truques atrás das mágicas. E, no meu caso, ter um olho clínico não é vantagem nenhuma. Só enxergo o que não deve ou não precisa ser enxergado.

Toda mágica guarda um mistério de polichinelo. Toda mágica é pobre e grosseira e se presta apenas a ludibriar os afeitos ao ludibrio.

Sim, há os que se deixam enganar por vontade própria. São os que fecham os olhos para não ver o coelho se esgueirando do fundo falso da cartola. São os que nascem apenas para ficar sentados no escuro da plateia e bater palmas para o mágico e seus truques manjados, soporifiramente tirando cartas da manga no jogo que nascemos para perder e serrando ao meio pessoas nascidas para ser apenas metade.

Se eu tivesse papo com deus, pedia pra ele dotar nós seres humanos c'um Para-Quedas Natal.

Meu Para-Quedas Natal seria por sua vez equipado c'um painel cheio de botõezinhos. (Sim, como o controle remoto da tevê.)

O infeliz paraquedista poderia fazer algumas opções básicas. (Só não poderia, obviamente, abortar o salto. Deus é bonzinho mas não é bobo.)

Poderia escolher, por exemplo, não cair bem no meio de Heliópolis. Ou poderia escolher, por exemplo, cair bem no meio de Heliópolis. (Nós seres humanos temos esse estranho senso de sobrevivência que nos impede de ver o que é melhor para nós mesmos e que parece que nos foi agraciado por um igualmente estranho desígnio divino.)

Se fosse equipado com meu Para-Quedas Natal e não pudesse declinar dos meus desígnios, eu faria o truque da minha vida e daria um salto mortal.

Parece abrupto, eu sei. Mas o ser humano dos meus sonhos não leva a vida num tribunal. E o salto dos meus sonhos será um salto suave.

Imutável céu sobre minha cabeça desde novecentos mil anos atrás

Num passado não muito distante, não muito recente:

Me via nesse ovo em que fui gerado. Não era um ovo ovalóide como sóem ser os ovos. Tinha a forma duma chapa, talvez já nascido para a frigideira. E quem quer que o habitasse estava já predestinado. Estaremos todos?

Tentei quebrar a casca (por que temos de quebrar as cascas que vão nos envolvendo ao longo da nossa mutação? será falta de ar?). Mas casca não havia.

Havia essa bolha de sabão que me isolava do lado de fora. Escuta, escuta bem: nunca me senti do lado do que quer que fosse. Estiquei meu dedo fura-bolo, cutuquei e a bolha de sabão explodiu sem sequer um baque que me brindasse c'uma onomatopeia.

No presente longínquo:

Dou com esse cesto de lixo. É um cesto volumoso e, por fora, parece estar abarrotado.

Quero ver o que há dentro do cesto, não é óbvio? Afinal pertenço, mesmo contra a vontade, a esta espécie de fuçadores sempre a bisbilhotar o mundo ao redor procurando sossego e sarna pra se coçar.

Bato a mão no ar num gesto de desdém e o cesto tomba. E o que há dentro dele se esparrama pelo chão.

Ex-encarcerado com pose de arqueólogo de mim mesmo, inicio o cadastramento.

Há esse montinho de areia em que enfio e retiro a mão. Presa entre meus dedos sai a pazinha amarela perdida num mistério que durou um segundo e a vida inteira.

Há esse patinete vermelho com apenas uma roda e sem guidão com que eu imaginava sair rodando para um dia chegar à Europa.

Há esse caminhão-cegonheiro semidestroçado sob chantagem arrancado a um familiar num certo dia de aniversário e, sendo presenteado sem gosto, com desgosto foi largado a um canto e esquecido.

Há essa pipa azul e verde que nunca conheceu o gosto de estar entre as nuvens pois quem a construiu era visivelmente um mau construtor de pipas sem noção de engenharia nem de nada. E se um dia esta pipa impossivelmente ameaçasse voo, por certo enroscaria nos galhos da árvore mais próxima.

Há esse toca-discos solenemente aposentado depois de tocar um milhão de vezes cada música dos Beatles e acompanhar seu dono em mil e uma noites da mais torturante angústia e da mais fina dor.

E há essa que é a mais supérflua vara de pesca que jamais houve e há esse par de tênis brancos encardidos que é o mais surrado par de tênis que jamais houve e há essa estante que sustentou milhares de livros que não fazem mais sentido e há esse kit-churrasqueira que por uns meses prometeu apetitosas possibilidades e há essa bolsa-tiracolo que zanzou anos vazia por ônibus, por trens por dias e por noites e há essa cristaleira trancada a chave empanturrada de cristais que nunca foram usados e há esse cofre cujo segredo foi perdido e o cofre doado ao primeiro garrafeiro que passou e há essa sala de jantar em cerejeira jamais desvirginada com um café-da-manhã que fosse e há essa caçarola única sobrevivente do seu paneleiro e escalada para pudins de leite e há essa máquina de costura e esse carrinho de chá e esses badulaques de enfeite e essa casa na ladeira e esse sobrado na avenida.



(
Enterrado flutuo sem coceiras nem vontade de respirar.
Estou preparado para o aturdimento total.
Que inefável delícia que nada mais me seja inefável ou delicioso.
Serei livre e espero obediente e próspero pela primeira vez.
)

Noite num deserto de Netuno

Um dos meus informantes me diz que Sílvia e Augusto vão viajar amanhã para a África do Sul. Todo dia cai um avião algures. A Al-Qaeda está ameaçando um atentado na copa. Por que uns têm de viver e outros têm de viver? (Deixa eu botar um sic aqui antes que você pense que fiz a pergunta errada.)

Ai que vontade de Sílvia.

Queria ligar mas ela escuta minha voz e bate o telefone. Talvez fosse minha derradeira audição da vozinha de anjo endemoniado.

Queria pedir que me trouxesse da África uma vuvuzela. Então me fantasiava de pernilongo e voava para o quarto dela e soprava aquela corneta dos infernos na orelha do Augusto até matar o desgraçado. E então Sílvia voltava para mim. Um diazinho que fosse

Encontro da poça com a lua


Não sei.
Devia saber?
Não ser covarde. Pueril. Não ser cada um dos atributos que esperam que eu seja.
Nasci ferido de morte. E o ferimento só faz dilacerar com o tempo.
Como é cheio de homens desassombrados, maduros e descomplicados este mundo.
Num piscar d'olhos transformam-se em presidentes, chefes de repartições, astros do cinema e paulos-coelhos.
Serão eles que fazem do mundo este inferno em que vivemos? Ou será que sequer vivemos?
Também não sei.
Mas sei que têm coragem e amadurecimento para exercer, com simplicidade, cordura até, o papel de predadores que a loteria viciada do Big Bang lhes reservou.
Talvez os suicidas sejam desassombrados, maduros e descomplicados. Talvez por isso se matem.
Talvez essa gente que exerce mecanicamente o papel que lhe coube sonhe inconfessamente com suicidas. Talvez sejam eles os sensíveis que imaginam saber compreender a poesia.
Fosse eu desassombrado, maduro e descomplicado, teria um livro publicado e as wilsetes me fariam homenagens e, comovidas, me citariam em seus blogs.
Talvez certos suicidas cheguem ao estrelato pelo suicídio. Como Plath. Ou os que se matam de beber, como Pessoa, Dylan e Leminski.
Talvez sejam idolatrados por terem tido coragem de se matar.
Matar-se talvez não requeira coragem.
Talvez não requeira porra nenhuma.
Não posso ser tudo isso de que me acusam (justamente, diga-se).
Não sei ter certezas.
Todos precisamos de certezas para viver nossas vidinhas de baratas. Mesmo que sejam as certezas erradas.
Será certo que tudo e todos estarão aqui de novo amanhã?
Não sei. Mas dizem que precisamos ter fé.
Talvez eu precise de ler poesia à la carte, dessas feitas por um mario-quintana. Sim, quero amar os quintanas. São fofos. Dizem tudo que quero ouvir.
Talvez eu abdique do que sinto. Assim, num estalar de dedos. É o que faria qualquer homem descomplicado, adulto e bravo.
Deus fez homens e mulheres a partir dum só molde. E dentro deles enfiou almas de robôs. E em suas cabeças estampou um cardápio. Dessa alma e desse cardápio brotou a coragem.
Para meu azar, escapei da linha de montagem divina. Queria tanto não me angustiar com essa angústia que me angustia.
Ontem recebi a visita dum velho conhecido. Acho que meu velho conhecido me veio conferir. Então vi que meu velho conhecido crê. Abençoado seja, velho conhecido. Será teu e dos teus o reino de Deus.
Eu também queria crer. Invejo os que têm a coragem de crer.
Talvez encontre quem queira me ensinar.
Talvez não possa aprender. Talvez não queira.