Hoje é sexta-feira

Hoje é sexta-feira, dia mais chato que folhinha de parede com alpes suíços. Como já deve estar claro a esta altura, nossa vigília preguiçosa de nós nunca nos deixou perceber muitas coisas. A ponta do dedinho pousa na veia. Bombeando que não é mole, latejuda. Nem do mundo, nem das outras pessoas com quem tivemos o breve mas intolerável amargor de conviver por algumas razões que não vêm ao caso, nem de nós mesmo. Por isso aprendemos poucas coisas na vida. Entre essas poucas está a caganeira. Quando a bicha pulsa querendo estourar desse jeito, a coisa tá braba. Não adianta bufar nem morder o lábio quase até sangrar buscando resignação.
Caganeira dos nossos intestinos.
Por isso é que sempre diz a boca que quem pensa que é hereditário se engana. Nesse aspecto cultivo até um certo nível de soberba. A memória tenta lembrar direitinho.
Descobriu-se a veia na pré-adolescência. Estávamos sentados no sofá da sala os olhos olhando o teto como faziam todos os dias durante seis, quatro horas, chateação mais aguda que a de pardal trancado na gaiola cuma jaguatirica, quando um dedo se pôs embaixo do queixo e sentiu uma bombinha. Quase tomamos um susto. Será o fim? Mas o sobressalto só durou uns três segundos e oito décimos. Melhor assim. Explodir e terminar essa merda duma vez. Sonhando, a mão começou a alisar sob o queixo, sentido o tuntuntum. De vez em quando um dedo apertava bem em cima dela com a ponta e segurava uns instantes. É agora! Agora que vamos acabar.
Embora tenhamos a cuca embotada, cedo deduzimos que nossa purice nos acabaria deixando maluco. Até aí nenhum problema, pensava inocente o cérebro. Pelo contrário. Acreditava que a combinação de purice e loucura daria um gostoso e frutífero casamento de sentimentos, sensações, emoções e pensamentos autodestrutivos e improváveis que a partir da lua-de-mel tentariam conviver em conflitos cada vez mais assoberbantes, até nos levar a todos ao Eu Supremo. Será a glória, antegozávamos abestalhado, sempre cada vez mais empurecido por estarmos tendo um prazerzinho que fosse, mesmo que antecipado.
Anotam os dedos o endereço num papel em cima da mesinha do telefone. Enfia a mão o papel no bolso das calças. Saem as pernas pra rua, os olhos olham pro céu, procurando um meteoro.
Um dia, sabe-se lá quando, uns sete, quatro anos, acordamos estranho. Tudo bem, até hoje acordamos estranho todo dia – e tem dia que a estranheza vai crescendo, crescendo até nos deixar nesse estado quando chega a noite –, mas de todos nossos dias estranhos aquele foi mais estranho que os outros.
Nenhum meteoro, pra variar. Pagávamos pra ver um do tamanho da Lua acachapando esta cidade e todos os filhos-da-puta que vivem aqui e este país e todo este mundo nascido duma esporrada de deus no rabo duma libélula gigante sem asas, e biscate.
Mas nossos horizontes não continuaram execravelmente alvissareiros por muito tempo. Depois de alguns dias em autoindulgência nauseante, uma nova dedução começou a tomar forma no fundo desta alma que não haverá de reencarnar. A dedução logo virou preocupação: e se aquilo que estávamos prevendo fugisse do nosso controle por qualquer motivo e terminasse por nos condenar a uma cela imunda no juqueri, a indômita verve domada por quilos de gardenal e ansiolíticos, balbuciando versos de pessoa e suando baba feito uma estalactite banguela pondo pus pela boca gosmenta?
Tamos amolecendo, putz. É a idade. Por isso pedimos: deus, só mais uma gota.
Os olhos olham o endereço no papel. São Sebastião, 283. Atravessam as pernas a rua, dobram a esquina, andam três quarteirões, param no ponto, cruzam-se os braços, retesam-se os ombros, crispam-se os punhos, a vida, o dia, a noite, o tempo, o furacão esperam o ônibus.
Queríamos ver a cara dos bundões. O auge da humanidade foi a época dos dinossauros, quando a gente vivia sendo esmagada por chuvas de planetas na primavera, tempestades de meteoritos no verão, garoas de cometas no outono.
Pra podermos concluir nossa missão.
Estremecem. Será o fim do doce estado furibundo a que nos acostumamos desde a mais tenra idade? Então, inefavelmente terno conosco mesmo, abandonamos o projeto. Não poderíamos correr o risco de perder toda a suculenta purice que este nefasto espírito-de-porco-espinho vinha paciente e diuturno cozinhando, puro de esperar a hora em que Ela finalmente maturaria, transbordando sôfrega pelas orelhas, escorrendo lascivamente pelo chão do quarto, se espalhando pela sala e pela cozinha, se infiltrando pelos vãos das portas e janelas, extravasando para a rua, ganhando corpo e consistência e cor e brilho, fluindo pelas estradas, inundando as cidades, até que tudo ficasse envolto num mar de purice apodrecida em que germinariam novos seres empurecidos putrefatos.
A veia dá uma latejada, só uma, pedindo carícia. Calma, neném, calma que o dia vai ser comprido feito o novelo emaranhado da passamanaria das ruas que já trilhamos.
Começou antes de se abrirem os olhos. Olha, o que acontece aqui dentro antes de se abrirem os olhos dava uma bíblia. Claro, já passou pela cabeça frita a idéia de escrever um livro chamado purildos-wake. Era um terremoto n’alma. Embora venha todas as manhãs e tentemos nos precaver, nunca estamos suficientemente preparado.
Sabe-se, essa merda de pseudopoesia de segunda só serve pra nos deixar – adivinhão – puronildo da silva. (Sobretudo quando começo a imitar um enteado fremente asqueroso professorzinho de bosta lambe-rabo-de-francesa-menstruada, aí que não cabemos em nós.)
As pernas entram, a mente acha um lugar, senta-se a bunda, as mãos fecham os olhos.
Cedo aprendemos um macete com que contávamos afastar o perigo de acabar inapelavelmente de frente conosco mesmo numa vasta noite soterrada sob o silêncio.
Puralhaço. Purirífico. Purirívago. Purãozudo.
Aos oito ou onze anos matávamos aula pra passear no circular. E, tal como todas as grandes descobertas da humanidade, essa também se nos ocorrera fortuitamente.
Era uma das várias excursões que aprendemos a fazer ainda pequeno. No começo pegávamos o primeiro ônibus que passasse. Foi há uns sete anos ou onze dias. O intestino estava ficando preso por períodos cada vez mais prolongados. Não era recente, só que... só que nos últimos tempos a coisa tava calando mais fundo, se nos entende. A maioria dos motoristas não deixava.
Nos mandavam descer quando percebiam que tínhamos ido fazer excursão. Depois de alguns dias conseguimos descobrir um que não ligava. Ficamos amigos um pouco. O único amigo que já tivemos. Só podia ser por causa dessa porra de querer ser o tempo todo, claro. Isso e o hábito que vinha tomando forma havia uns meses de engolir pimenta malagueta de manhã, à tarde e à noite pra que o mundo ficasse um pouco mais puro do que já era.
É assim. Primeiro começam a aparecer umas lembranças indesejáveis. Não temos uma que não seja, certo, mas aquele dia vimos – tudo bem, as pernas ficaram meio moles – que não ia ser fácil. Você sabe, o maior estanca-Cú que existe no mundo é a pimenta malagueta. Se tu tá com diarréia, manda ver. Tiro-e-queda, nas palavras da mamãe, a purelda, que, graças, esticou as canelas quando nascemos. Então como sabemos que ela dizia tiro-e-queda? Cátso, por que não haveria de dizer?
Outra excursão que fazíamos ainda nos tempos da escola era ir na casa da marlene tomar cerveja. Mais japa e alemão. A marlene dava um copo de cerva pra cada um de nós toda vez que íamos lá deixar ela chupar nossa pica. Pena que as rolinhas são tão petiticas!, ela reclamava rindo enquanto nos batia punheta, um de cada vez, pois usava as duas mãos, uma trompeteando a rola, a outra sovando o saco e garroteando a base do pinto.
A, aquilo que era punheta. Comparando, as outras pareciam a camille-paglia dando um bloujob na mesa do legista.
 Umazinha chocha, outra como quem não quer nada. Eu só assistindo, mudo, numa de estóico. Japa e alemão tagarelando um com o outro, um papo-furado sem fim feito comercial de desodorante, queríamos enfiar uma banana de dinamite em cada orelha e acender com uma tocha de acetileno, sem prestar atenção no que o outro diz, não nos deixam também prestar atenção. Nessa época as prisões-de-ventre eram sobremaneira atrozes, embora no início tivessem sido um bom auxílio pra extinguir qualquer possibilidade de conforto que pudesse passar por esta enorme pesada cabeça cheia de cancros – as prisões-de-ventre e outros subterfúgios que devagarinho fomos aprendendo a usar contra nós mesmo, dos quais falaremos alhures se houver tempo –, bem, as prisões-de-ventre estavam se esticando cada vez mais.
A marlene era uma turca fedida – fedida no duro, aca de camela inchada do sêmen do harum-al-rachid. Pesava uns 147 quilos. Viva implorando que lhe comêssemos a buceta. Virava-se a cara enojada. Se comêssemos, dava mais um copo. Na próxima, tergiversávamos. De tanto ela encher o saco, um dia o babaquara do alemão topou. Subiu encima da pantagruela, se pôs a saracotear. De repente o fardo de banha virou o corpanzil, ficando por cima do sorongo estrebuchando epiléptica. O aparvalhado começou a gritar me-acuda. Eu e o do japa tentamos desmontar a baleia de sobre o pongó impotentes.
De oito ou dois dias no início, as prisões-de-ventre logo passaram a quatro semanas ou dez minutos. Se antes se lograva diluir discreta e satisfatoriamente os efeitos da flatulência dando as pernas curtos e dissimulados passeios no quintal antes de se recolher ou, quando não era possível se isolar de outras pessoas a distância prudente, apelando a truques como fingir a garganta limpar um pigarro ou, dependendo do volume que sentia o abdômen acumular em si, ter logo um acesso de tosse, assim que tinham início os inexoráveis peidinhos – e você não pode imaginar quão difícil é tossir e exalar puns sincronizadamente, agora o ventre produzia mais gás metano que mina boliviana, que liberava para a atmosfera feito um ônibus diesel da linha largo-paissandu-vila-sônia. Somos o que somos, não se nega, mas impolidos não. Ainda mais quando se trata de singelas manifestações destas insondáveis entranhas.  Bem, o troço começou a durar nove meses, cinco anos, sete segundos.
Já viu buceta de turca obesa? Não queira.
Japa trepou nas costas da búfala e começou a cavalgar, gritando eia-eia-eia! Alemão tava inteirinho roxo, mais um tico já era. Enfadados, se decidiu ir embora, quando se nos ocorreu que a conceição, mãe do alemão, provavelmente deixaria de nos dar o rabo se ele falecesse sem uma explicação plausível. Vinha a rola comendo a coroa fazia uns três dias ou cinco semanas, desde o nosso décimo-sétimo aniversário. Foi a primeira mulher casada que a rola traçou. Depois dela todas as transas tinham de ser com dona corneando o marido. Conceiçãozinha era especial. Cabelinho castanho curto, franjinha no meio da testa, tetinhas salientes espevitadas cônicas prontas pra explorar o espaço celeste, biquinhos de sensibilidade instantânea, era só nos ver ficavam hirsutinhos, pedindo me-chupa! Mas o mecanismo supremo era a boquinha. Abocanhava a rola e não largava enquanto não se enchesse de porra, que não deixava escapar um pingo com linguão de sapa. Tem vitamina, a coroinha ria, engolindo e se lambendo. Eu parava em frente a porta dela e berrava alemão! alemão! Ele tá na escola, conceição berrava lá de dentro. Mas entra pra tomar um guaraná. Entrava. E saía pouco antes d’alemão voltar da escola.
Lembramos dum filme que o irmão tinha comentado. Mesmo não vendo a mínima grança em cinema, foram as pernas no quintal, pegaram as mãos um rodo, foram as pernas na geladeira, besuntaram as mãos o cabo do rodo com margarina, voltaram as pernas pro quarto e fez a mão sinal pro japa pascacito abrir a bunda da capivara. Nos afastamos um metro, os olhos miraram, as pernas arremeteram. O cabo entrou que foi uma seda. A leitoa ergueu a cabeça e os braços, berrando, gozei! gozei!
Se quer saber, não há maior martírio. Embora fique bonito, certo, os pensamentos começam a dançar ainda mais confusos do que já são, você perde qualquer agilidade que tenha, os movimentos se deixam suplantar por uma lerdeza asfixiante, não dá nem mais vontade de falar. A barriga começou a expandir, olhar, expandir, escutar, expandir, cheirar.
Quando nos tocamos já parecíamos não um homem mas um genuíno caroço ambulante. Quase começamos a mudar de nós. Se não resolver, pensava a mente, logo vamos fazer quatro anos sem cagar feito um filho-duma-alpaca e vamos ficar mais chato que sonhar com coceira. Quatro anos não cagando sem parar. Suspendeu-se a malagueta, sem êxito. Suspendeu-se o guaraná com canudinho. Nada.
Os pares de lembranças indesejáveis viram trios. Logo quádruplas. Os olhos só olhando, tímido geométrico como sempre fomos. Quando resolvemos sair do estoicismo é tarde. Estão dançando quadrilha à nossa volta. Tagarelando, batendo palmas, tagarelando, socando os pés, tagarelando.
Sabe o que é o melhor de tudo na nossa vida?
É este nosso estado permanente de empurado.
Mas às vezes vacilamos. Vem a vontade de dizer chega. Quem já teve vontade de dizer chega sabe. Também não se explica.
Certo dia, já adulto nos deu uma fina saudade sem mais nem menos e voltei na casa da marlene. Levamos a peixeira, por via das dúvidas. Não por causa duma possível reação dela. Mas nossa. Naquele tempo andávamos taciturno e quando andamos tacirtuno começamos a querer ficar imprevisível. Desceram as pernas no ponto e chegaram direitinho. Nós mesmo vivemos nos espantando com essa memória geográfica mecânica. Quando se trata de endereço, então é infalível. A memória tenta lembrar mais que o proust criado sob doses cavalares de biotônico-fontoura.
Ninguém nos deve comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes. Ninguém nos deve porra nenhuma. Tá ouvindo? Porra nenhuma. Por isso somos muito mais o que somos.
Pena que seja só na geografia. O resto, a cabecita esquece tudo. Exagero não. Esqueceu como era papai, nossos irmãos. Esses, tenta lembrar que os tinha, quantos, não.
As pernas entram no Bar São Caetano na hora marcada. Se achegam ao balcão. O pato serve um pingado a um freguês. Faz um tique com a cabeça, ele responde com outro. Depois de atender o cretino do freguês, vem pra este lado.
Senhor, vos suplico: só mais uma gotinha.
Os cachorros, esqueceu todos. As estações do ano. As flores. Os sabões em pó. Os tipos de comida. Qual presidente se matou cum tiro na barriga. A função do estômago. Quando hitler ganhou a guerra. Pra que usar roupa. A última vez que andamos de esputinique. Mas logramos perpetrar um exercício que ninguém logra – esquecer o dia em que comemoravam os nossos anos. É só querer, pronto, tá esquecido. Dura algumas horas. Se você perguntar o dia dos nossos anos logo depois do exercício, dizemos que a memória não tenta lembrar. Ninguém acredita, claro. Respondem – compreensivelmente, cremos – que é truque. Mas não é.
Não é. Muito Mais.
Começa o tremor. Incomodozinho chato, fazemos de conta que não sentimos.
Cinquenta e um uma, a voz pede. Ele põe e diz que é por conta da casa.
– A foto – a boca diz.
Chegamos, o corpo fica um tempão parado diante do cortiço, olhos olhando. Não tinha mudado porra nenhuma. Sem portão como naquele tempo, gritaria embriagada de querer um tiro de calmante na medula, sotaques de cada rincão do nosso alheio nordeste, cheiros mais vários que a escala infinita do jardim da via láctea, fios d’água multicor borbulhante rala e turva descendo inexoráveis paralelos pelo quintal de terra batida para desagüar n’algum buraco negro fantasmagórico, tudo camuflado pelo tropel de varais embarrigados dando uma triste banana à lei da gravidade.
Ele tira uma foto do bolso das calças, passa voltada pra baixo, escondendo dos outros.
Pega a mão, olham os olhos bem, viram os dedos. Atrás tem o endereço.
Vamos até a penúltima porta. A porta está aberta. Batem palmas as mãos. Sim, somos o que somos. Menos intrujão.
Vira-se de novo. O corpo fica os olhos olhando. Os olhos olhando, não estudando. Nunca gostamos de estudar.
Uma menina d’uns doze anos enfia a cara pela cortina de plástico.
Vamos pro bar do carlão.
Dona conceição está, pergunta a boca.
Cinquenta e um uma, pedimos. Ele põe e diz que é por conta da casa.
– A foto – diz a boca.
Puxa a peixeira a mão.
Ela faz que não.
Vá chamar sua mãe.
Meio metro de lâmina de ferro mole, mais afiada que a língua do oscar-wilde depois de levar corno de estivador.
Que é, a mãe aparece já querendo saber. Cabelão escorrido ensebado multicor espanta-olhos roçando no ombro. Tetões escorridos dentro da blusa de pano. Que fizeram com teus biquinhos, santa-maria? Cearense, pergunta a voz.
Ce sabe, aço não pega fio. Cabo de madrepérola ornado com pedrinhas de rubi e esmeralda. Bom-gosto não é o nosso forte, putz.
Não erramos uma. Pode pôr aí pernambucano, cearense, piauiense, maranhense, sergipano, baiano, potiguar, tudo enfileirado de banda e me os olhos. Basta uma palavrinha. Acertamos na pimba. Apostamos. Menos caixa de cerveja, que a boca não bebe nada com gás.
A marlene ainda mora aqui, perguntamos. Não sinhô. A boquinha elástica miraculosa virou murcha e informe e escalavrada. A antiereção final.
Mudou, perguntamos. Morreu. Faz tempo. Três, onze, cinco meses. De quê. De cabo de rodo. Uma sangreira que só vendo.
 Somos o que somos e também jeca, que hei de fazer wladimir-nosso-véio. Comprime-se a mão cerrada em volta do cabo espremendo com tudo que pode mas não a ponto de permitir ao rosto expressar que estamos nos esforçando. Sente rubizinhos e esmeraldinhas entrando na pele. Depois que passa, o maior barato é deixar os olhos olhando as marcas das pedrinhas na palma da mão.
Tamos ficando velho, tendência a esmorecer. Não é só força de expressão. A Tendência-A-Esmorecer puxa uma perna. Você se achava o gostosão, dono do autocontrole, de repente a capacidade de empurecer falha, navalha, farfalha pífio feito um relâmpago de 40 velas.
O cabra moreno de lábios grossos de quem tem voz pastosa e cara de quem trai a mulher e de quem não tem lembrança, uma sequer, da infância e de quem não imagina o que signifique a palavra cordura vai ao banheiro. Tô zonzo. As mãos dão um tempo. Vão atrás as pernas. Nessas horas sempre tem-se de redobrar os cuidados, dá à puta que te pariu comichão de convidar o freguês pra tomar um absinto, dizendo, nunca tomamos absinto, e você, van-gogh confrontando o Grande Vazio Cheio de Dor, e se ele dissesse que sim, seria poupado, pelo menos é uma chance, somos o que somos exceto atrabiliário, embora saiba que a probabilidade de encontrar um freguês que já tenha tomado absinto é, sim, é pequena, mas e se o cara disser que sim mentindo e eu não tiver como comprovar se ele tá sendo sincero, nem si mesmo sabe-se que gosto absinto tem, depois nunca tentar procurar encostar num balcão e pedir uma dose só pra saber, mas assim vamos nos rodeando. Mas nessas horas se fica um sujeito sério. Mas que calor hoje, hein, puxa a boca conversa, ele mijando no último mictório, tentando ficar o mais afastado possível dos outros. Pela abertura das pernas, o movimento do braço que segura o pinto e a inclinação da cabeça, percebe-se que tem dificuldade em urinar. Também temos. Às vezes o pinto só consiue mijar pondo-se no vídeo uma fita de niagara-falls e subindo-se o volume da tevê até o máximo. É hereditário. Vovô também tinha. Papai não se sabe, pois não tivemos pai. Às vezes, bem no meio da mijada, põe a mente a pensar se as cataratas-do-iguaçu não seria melhor. Aí o mijo pára e não volta mais. Empurece-se. Sempre se quis ser patriotas, mas não levamos jeito. É hereditário.
Mas que calor hoje, hein, no mictório ao lado põe-se a mão na altura do pinto, fazendo de conta que o último está para mijar. O cabra olha abalado, querendo xingar, porra, tem três mil mictórios desocupados nessa merda, ceis pegam e escolhem logo um do meu lado, seus filhos-dum-judeu.
Pobrezito, a última mijada. A última mijada quer o pinto dar em poços-de-caldas. Fantasia de criança pura, que idéia. E não gostamos que nos chamem de judeu.
Antes, não resistimos, os olhos dão uma espiada no pinto dele. Tamanho médio. Não deviam ter olhado. Agora a maquininha de sonhar vai sonhar pesadelo.
Agarram ele as mãos pela basta cabeleira, própria para ser agarrada por trás. Nesse exato instante começa a tocar o hino-nacional em algum lugar. Nossa, hora-do-brasil já? os olhos se molham. Nós e nossa mania de chorar com o hino. Desde as mais profundas purices de nós crianças.
Então sente o semblante rejuvenescer e dá à boca vontade de lascar um beijaço na boca do mijão e abre a pura uma avenida a meia altura na garganta. Ele sente só o espanto, morre antes da dor. Geralmente aplica a pura uma cutucada simples no fígado, o santo fica lá borbotando feito válvula enguiçada de sangueoduto treblinka-buenosaires-esquinas-da-nossa-infância, tentando relembrar os poucos bons momentos que teve na vida, pedindo perdão ao pai, pesando, valeu a pena ter vivido?


Não há razão. A única é ter atravessado nosso caminho. Razões factuais são excessivas. A única é o bigue bangue. Nossos destinos se cruzaram, basta. Agora temos um xis em comum. O xis da questão. Não gostamos de ser governado pela causalidade. Quem aceita isso tem de morrer.

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