Mensagem extraviada

Bom dia, como tem passado? Raios, queria tanto lhe deixar esta mensagem bem cedinho, pra você ler assim que acordasse com a avidez habitual pelas novidades do mundo, à flor da pele a plena receptividade aos estímulos do exterior e, espírito mergulhado no que lhe é alheio, corresse a ver as novidades trazidas matinalmente pelo celular e, no aturdimento ávido do seu pulsante sorver, quem sabe seu dedinho sem querer clicasse o botãozinho das fotos no aparelhinho e sem querer tirasse um instantâneo do seu sorriso involuntariamente escancarado ao ler esta minha humilde, esta minha modesta, esta minha nebulosa confusa sibilina porém fervorosa e franca mensagem de bom dia, como tem passado! mas, que droga(!), venho acordando tarde estes malditos, estes abençoados dias, ando com o sono mais errático que eletroencefalograma de epilético, bem, "ando" é, você sabe, força de expressão, nos conhecemos de outra dimensão, aquela em que o amor não requer coragem nem estudo, por isso sei, sei que você sabe, nasci assim, é meu estado permanente, você acha que o ser humano tem capacidade de mudar, digo, mudar ao longo da vida, mudar algo tão profundo e enraizado quanto o jeito de ver as coisas, de lidar com os outros, reagir às injunções que o mundo nos impõe, pensar sobre as coisas à medida que as coisas nos acontecem ou deixam de nos acontecer, dormir do jeito que dormimos desde que nascemos? Sei que não, não, não sei muita coisa sobre coisa alguma e sei que você sabe, sei que me conhece até o último confim da minha alma, a derradeira fibra do meu mais profundo medo e, aqui é que reside a delícia de sermos o que somos aquilo que somos um para o outro, sem receios recíprocos, sem nos aproximarmos somente para explorar nossas fraquezas mútuas tal como fazem os mortos no mundo dos vivos, não, não é verdade que não sei nada, sei que mudamos apenas na periferia, na superfície, no que pode ser mudado sem que algo importante realmente mude, provocamos mecanicamente uma mudança ilusória que nos faça prosseguir mudados mesmo sendo os mesmos que sempre fomos, tudo bem, falo de mim, não sei falar de outro assunto, sou meu grande tema, sou meu grande público, sou o único sujeito que me interessa conhecer e sobre quem tenho ânimo de especular, para quem gostaria imensamente de encontrar uma saída, o único a cujas reações dou algo de importância, sou meu grande amor, minha única paixão, sou aquele que me tira do sério, que me desconcerta, que ainda me dá alguma esperança de que tenho uma saída, tudo bem, pode escarnecer, sim, talvez sofra, tal qual cinco bilhões de outros bípedes, desse narcisismo mórbido que come solto por aí, a nova espécie navegante que só acorda do delírio digital se consegue se identificar num caco de espelho que pode refletir quando muito um milionésimo do que se passa dentro e fora deles, digo, de nós, digo, de mim, não, não sou desses que deitam palavrório sobre tudo e mais um pouco, sabichões com ideia formada sobre tudo e todos, os opiniosos diligentes, sujeitos que vivem a propalar aos ventos "olha, sou assim, olha, sou assado", esses, quando proclamam esse tipo de asneira, a cara deles me faz bocejar dum sono profundo de querer virar estátua de sal in loco, já passa das dezoito horas aqui neste fatídico ponto geográfico formado por minha latitude e tua longitude a mais de 800 metros acima do mar da Praia Grande em cujas areias tomadas de lixo e manchadas de óleo e ocupadas por trogloditas tantas vezes me apaixonei perdidamente só para ficar perdidamente perdido pelo resto do verão e da vida, isso lá são horas de dar alvíssaras matinais a quem provavelmente a esta hora chega em casa depois dum dia inteirinho da mais inglória labuta? ausente de si e do mundo e de mim por tantos dias sem dar qualquer satisfação nessa típica, nessa tão execrável atitude do brasileiro que tanto me constrange, que tanto recrimino quando a vítima sou eu, sinceramente, me desculpe, vou me esforçar ao máximo para não acontecer de novo, embora deva ressalvar que o dia começa — o meu pelo menos — à hora em que acordo, não àquela que o relógio me pretende ditar e para ser inteiramente sincero mais uma vez raramente sei com certeza se estou acordado, dormindo ou sonhando, se vou sem ter voltado, se volto sem ter ido, é problema filosófico dos mais complexos, infelizmente sou um sujeito bem complexo mesmo, nasci atormentado, vivo atormentado, mas dureza mesmo foi a adolescência, aquele coquetel de hormônios diabólicos com que dona natureza costuma nos brindar, sofri o cão dos 13 aos 16, me desculpe mais uma vez, não devia falar assim, não vá pensando que me esqueci de saudar a primavera, não esqueci não senhora.


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