Fria tarde de julho caída em setembro (allegro poco mosso)

Escuto a música. Preciso escrever. A quem escrever? Não tenho a quem escrever. Vou escrever para você.

É este meu refúgio. É aqui onde encontro a efêmera trégua nas badaladas surdas da tarde.

Não pense que escrevo para você por falta de opção. Deixe que eu penso.

Você achava que um cara feito eu não era dado a refúgios? Eu também. Talvez seja sinal de que estou esmorecendo. Ou talvez não seja sinal de nada. Não sou dado a sinais. Sinais só existem para quem os queira.

Okay, vou esmorecendo. Minha cirandinha imóvel me envolve e me roda qual pião, pião sem adjetivo nem cheiro ou história prisioneiro abnegado de refúgios e outras facilidades dos tempos a rodopiar rodopiando sem nunca cair nem perceber que estou tonto.

Venho aqui te escrever porque preciso sustentar teu olhar expectante enquanto executo minha ciranda. É meu espetáculo, digamos. Pactuemos. Você espera que eu te escreva a verdade. Como, se a verdade reside só em teus olhos?

Quer uma prova? Ei-la: noite de julho de 198... (Você sabe quando.) Cenário: Z. (Não tenho coragem de ser explícito a esse ponto ─ por isso estou fadado à sentença: você jamais me perguntará o que tenho a te dizer.) Personagens: você, eu e expectadores vários. O mundo é sempre pródigo em expectadores. Eu, de todos, sou o maior.

Tema: teu olhar.

Venho aqui te escrever hoje porque decidi encerrar o assunto "minha Dor". De lambuja matarei meus fantasmas, rasgarei minhas fantasias, vaporizarei meus delírios, deletarei minhas lembranças, embaraçarei meus caminhos. E apagarei meu passado, do qual neste ato abdico e me liberto.

Julho, eu disse? Nunca houve julhos em minha vida. Nasci em dezembro, perto do natal, interregno das férias escolares (não sei sentir senão quando me sinto desumanamente em férias). Desde que nasci jamais avancei além de março. Sendo veronil, o sol é minha égide, só tenho vida enquanto afundo as solas dos pés na areia da praia, me fazendo homem de palha o restante do tempo. Meu auge vital é o solstício de verão em algum dia no meado de janeiro. Essa data, e poucos dias antes e depois dela, comemoro sorvendo desesperado o que houver para ser sorvido. Nos demais dias do ano me embebedo tentando adormecer e hibernar para só retomar a vigília na volta do verão. Por isso, naquela gélida noite de julho em que alguém sentado ao meu lado no balcão comentou que fazia oito graus não me achava exatamente no comando dos meus sentidos. (Faz de conta que não mencionei o comando dos meus sentidos.)

Ébrio, estava. Mesmo quando durmo, estou. Naquela noite flutuava distraído entre nuvens de isopor. Sentado à tua frente. Copo de steinhäger esquecido entre os dedos no balcão. O vozerio produzido pelas poucas dezenas de expectadores reverberando em pastilhas mnemônicas ora dentro ora fora de mim. Vultos, personagens de outra dimensão ─ mas não fantasmagóricos como depois daquela noite aprendi a enxergar vultos ─, deslizavam alheios à nossa volta. Enquanto isso, você falava, lembra? Que pena, não sei, não aprendi a prestar atenção no que dizem enquanto durmo. Teus lábios se mexiam, magnéticos como em todas as situações em que já os vi se mexer, forjando, imagino, melífluas sentenças e períodos desprovidos de vírgulas, pontos finais, interrogações e de qualquer outra pontuação. Tua fala é meu paraíso, eu diria se fosse então capaz do diálogo. (Me diga, já dialogamos algum dia? Duvido. Meu saber é patético ante a tua beleza, e costumo me calar quando não sei que dizer.)

Cada um dos meus sentidos me puxava pr'um lado e todos me puxavam para você. Dividido em dez, quinze pedaços, eu era tua platéia. Cada um deles, pedaços, estava atento ao palco da Z. à sua maneira. Se foi assim de fato, por que me lembro só dos meus olhos? (Sou escravo do olhar, qual fotógrafo sem energia para a música nem gana de saciar o apetite.)

Vou me dividindo geometricamente à medida que tento descrever tua figura sentada à minha frente no balcão. Qual sentido devo usar agora? Meus olhos não desgrudam do teu rosto, imobilizando consigo meus pensamentos e minha lembrança. (Pergunto: seria uma dádiva a capacidade de esquecer por livre arbítrio?) Meus ouvidos estão ocupados do burburinho dos bebuns em volta, atingindo ocasionalmente picos distorcidos, quando, bem ao meu lado, um deles pede "mais uma cerveja" ao balconista, que berra "mais uma cerveja?" de volta. Dentro da minha boca, muda na efêmera noite de julho que hoje não estou certo se ocorreu de fato, o steinhäger não deixa espaço sequer pro gosto de mim mesmo. (De que não sei se gosto.) Meu olfato, mesmo tomado dos odores peculiares de álcool, suor, sanduíche de queijo e mortadela, estava saturado do cheiro que teria tua buceta em minha imaginação. E minha mão, aquela que não segurava o copo, delirava com a textura da tua pele e minha língua se enchia d'água ávida por lamber a tua.

A noite veio passando longa feito a eternidade e desvaneceu curta qual um instante. De repente você diz, "preciso ir", despenco, cheiro, escuto, imagino, engulo o steinhäger de gelo. Vejo teu olhar. Anti-sol que obscurece minhas noites.

No meio do breu você, lâmpada fantástica, brilha à cegueira, espargindo um halo não luminoso, de raios negros, corroendo minha claridade à tua volta, me atraindo ao teu campo de beleza inatingível e me condenando à escuridão que aprendi a habitar. Eu, mariposa trajada em fantasia de seda puída, destituído da cabeça que um dia arranquei tentando estancar a mina de pensamentos que borbotavam e borbotavam para o vácuo que ficou no teu lugar, me arrasto em círculos incessantes em torno de não sei exatamente o quê. Terá a luz se apagado e eu, mariposa decapitada, nem me dado conta?

Eu disse que não ia falar da Dor, eu sei. Acho mesmo que tinha prometido nunca mais citá-la em dê maiúsculo. Afinal não é nome próprio. E nem de país ou feriado. Não faz diferença, provavelmente. Tampouco faz falar ou deixar de falar. Mas se tenho algo a dizer ─ tenho? ─, o que tenho a dizer é para você. Se não te falasse dela, maiúscula ou minúscula, falaria de quê? A única alternativa seria o vácuo.

A música, aquela, nunca mais escutei. Tudo que consigo é pensar nela, como se fosse uma abstração. Agora terminou. Não é possível que torne a tocar outra vez.

Teoria do anonimato

Forjei meu mistério
Contando ser amado
Contando mi'as mentiras
Invento mi'a certeza
Que não ser amado
É o único mistério
Verdadeiro



Recomeço

Desejas que te ame e não te deseje
E queres que te adore e não te queira
E exiges que te idolatre e não te reclame
E pedes que te enfeitice de palavras e decretas que devo manter quietas minhas mãos
E ordenas que cante tua beleza e te farte de parcimônia e te sacie da esmola de gratidão
E clamas e clamas e clamas que a poesia te enlace e te levite e te embriague em louco manancial que nunca chegue ao fim
E declaras que tudo que me cabe é perseguir teu sonho, abraçar teu halo, acariciar tua sombra
Sem que me permitas almejar teus olhos?
Então me pretendes um amante eunuco
Então me esperas um poeta mudo



The end of the end

A musiquinha que toquei pra você
sentado na beirada do sofá da sala
já era tarde
da noite e da vida
notas atropeladas no violão desafinado
estes meus dedos sempre tão irresolutos
pra quem não aprendeu sequer a amarrar os sapatos
até que me dei bem, você não acha?
eu queria ter tocado antes
mas vivia tão ocupado tentando acertar
se estivesse ao meu lado, você tamparia os ouvidos
bufando esse teu enfado que paralisa o mundo
as notas estridentes continuam ecoando nas paredes
teimando em esperar um significado
que só nós dois sabemos não haver



Ode triunfal da dívida eterna

Quero morrer antes, amor, e
Se deixares
Esperar morto que as
Asas desabrochem, as unhas
Parem de crescer e os pensamentos
Se purifiquem e então se possa ressuscitar
Sombra e pairar atrás de ti, te
Guardando anjo do anjo, até a
Hora da tua partida para que venhas
Te juntar a si e a si libertar

Cafezinho envenenado

Deito, durmo.

Para a vida passar rápido.

Quanto tempo leva a noite?

Nada, se você dorme.

Acordo e durmo.

Para a vida passar logo.

Quantas eternidades me cabe esperar?

A epopéia até o banheiro.

A mijada. (Quantos decalitros de urina carrego dentro de mim? Parece a primeira vez que mijo nesta vida.)

(Cocô, evito. Pois não existe a escatologia no mundo lírico. Preciso me concentrar no divino, na ascese, nas coisas que estão além. Quão além estão certas coisas.)

(E, quando não posso evitar, faço de madrugada enquanto o mundo está deitado. Que inveja dos que dormem.)

(Lavar o rosto, não lavo. Pra quê? Pra quem? Eis as perguntas que eu faria, se tivesse a quem fazê-las. Não há ninguém por aqui que me diga que estou com remela nos olhos.)

Do banheiro à cozinha, via-sacra. Não fizeram atalhos nesta casa? Malditos portugueses e sua cultura do atraso e os mil dias que levaram pra descobrir este país dos infernos.

Boto a caneca debaixo do filtro, por que esta água não desaba do alto qual tempestade em vez de pingar como se marcasse os anos na folhinha da parede? Um dedo d'água é tudo que espero. Virarei fóssil com esta caneca na mão? Serei exposto na Bienal das Artes?

Agora a fervura. Milagre, acendedor automático. Abençoados americanos que me poupam de esfregar dois pauzinhos. Se dependesse de mim, a humanidade não dominaria o fogo. Viveríamos todos na praia de Ipanema esperando a eterna passada daquela garota.

Libera tuas labaredas, boca dos infernos! Ferve duma vez, líquido teimoso! Incendeia o ar, as paredes, o telhado e as nuvens, extermina o tempo na tua fogueira, enevoa o dia em teu vapor.

Não posso acreditar -- serão borbulhas que ouço? A água está pronta? Tenho finalmente alguma coisa pronta na minha vida? Só acredito me queimando.

Próximo passo -- por que nos obrigam a andar? Seria tão bom se fôssemos todos parados --, próximo passo: ir até o armário, abrir a portinhola, apanhar o nescafé, desenroscar a tampa (prendendo a respiração pra não cheirar o pó), abrir a gaveta dos talheres, pinçar uma colherinha, extrair duas vezes, despejar, adoçar, mexer, experimentar, puta merda, quero apenas um cafezinho, não ir a Marte.

Chega a fatídica hora: descer até o escritório.

Não, não se dá a largada simplesmente. Requer preparação. É uma maratona. Preciso me concentrar. São quase 30 metros.

Tem dia, logro hibernar antes de largar e venço a competição sonâmbulo. Nem sempre me é dada esta dádiva. Não mantenho boas relações com deus.

E, quando logro sonambular, vupt! já estou diante do monitor ao recobrar a consciência. Obrigado, deus! Deus lhe pague.

Mas de que me adianta ter atravessado o Rubicão literalmente num fechar e abrir de olhos, se agora tenho de aguardar o Windows inicializar? Bill, tende piedade de mim.

Aperto o maldito botãozinho que já está quase quebrado de tanta raiva com que aperto o maldito botãozinho. Por que os americanos não inventam um Nescawindows instantâneo?

Enquanto a luzinha não bruxuleia na tela, acendo um Marlboro, que se consome em 3 ou 4 sôfregas, impacientes, fulminantes baforadas. Fuço em minha Estante para Emergências, que mantenho ao lado do computador, apanho O jogador, o da vez. No desespero da manhã paralisada, só Dostô pra me acalmar. Leio umas 3 páginas e o hinozinho do Windows anuncia que o fantástico mundo cibernético está enfim ao alcance do meu mouse. Precisava quase 2 minutos pra isso?

Acho que finalmente estou chegando. Só falta executar o Opera, digitar o endereço do blog, entrar com o email e o password (não posso deixar meus dados sigilosos na memória do programa. Tá cheio de bisbilhoteiro por aí.)

Eis que a tela amarronzada se descortina diante dos meus fatigados olhos. Eis aqui minha carinha barbuda. Olha, até que sou bem apanhado.

Corro pra ver se tem comentário.

Ontem à noite eram 57 comentários. Agora são 56. Apagaram um. Por que essa gente é tão indecisa?

Não! Me enganei. São 58. Uma alma caridosa deixou um comentário. Deus lhe pague, meu bom samaritano.

Clico no ícone. Anda logo, seu Opera molenga.

Não precisa ser simpático. Ou autêntico. Tudo que peço é, só não diga que não sei escrever.

E não precisa mais de dez linhas. Umas quatro bastam. Ou duas. Ou mesmo uma. Sei que hoje em dia estão todos apressados. Não quero abusar da paciência dos navegantes.

Abro. É apenas um smiley.

Meus dedos se crispam, apertando o Dostô como se fora um crucifixo. Nessas horas, lamento não ser crente. Até ontem à noite, me achava um agnóstico.

Um smiley? Quero rir. Mas, como diz a Dilma, isso parece integralmente meio impossível.

O jeito é reler minha última postagem. Escrevi ontem e já cheira a bolor?

Bom, pelo menos fede. A maioria não me cheira nem fede. A maioria até que me constrange.

Me sinto tão mal-amado.

A dor do alívio

Te odiei

Podia ter passado batido nos meus caminhos batidos
Virando a cara para os lados nos meus caminhos sem lados
De olhos fechados e de olhos fechados seguindo avante
Pisando em borboletas e fezes, minas explosivas sob as passadeiras de polipropileno

Mas, veja -- parei, abri os olhos, olhei em tua direção e te odiei
Quando a todos e a todas pago com indiferença
Eis que te dei motivo para gozar
Pois gozes

E após ter te odiado, tornei à minha abulia
E tive um vislumbre do futuro
Te vi diante de barreiras
Te consumias sem saída
Percebendo-as derradeiras
Mais insuperáveis que a doença ou a morte, o fim do tempo ou a sideral solidão
A que nascemos todos predestinados
E em meu vislumbre me vinguei

Não é homenagem a Fingal Wills

Quero me trancar num quarto sem portas ou janelas. (Você pode estranhar como é que eu entraria num quarto sem portas em primeiro lugar. Estranhe.) Nenhuma mobília. (Que tipo de móveis ia querer, afinal? Uma mesa de centro para receber as visitas que nunca recebi e nunca receberei?) Nem tapetes. Ou quadros.

(Já não estou? Não estive sempre?)

A única coisa que haverá no quarto, além de mim, é um antigo relógio pendurado numa das paredes. (Talvez aquele relógio de parede fabricado no dia em que nasci.)

O relógio não terá ponteiros. Mas terá um pêndulo. (Este é tão inútil quanto aqueles. Mas o relógio terá de ter algo que me distraia. Distração é tudo que busco.)

Se estiver numa das minhas fases de Mallarmé, pararei por aqui, deixando abertas todas as possibilidades de interpretação.

O pêndulo cumpre seu curso conhecido -- alguns centímetros para cá, os mesmos centímetros para lá.

Ah como são obedientes os pêndulos.

Não existe risco de surgirem à frente dele atalhos, encruzilhadas ou acidentes. Exceto no meu pêndulo. Que não quer outra vida. Que não suportaria outra vida.

Ao atingir o extremo esquerdo, o pêndulo fará tique.

Ao atingir o extremo direito, o pêndulo fará taque. (Ou poderá ser o inverso. Nada tem grande importância.)

Ah como são obedientes os pêndulos.

Você sabe, o tique-taque dos relógios é apenas uma convenção. Os italianos, veja só, chegam ao cúmulo de chamar de "ticchettio" a voz do pêndulo. Que doidos.

Atualmente estou mais para Pavese, mestre da angústia explícita, que se viu na obrigação de cometer suicídio para que não restassem dúvidas.

Não saberei de fato que palavras pronunciará meu pêndulo. Ninguém sabe que palavras pronunciam os pêndulos.

Dependendo da testemunha, pode ser a própria epifania. Ou uma risadinha do diabo. Para os filólogos, não passa duma onomatopéia.

Ali naquele quarto sem portas ou janelas o tique-taque tique-taque tique-taque do pêndulo poderá ser melífluo. Se eu quiser. Se eu puder.

Certos românticos pretendem que o coração também faz tique-taque. Que doidos. Só se quando não bater mais.

A lenda não diz coisa nenhuma

Tem gente que passa na casa dos outros só pra fazer faxina. Donde será que vem esse costume? Ainda se fosse back in Minas.

Uma vez (nem parece que fui eu) passei três dias no sertão de Minas.

(Não deu pra explicar Rosa. E nem Rosa nem ninguém explica o sertão de Minas.)

Não lembro mais que foi que fui fazer naquele cafundó. Só que me deu essa falta de ar que me dá todo dia, seja em Minas ou em Frankfurt.

Amigos tinham me dito que eu ia me esbaldar com as mineiras e sua proverbial generosidade. Bastava fechar os olhos e deixar que me levassem. Como disse, fiquei com falta de ar e só me recobrei retornando à civilização. No quartinho onde me enfiaram tinha umas lagartixas do tamanho de crocodilos. Não preguei o olho de pavor. Às 6 da matina me arrancavam da cama para uma ronda pela vizinhança e até as 11 me entuchavam de qualhada, queijo com goiabada e ovo de pato, ganso ou sei lá que bicho era aquilo.

Inacreditavelmente tinha esquecido de levar um livro. Diante da cama, à guisa de tapete, havia uma folha de jornal que li e reli até decorar qual o homem da letra efe de Malba Tahan. (Lembro ainda hoje os nomes dos quase três vereadores da aldeia.)

Tentei depois regurgitar a estadia no inferno como mais uma experiência, em vão. Não aprendi nada sobre mim. Aprendi que é impossível entender os mineiros. Os cronistas mineiros, esses pude então compreender. Quanto a Rosa, nunca mais li. Não sei se foi coincidência. Rosa só pode ser lido até os 22 anos.

Sílvia foi embora. Quero uma mulher que passe em casa e me ponha na cama. Banho, facultativo. Sexo também. Uma mulher bonita, atenta e discreta. Que, mais que rir, saiba sorrir. Uma mulher que vigie meu sono e, segurando com firmeza minhas mãos sobre meu peito, afugente meus pesadelos. De manhã, quando eu acordar, ela já terá tomado banho e ido, deixando no chão do box uns fios de cabelos loiros e curtos, castanhos e compridos. E seu odor de fêmea nas proximidades da privada.

Hoje desci, como ontem, como anteontem, matutando o que escrever. Não adianta matutar. Qual a mulher da minha noite sem mulher, escrever tem vida própria.

10:25

Um dia pensei como seria se me tornasse piloto de corridas. Uma noite aspirei a ser Fernando Pessoa.

Fui crescendo e vim perdendo o interesse pela velocidade e me dei conta de que emular Pessoa estava muito além das minhas posses.

Já grande, já forte e asfixiado, cogitei a possibilidade de virar guardador de carros. Por que não? Gostava de me imaginar nas quebradas próximas ao Teatro Municipal ou Conjunto Nacional, orientando motoristas estacionando no meio-fio seus luzidios possantes negros e cinzentos para em seguida encarar uma ópera de Wagner ou uma sessão de Sonata de Outono, o maior filme de todos os tempos. E depois de pedir ao doutor para deixar o leite das crianças antes de pegar a fila do teatro ou do cinema, me via sentado a um canto na calçada, apertando os olhos para ler pela enésima vez o Guardador de Rebanhos sob a luz raquítica das lâmpadas de mercúrio que dão à cidade essa vacilante penumbra de convento.

E lembro que, à medida que imaginava, cogitei ser outras coisas. Embora não lembre de que outras coisas cogitei.

E à medida que imaginava ser o que não sou e pensar o que não penso e estar onde não estou e viver o ontem ou o amanhã, ia decidindo que este lugar não era onde eu queria estar e agora não era o momento que eu queria viver e meus pensamentos não eram os pensamentos que eu queria ter e eu não era aquele que eu queria ser.

Assim fui indo, assim vim vindo, tentando tecer um futuro possível com a trama dos sonhos. Até que num dia de outono nem frio nem quente, nem abafado nem úmido, olhei em volta a esmo e me descobri um guardador de miragens.

Foi assim, de repente. E foi de supetão. Naturalmente já havia visto algumas miragens antes, conhecia suas cores diáfanas, conhecia sua urdidura de halograma. Mas, mesmo dado a mergulhar até o fundo da minha imaginação, nunca imaginei que pudesse guardá-las.

Você pode zombar da minha ingenuidade. Guardar miragens, de que serve tão supérflua ocupação? Pois é, eu tampouco enxergo utilidade nisso. Afinal não é profissão reconhecida pelo Ministério do Trabalho. Muito menos ofício de quem se dê o devido respeito. Ou de quem não brinca com esse tipo de coisa. Sequer me abre o caminho do sucesso ou do amor. E, sobretudo, não dá grana. Sobretudo mais uma vez, parece desatino de quem não se importa em ser motivo de piada.

O que é guardar miragens, afinal? Será o mesmo que sepultar ilusões? Ou cultivar mentiras? Colecionar enganos? Acreditar em fraudes?

Queria poder explicar. Mas não posso.

Porque sempre que me faço essas perguntas -- e essas perguntas induzem outras perguntas que induzem outras perguntas --, já não me interessam as respostas.

E assim vou passando meus dias guardando miragens.

Minhas miragens são entes duros de arrebanhar. Desprovidas da submissão dos carneiros, escapolem arredias para se embrenhar pelos meus matagais.

Minhas miragens são refratárias à conveniência portátil dos álbuns de fotografia. E não combinam muito bem com a arbitrariedade esperta das recordações.

Pois as minhas miragens se expandem ao mesmo tempo em que se contraem e viram do avesso sob estas leis físicas que desenvolvi para meu uso particular. E as minhas miragens não se prestam a se amontoar. E quando as junto se desmancham e desbotam e se re-formam e se camuflam e se diluem em sombras, espelhos e dejavus e já não posso reconhecê-las e já não posso querer guardá-las.

E ao fim da minha jornada e de tudo a que me proponho fazer, minhas miragens se entregam promíscuas e bestiais à procriação geométrica, bailando compulsivas, com esta minha necessidade visceral de povoar meus olhos. E eu, pequeno saltimbanco, assim as vou pastoreando, assistindo ao rito infernal destas minhas miragens que se multiplicam para preencher o que me resta ser preenchido.

E ao fim da minha jornada a guardar minhas miragens, caio fatigado de pastorear fogos fátuos e atravesso a noite enfermo duma enfermidade que envolve todas as minhas noites na asfixiante cela do presente.

E nesta minha enfermidade sem sintomas nem remédio, sem origem nem fim, meu único bálsamo é reconhecer para mim mesmo, e só a mim, que sou um reles guardador de miragens.

Pois quando guardo minhas miragens não penso, como aquele dia pensei, em não ser nada.

Um brinde inaudível neste teu dia

Me fatiei (hoje?) em pedaços do bolo do teu incelebrável aniversário. E, como teu aniversário não pude celebrar, não sei em quantos pedaços me fatiei.

Mas sei que havia um pedaço para cada um de nós (ôh). E também sei que você pôde finalmente embalar-se no encanto do teu dia, ainda que, para mim, o ranço azedo seja o sabor sob os teus comes e os meus bebes.

Fatiado, fui bastante para cada gosto. Saciei o engenheiro que a tudo calcula e que virou peregrino. Saciei também o moço encarregado de ir ao banco pagar contas todas as manhãs. Saciei todos quantos tivessem um paladar a ser saciado.

Só não matei tua fome.

E quando chegou a hora esperada do champanhe, não pudemos brindar -- minha taça jazia seca na minha mão (e), minha sede era abissal.

Enterrem meu pen drive na curva do rio dos Meninos

29 de agosto de 2010. 11:03. O universo inesgotável do domingo até a hora do almoço. Clasp.

Outra das minhas manhãs.

Estou c'um troço entalado aqui dentro faz umas duas semanas. Um dos meus. Fora os inumeráveis, imensos, desentaláveis de outras eras de que já não me lembro mais. Espontaneamente.

Ontem (sábado? não acredito que Daniel perca seus sábados enviando emails a ex-amigos) recebi um email do Daniel, amigo dos tempos da faculdade que não vejo há 30 anos e lá vai pedrada. Eu, jornalismo, ele, cinema. Eu caçoava que ninguém precisa fazer curso de cinema para filmar, o argumento básico popular nas décadas de 70/80 quando ainda havia homens convictos de que eram capazes de fazer seu próprio caminho e os mais incautos como eu não davam bola para futilidades como diploma universitário, mesmerizados que éramos com Sartre tachando sumariamente qualquer coisa de "burguês". Eu provocava só para ver Daniel me devolver o sorriso mais cordial que já se abriu no rosto de alguém, sorriso no meio do rosto de barba castanho-clara rala, sorriso no meio do rosto pacato de quem não veio ao mundo matar ou morrer. Ele poderia retribuir na mesma moeda rindo que ninguém precisa cursar faculdade para redigir uma notícia, mas me poupava. Me poupava judicioso, sem bater no peito, me deixando interiormente envergonhado das minhas frivolidades quando ainda me sentia capaz de me envergonhar. Daniel foi uma das duas ou três pessoas que conheci que não são frívolas. No ponto a que cheguei, vejo que a maior virtude que você pode alcançar é não ser frívolo. Quando eu, ele, o Mario e o Jorge esticávamos a noite num buteco da vila Madalena nos atirando em intermináveis confabulações para derrubar o general Figueiredo, com gana de linchar Glauber por elevar Golbery a gênio da raça, declaração de independência ideológica impensável hoje sob a ditadura boçolulista, Daniel se levantava de repente da mesa alegando que tinha de estudar e dava tchau sem tom de censura e passava de fato as noites estudando e nenhum de nós era capaz de ganhar dele aquelas antológicas discussões em que despejava avalanches de datas e nomes obscuros até capitularmos. Glauberiano, a ditadura não lhe causava fascínio nem temor e eu o invejava e desprezava por isso. Saí da faculdade e acabamos nos afastando. Eu o chamava de Danny-baby e ele dizia que eu não era o único a chamá-lo de Danny-baby em tom de insustentável coquetterie.

Respondi o email fazendo um certo rodeio sobre minhas atitudes daqueles tempos, tentando não trair arrependimento nem soar nostálgico ou humilde nem sugerir que gostaria de tornar a vê-lo. Gostaria, claro. Mais que tudo, ontem, relembrando, sentindo o sabor amargo do meu ex-amor por ele. Nunca mais me apaixonei por um homem. Isso pelo menos consegui. É paixão indigesta que não sobe nem desce, entalando para todo o sempre junto com meus inumeráveis entalamentos.

Acabei de reler meu email e, droga, dei todas as bandeiras que pensava não ter dado. Nunca mais vou escrever nada em minha vida. E vou esquecer o Daniel.

Meu programa de alarme toca. 11:15. Hora de esticar os músculos. Acertei o programa para disparar a cada 15 minutos e me lembrar, senão passo três horas aqui parado tentando ler, tentando escrever, ciscando no portal do Estadão me exasperando com o boçolulismo encastelado no poder tal como me exasperava com os generais, com esses articulistas poderosos ilegíveis batendo mecanicamente na mesma tecla de sua visão assalariada e seus leitores com meio grau de noção do vernáculo alimentando vulcões de postagens indigentes.

Esqueço o alarme e sigo. 11:18. O cheiro de frango assado engravida o ar, como diria aquele cronista político dado a literatices. Vem lá debaixo, do Lacerda. O Lacerda nasceu para destrinchar frango assado. Arregaça as mangas, veste seu avental nascido branco que mudou de raça ao longo de anos de manhãs destrinchadoras, mune-se do garfão-facão e inicia seu show dominical na porta do buteco debruçado sobre a mesinha ao lado da máquina de assar, vulgo tevê de cachorro. Entrementes, dona Jussara cuida do cupim assado. Soninha gerencia a distribuição da manguaça no balcão, mandando e desmandando num molecote nordestino contratado especialmente para a farra do frango.

Aos domingos papai tomava meia malzebir que deixava eu e minha irmã pingar um dedo no guaraná no que para ele tangenciava a insensatez, um risco de devassidão que não valia a pena correr. Ah, se ele soubesse então. Uma época mamãe ia de sangue-de-boi, de que eu e minha irmã tomávamos meio copo com dois dedos de açúcar, minha primeira pista dos meus pendores autoinebriantes. Pós-adolescência virei biriteiro e a mana nunca mais bebeu, meio que enojada da corrupção dos sentidos provocada pelo álcool, até que arredia a qualquer tipo de porre. O que prova que beber ou deixar de beber não faz diferença: ambos demos errado aos olhos do mainstream deslumbrado com a felicidade de existir. Embora só eu ainda curta celebrar a morbidez de ser o que sou.

Farejo o frango me sentindo relativamente acordado. Alguns pensamentos mais lúcidos escapam até a tona, bracejam uns segundos e sucumbem sob o peso das emanações primevas do sono. Estou seco para tomar meu primeiro balla mas vou dissimulando como posso, fingindo que sei me controlar. Até um certo ponto logro curtir a angústia da abstinência. Dependendo do dia, da véspera, das minhas perspectivas imediatas, do meu estado interno refratário aos meus ataques volitivos, gozo mesmo o desespero alucinatório. Há anos o dr. G me diagnosticou distêmico nessa mania que os especialistas têm de rotular (claro, não há rótulo mais cafona que acusar alguém de rotulista), me olhando vaidoso se achando craque em desvendar as maçarocas da cabeça humana abrindo um risinho de quase escárnio ante a minha opção pelo sofrimento. Não é opção, seu burro, eu escarnecia por dentro, para instaneamente receber o troco do meu superego fustigado pelas sacadas interpretativas.

11:30. O despertador bipa. Está uns 27 graus neste dia de inverno. Falar do tempo é o que faltava. Me defendo: pelo menos não estou enganando ninguém. Vá ler os cronistas do Estadão e depois me diga. Antes de ontem não resisti quando o Jabor espinafrou Pessoa para fazer uma de suas gracinhas de cronista que tem de bater ponto e resolvi responder e disse que virou moda fazer de Pessoa saco de pancada. Como já disse, não tolero frívolos. Aquele caroço entalado é porque há dias venho penando tentando a simplicidade não me dando por satisfeito. Escrevo duas linhas e torço o bico achando rebuscado. E, ó santa mãe, a Soninha me dando de zero. Outro dia caçoei que ela me pediu aulas de escrita e vi abobalhado que aquilo que ela escreve é aquilo que eu sempre quis escrever. Leio os exercícios dela procurando a chave até me ver mordendo os lábios. É uma eloquência pueril e fácil. Livre destes meus badulaques intelectualizados. No frykots. Adjetivação coloquial. Ritmo natural. Produto duma cabeça sem bronca. Apesar do pai que a visita na cama no meio das noites desde os dez anos.

A manhã vai morrendo mais rápido do que eu. Sonambulismo a meia escala. Meu período de essência é a madrugada, que raramente vivo. A madrugada me aterroriza. Entre outras coisas. Antigamente acordava às cinco da manhã e saía e caminhava até a padaria, tomava um cafezinho melado e fumava meu primeiro cigarro olhando intrigado, meio extasiado a peãozada engolindo uma cana para pegar no batente rindo à fuzarca ante o barato de viver. Hoje fumo o primeiro sem café. Fumo cada dia mais. E bebo como nunca sonhei poder beber desde aquele dia em que aos 13 entrei naquele bar na esquina do instituto de ensino e pedi um dreher e fiquei esperando Ângela sair e o portuga perguntou minha idade e eu disse 16, ele disse que eu não tinha cara de 16 mas me serviu vários drehers franzindo o cenho à guisa de reprimenda e Ângela aquele dia não apareceu e voltei para casa bêbado e deitei na cama e enquanto meus pensamentos rodopiavam numa mistura do rosto brando e branco emoldurado pelo cabelo liso e loiro de Ângela misturado às paredes e ao teto fiquei prometendo a mim mesmo que nunca ia deixar de beber enquanto beijava o travesseiro delirando ser o angelical rostinho de Ângela e eis-me aqui cumprindo a única promessa que lembro ter feito a mim mesmo e a quem quer que seja numa época em que era magicamente possível acreditar em promessas.

O cheiro de frango assado atinge o auge. Ouço os guinchos dos bebuns celebrando a orgia da vida na porta do buteco. A essência da liberdade. Sinto a boca aguar. Ainda não, me contenho. Preciso escrever e nos últimos tempos não consigo mais escrever bebendo. Um gole, as palavras secam. Preciso escrever? Necessidade de escrever é papo de literato e graças a sei lá quem não sou, não quero nem posso ser literato. Escrevo apenas... Sei lá por quê. Estou me disciplinando para só beber na minha mesa no canto mais escuro do buteco. Preciso dum mínimo de organização. Nos últimos tempos minha cabeça tem me levado para uns cafundós inóspitos que me deixam meio assustado. Estou me descontrolando, minha loucura se desfazendo de qualquer resquício de glamur, o faz-de-conta virando realidade, às vezes não vislumbro o caminho de volta, já cheguei até aqui antes e corri de volta à familiaridade morrendo de medo não imagino de quê.

Ninguém te enche o saco num buteco. Todos sabem que você foi fugido até ali e todos são fugitivos por vocação e o pacto supremo inviolável é nunca especular sobre os motivos do outro e ninguém está preocupado com responsabilidades, compromissos ou opiniões alheias. Cobrar atitude de alguém dentro dum buteco pode resultar em morte.

11:43. Okay, estou a ponto de desistir. Não quero mais escrever. Não tenho mais o que escrever. Se é que tive algum dia. De novo: para que escrevo afinal? Quero ser escritor mas não tenho saco. Não gosto de, não sei fazer. Se faço, fica com essa cara de que não devia ter feito. Sou um mero sonâmbulo e a nada mais almejo senão dormir para sempre sem sonhos nem tiques.

Chega de rastrear as horas. O Lacerda, a Soninha, a dona Jussara, minha mesa no canto escuro ao lado do salão de jogos onde me sento para empolgar um copo e por umas horas reinar sobre os cadáveres fétidos das minhas neuroses me alheando das minhas injunções morais misericordiosamente me esperam e sei que em breve nem esse mísero bálsamo me restará e não me sobra nenhuma outra alternativa.

Adeus, literatura, escritores e palavras. Renuncio pomposo à minha autoimposta sina de ser pensante para abraçar pomposo minha animalidade. Por umas horas serei feliz. Vou em perseguição da inebriação mitigatória. Que minhas próprias palavras se recusam a me conceder. As palavras são minhas verdadeiras inimigas, não me concedem um pingo de alívio, não me permitem a dissimulação, então só me resta sufocá-las sob um aluvião de álcool. Por umas horas estarei livre delas e de mim mesmo?

Me faço essa pergunta três ou oito vezes por dia e sem pestanejar -- não sou homem dado a essas coisas -- saio e bato a porta e tomo o rumo do buteco do Lacerda aproximadamente um quarteirão ao sul daqui, cercado de fossos habitados por grifos nada mitológicos e miragens tatuadas de borboletas de ônibus.

São 87 passos até o buteco do Lacerda. Oitenta e sete passadas normais. Se é que sei o que seja uma passada normal. É difícil preservar a normalidade quando você está dando passadas para fins de medição. Não determinei esses 87 em uma só vez. Foram várias contagens. Umas davam sessenta e pouco, outras noventa e tantos. E o número na volta nunca era o mesmo que o da ida. Devo ter levado uns meses para me certificar dos 87 com razoável segurança. Mas em geral não faz diferença. Começo a contar, me perco no caminho, retomo dum número aleatório, às vezes roubo algumas passadas antes para fazer bater, outras, finjo que esqueci de contar e quando dou por mim estou sentado na minha mesa no canto mais afastado do salão das mesas ao lado do salão das mesas de jogos com meu copo de stein ultragelado entre os dedos e o teatro lá de fora desaba, matando seus personagens sórdidos.

Saio, tranco a porta, arrependimento instantâneo. Preciso, quero voltar para as palavras. Mas as palavras não perdoam e estou condenado a seguir em frente, cumprir minha peripécia e retornar de cabeça baixa para implorar que elas me aceitem de volta sabendo que o castigo será cruel e longo e acima de tudo árido.

O buteco está em estado ideal, meio cheio, meio vazio. O Lacerda zanza entre as mesas. Parece "alquebrado", segurando as ancas com uma das mãos e meio que mancando. Pergunto o que aconteceu, ele diz que machucou as costas levantando uma caixa de cerveja hoje cedo e quer saber se vale a pena ir ao INSS pedir licença remunerada. Digo que o INSS está em greve há cento e quarenta dias e um laudo levaria uns oito meses para sair. Ele resmunga um palavrão contra o governo e ruma para o balcão.

Minha mesa no meu canto é a única vazia. Sento e Soninha vem lá detrás do balcão c'um cinzeiro e um copinho de stein. Sinto gana de agarrá-la e lhe chupar a boca de lábios cafuzos mas o Lacerda nos proibiu demonstrações públicas de afeto. Ela deixa o cinzeiro e o copo na mesa e me roça o ombro com o bico de uma das tetas e quero lhe meter a mão sob a sainha e enfiar o dedo médio entre aqueles grandes lábios de cafuza. Está sem calcinha, dá para notar aqui de fora, me fazendo uma infindável, torturante promessa que sabe não precisar cumprir.

Empunho o copo ultragelado e começo a acordar. Eis o momento. Eis a glória do meu dia. A antecipação do néctar etílico me invadindo a boca, adormecendo a glândula salivar, descendo pelo esôfago, se embrenhando nos interstícios das minhas entranhas para me espantar de mim e me agraciar com a alforria do eu-verdugo. Meu batismo pagão tem me salvado. Quando não tiver mais direito a ele, tudo estará acabado.

Meto a borda do copo entre os lábios e sorvo com cuidado. Todas as palavras que fugiram de mim esta manhã passam em alto-relevo, nítidas, negras sobre fundo branco, reluzindo em fila indiana diante do meu cérebro. Até uns meses atrás corria a pedir um bloco de papel e uma caneta a Soninha para tentar registrar o desfile. Mas as palavras evaporam quando me veem equipado para a lida e só dão o ar da graça quando largo a caneta, afasto o bloco para um canto da mesa e empunho o copo novamente. Assim vamos brincando de esconde-esconde, eu eterno brincalhão contrariado, eu eterno perdedor. Três goles e posso enfim vislumbrar o que queria ter escrito esta manhã e não consegui e nunca vou conseguir.

Estou sentado em agosto. Papai morreu em agosto. Mamãe, setembro. Quando não tenho que fazer fico tentando adivinhar o mês da minha morte. É importante para os que ficam. Papai nasceu em dezembro. Mamãe, setembro. Eu, dezembro. Minha irmã, setembro. Sílvia, fevereiro. Dou graças por não ter nascido no mês do carnaval. Por que não fui embora do Brasil quando podia? O Canadá estava a uns poucos dias de preenchimento da documentação burocrática, fiquei com preguiça. E tenho medo do frio. Duvidava que pudesse sobreviver nas pradarias geladas canadenses. Tendo resistido até hoje ao Brasil, hoje sei que poderia ter sobrevivido até no inferno.

Último gole do stein. Agosto passado jantar com Sílvia num daqueles fancy restaurants que ela curte. Cisca em suas saladas enquanto bebo e quando me ocorre que estou com fome já é tarde e ela está pagando a conta. Digo que podíamos dar uma esticada até a praia assistir o pôr do sol, dormir na areia. Não gosto nem do pôr do sol nem de dormir na areia mas curto descer a serra grogue. Ela tem de acordar cedo. Então peço pelo menos uma passada num bar qualquer para a saideira. Ela concede contrariada. Enquanto bebo ela toma uma salada de frutas com tons de rum. Estamos em casa às onze. Ligo o computador, ela vai para a cama. Entro no youtube e assisto uma luta de vale-tudo. O sangue jorrando das caras dos gladiadores é uma das poucas coisas que me fascinam. Deito, fecho os olhos, retomo meu sono.

Acho que ainda não contei como eu e Sílvia nos conhecemos. Preguiça. Tenho essa preguiça insuperável.

O stein vai pouco a pouco combatendo este choro que ainda está entalado bem no meio do peito. O preço será alto. Todos são. Sempre são.

Sei lá se tem coisa mais gostosa que ficar me embebedando nesta minha mesa neste canto escuro olhando a rua matando a charada inscrita em cada rosto que passa lá na calçada acompanhando seus donos e donas mentalmente passo a passo até seus destinos me imaginando em cada um dos lugares em que jamais sonhei estar sem saber exatamente por que enquanto Fred e Afonso (esqueci de avisar que o Afonso e o Fred chegaram e já estão instalados ao meu lado trocando suas profusas impressões) trocam impressões contidamente histéricas sobre suas transas desta tarde naquele simulacro afetado de troca de gemidos que os bichas tanto curtem.

Comecei a perceber que havia algo errado entre mim e Sílvia aquela noite quando estávamos trepando (ou fazendo amor, como ela me corrigia franzindo a testa e revirando os olhões) e ela olha para a minha cara na sombra do quarto e começa a rir aquele riso de deboche que conheço tão dolorosamente bem.

Nos conhecemos pela internet tal qual metade do mundo se conhece hoje em dia. Tudo bem, pode rir também. Eu também ria até aquela vez em que entrei naquele portal de dating.

Antes preciso deixar registrado aqui e agora que tinha 12 anos quando fui ao baile de debutantes da minha irmã. Camisa de cetim brilhante branca (onde será que foi parar aquela camisa? me sentia um marciano dentro dela), calça preta de veludo cotelê. Ela (irmã), de vestido rosa-paraíso ao lado de papai mal enfiado num terno que não parecia ser dele.

Comecei a entrar nesses portais só para me divertir com a desconcertante e exótica e grotescamente patética fauna a navegar por esses escritórios obscuros online lançando risíveis e pueris truques na ânsia de engazopar algum/a trouxa. Passava horas condoído da solidão humana perplexo com a falta de simancol dos perdidos, descarados e solitários. Como toda tribo, são adeptos do jargão e tive de procurar um dicionário de dating cibernético para conhecer as dezenas de acrônimos que eles usam.

Estou equipado de súbita, surpreendente, irresponsável energia. Como nos tempos velhos. Há algo errado. Fôdasse.

O Lacerda liga a tevê de plasma mil polegadas recém comprada em mil prestações, peço para botar no Raul Gil-il-il-o sujeito mais televisivo do Brasil. Olho para o tagarelante Fred e quero lhe explicar que o mundo está nos estertores e as novas gerações estão perdidas, opto por me resguardar. Esse tipo de mecanismo ativa em algum lugar dentro de mim quando me encharco de stein ultragelado me propiciando essa inusitada, benfazeja blindagem.

Nos primeiros dias ficava zuando com as donas que na maioria são negras ou mulatas, pobres e ignorantes redundante incluir, e feias que sonham em fisgar um otário que opere o milagre de tirá-las do cortiço em que vivem para instalá-las num sobradinho classe-média-baixa na Penha ou no Butantã c'um Gol noventa e cinco na garagem de paredes de bloco sem reboque.

Homens querem comida pr'uma noite, mulheres "buscam" relacionamento permanente, honesto, sério e sólido. Eu achava que toda mulher é séria e sólida até a Sílvia começar a me trair com o Augusto e me contar as safadezas que faziam no motel e que nunca aceitou fazer comigo, na mais cruel vingança ao contrário que me deitou embasbacado para todo o sempre.

Me inscrevi no portal e fiz meu anúncio assim: "Homem na casa dos 30 procura mulher de qualquer idade e qualquer peso, qualquer escolaridade, qualquer QI e MEIGA para sexo ou algo mais. (Note a sacanagem neste detalhe.) Quero ser feliz uma vez na vida. Sou acima de tudo inortodoxo."

Apus o "inortodoxo" em posição estratégica na esperança de afugentar as domésticas que certamente associariam essa minha condição a uma doença e ao mesmo tempo chamasse a atenção de alguma universitária perdida na rede à procura de diversão. Naqueles tempos eu ainda tinha algum preconceito e achava que universitárias eram melhores que empregadas. Estava errado, claro. As humildes são bem mais simples e manipuláveis e você pode comer sem maiores implicações, comer de verdade, com variações no prato principal e na sobremesa, sem restrições de horário nem recomendações calóricas. Pode, vírgula. Podia, quando ainda era capaz duma ereção. E tudo se mostrou melhor assim. Nada é mais trabalhoso e fatigante que a faina sexual. E mais desorientador. E, no fim, nocivo. Eu estava relativamente bem até então. Uma ou outra retirante de vez em quando bastava. Mas como sempre a compulsão do sexo se impôs e concluí que era sexualmente frustrado e precisava de alguém mais ou menos à minha altura e entrei no maldito rendez-vous digital.

Batata. O "inortodoxo" produziu o efeito desejado. Hoje sei que devia ter sido mais malandro. Quem acabou indo para o abatedouro fui eu. Para variar, por causa duma palavra. Até então me achava o batuta do verbo. Nunca tinha escrito nada de importante mas "sabia" que daria no couro quando chegasse a hora ou quando simplesmente me dedicasse com um mínimo de empenho. Tinha tudo aqui dentro. Não tinha noção de que entre minhas teorias internas de mim mesmo e o mundo imediatamente exterior havia uma dimensão inteira de separação. Minha cabeça é e sempre foi regida por esse tipo de fantasia. Quando chegar a hora, quando eu realmente quiser, nada será impossível. Algumas vezes até que deu certo. Sou um sujeito "resourceful", afinal de contas. E nas vezes que deram certo simplesmente joguei as oportunidades pela janela. Mais um dos mecanismos que ativam dentro dentro de mim à minha revelia. Acho que agora lembrei por que escrevo, afinal de contas. Acho que escrevo para tentar entender os raios destes meus malditos mecanismos autômonos. E quando, durante, me lembro do por que escrevo, até que consigo botar o dedo. Mas eis que entra esse outro maldito mecanismo autônomo na parada que me faz escrever a esmo caçando no escuro cego sem faro.

Sílvia responde ao meu anúncio dizendo que passa o tempo livre com a família e amigos e com seus livros, seus preferidos sendo, CNPDS, os russos, os franceses e os alemães, gosta de cozinhar mas não tem muita paciência por isso só cozinha nas manhãs de domingo, encara arte seriamente frequentando MASPs e galerias, tem amigos pintores, designers e arquitetos, é conhecedora de vinhos, na verdade, modéstia à parte, uma sommelier (fiquei tentado a lhe explicar que no mundo da civilização sommelier é aquele garçom que traz a carta de vinhos mas achei melhor não), politicamente alienada, gostou do meu anúncio pela originalidade, dá para perceber que se trata dum cara "cultivado", talvez sofisticado, sofisticação parece ser sua senha no mundo e na vida, poucos sabem cultivar a sofisticação, poucos sabem identificar a necessidade de sofisticação, as injunções do dia a dia deixam a casca grossa, embrutecem, sabe como é, estamos cercados de primitivos por todos os lados e agora eles saltam da tela do computador diretamente no teu colo, e está torcendo para que eu seja de fato, como meu anúncio diz, um sujeito honesto, atencioso e orientado para os outros feito ela, não necessariamente bonito e atraente como ela, para finalizar é pessoa de princípios, alguns deles remanescentes dos tempos áureos em que havia hierarquia, autoridade e disciplina na família e eu ser um quê da moda antiga, eu ser antilulista, antiboçalista, antibabaquarista representaria definitivamente um plus, evidência cabal de estar lidando com alguém de personalidade.

Eu quero trocar fotos, Sílvia, não. Diz que confia em mim, que certamente não sou um obeso de 160 Kg vetado para qualquer tipo de "socialização". Não me dá tempo de ajuntar se do meu lado tudo bem. Uma fotinho, mesmo que de lado. Whatever, torço para que Sílvia seja uma velha albina e manca com tendências autistas e dentaduras. Já me arrependi da brincadeira toda. Se for bonita, ainda por cima, vou me apaixonar no ato e sofrer todo aquele martírio da paixão não correspondida que conheço como a p'alma da mi'alma. God, que é que vou falar com essa mulher? Você já reparou que todo filme hollywoodiano tem uma receita do que falar num primeiro encontro? Cada uma delas abjetamente inverossímel. Vou falar do tempo. Vou falar da economia. Perguntar em qual deputado ela votou na última eleição. Não, vou ficar quietinho, deixar que ela assuma a direção. Deve ser feminista como nos hollywoodianos. Do tipo acasaladora-procriadora-divorciadora. Talvez acabe pagando a conta do restaurante com tamanha sofisticação de mulher moderna, que eu sequer perceba que pagou a conta, deu gorjeta ao manobrista, me deixou na porta da estação do metrô e me esqueceu.

Me dá aquela coceira nos dedos que tantas vezes me botou em enrascadas. Questão de tempo. Cedo ou tarde dou uma pisada homérica. Quero digitar que vou lhe mandar meu erregê. Que é autêntico. Tirei em 71. Dezesseis anos de ferro.

Ergo a mão direita e estalo os dedos. Sô, mais um.

(Será que Sílvia sacou tudo aquela tarde em que voltou do trabalho e eu estava ajudando Soninha a esfregar o piso da sacada respingada de gordura do churrasco do sábado chamando Sô isso, Sô aquilo? Detesto intimidades e nunca chamo ninguém por apelido ou iniciais. Whatever. As paixões são impossíveis de esconder. Mesmo para os que pensam não se apaixonar.)

Soninha traz meu stein ultragelado. Qualquer hora conto como comecei a beber steins ultragelados. There's not much to it. Meus tipos de bebida são as fases da minha vida. Malzibier, vinho com açúcar, rum (sim, o doce, maquiavélico, teletransportante rum da minha pós-adolescência quando papai estava vivo para que eu pudesse odiá-lo sem culpa, quando já não havia saída mas ainda não me sentia encurralado), dreher, rum, cavalinho (a pinga dos meus tempos de navegante solitário, rei das ruas desoladas alheio a todas as caças, fera alimentada das desgraças raças taças), caipirinhas, cerveja, stein e balla. Vou pular o chá. O chá nunca me deu o barato de que gosto. Me carrega para um canto psicodesértico na minha cabeça com que não sei lidar. Qualquer hora também quero falar do meu recanto psicótico, meu jardim, o lugar onde me é possível entender todas as coisas para entender que nenhuma delas deve ter importância.

Irmã, por que tudo não parou naquele teu baile de debutante? Foi quando aprendi que só devia ir a eventos sociais bêbado e já não tinha outra solução. Aquela tarde tomei vinho com coca-cola, assisti você e papai dançando o hino das debutantes e metade de todas as mentiras se cristalizaram na minha mente.

Prezada Sílvia, permita-me apresentar algumas das minhas características. Não sou gênio nem jumento. Das coisas práticas, consigo trocar uma lâmpada. E queimar a lâmpada tão logo a tenha trocado. E acender uma vela. E apagar a vela. E murmurar a música que só toca na minha cabeça. Gole. E de tanto murmurar a música que só toca na minha cabeça você desistirá de cara de me levar a festas, jantares, casamentos e enterros. Gole. E só paro de murmurar esta minha maldita música para abrir o portão para o filho da puta que todo mês vem ler o relógio da luz. Gole. Gole. Mas sou imprevisível ao murmurar minha música. Gole. Gole. Gole. Quando dá na telha, sob gulosos goles de stein, solto um grito. Gole. Gole. Gole. Gole. No meio do salão das mesas do buteco do Lacerda da dona Jussara da Soninha. Gole. Então é a maior festa. Gole. Gole. Todos me olham, sou o esquisitão do pedaço. Gole. Viva o esquisitão. O esquisitão é esquisitão mas no fundo gostamos dele. Eles nunca toparam cum esquisitão de verdade. Com o esquisitão tudo é tão diferente. Gole. Gole. Gole. Esquisitão debuto e desdebuto a bel prazer. Represento todos os papéis que nunca pude. Gole. Gole. Paro. Olha a viagem. Sou uma degenerescência. Até que nasci normal. De lá pra cá, mergulho em queda livre em mim mesmo. Matei. Teatral. Teatralidade indeglutível.

Dentro de 35 min. vou finalmente me dar conta de que estou aqui parado assistindo ao fluxo da noite dando ouvidos a duas bibas desenxabidas letalmente maçantes e peidorreiras arriscando olhares tortos para as três ou seis piranhas ocupando a mesa ao lado trocando fofoquinhas aos silvos malcontidos que, sei, se prestasse atenção, me fariam dormir e então presto.

Deus ou sei lá quem está me usando de cobaia. Ih, bandeira divina.

Aperto os dedos no copo, me maravilho com minhas impressões digitais. São a prova de que existo. De que estive aqui. E testemunhei todos os risos e todas as carrancas e todos os diálogos que me couberam testemunhar. E cometi o crime que me coube cometer.

Sílvia, meu tipo sanguíneo é ó positivo, universal, vermelho, aguado.

De tanto irrigar este meu cérebro bichado.

Quero apanhar o copo e tiro um Free do maço, boto na boca e acendo. Voltei a fumar depois de 18 longos anos. Redebutando. E volto de novo se for preciso. Não há nada mais gostoso que fumar. Adivinha por quê? Não, você não é adivinha. Você é a mulherzinha mais sonsa que já conheci. Não há nada mais gostoso que fumar diante dum stein ultrahipergelado.

Preciso dum stein pra matar meus bichos. Não pergunte por quem os steins se devoram. Eles se devoram por ti.

Na impressão do meu polegar direito tem um calo. Rio extasiado. Ainda? Dos tempos em que tocava violão. Quando queria ser artista. Meu pai, qual o do Huxley (vou citar só desta vez), era semianalfabeto (ao contrário do pai do Huxley) e queria ser poeta. Taí algo que não se aprende nem tem diploma. Até hoje não aprendi a tocar vilão. Não sou bom em coordenação. Nem em nada que exija destreza física.

Lá, põe na conta. Com essa já são mil e duzentas pilas, mede o Lacerda em sua calculadora de bolso. A água de coco é por conta da casa.

Eu e meus recatos. Um dia deixei escapar piranha na frente do meu pai, tomei uma bofetada na boca, meus lábios incharam feito os daquela californiana que ficou com cara de gato esquizofrênico depois de centenas de plásticas. Pra que, pra quem? Escuto longinquamente que as piranhas da mesa vizinha se chamam Suéllen, Larissa e Tainara e não têm nada a ver com a minha infância. Fico ouvindo uns segundos alisando de mansinho o peitoril da minha camisa de cetim cor de pêssego (já sujou, seu porqueira?), vislumbrando enquanto o Lacerda muda de canal e põe no BBB.

Prezada Sílvia, vou te castigar. Te torturar. Te amarrar na minha cama. Amordaçada. Não vendada. Quero ver teus olhões espichando de apreensão. Medo. Ânsia. Gratidão. Coberta apenas com esse véu que você usa, ó mãe, no pescoço. Então vou puxar uma cadeira pertinho da cama, vou ficar te observando. Te ascultando. Te estudando. Talvez diga alguma coisa. Não sei. Não sei o que poderia dizer. Na hora talvez me ocorra algo. Sei que estarei inspirado. Quão inspirado estarei. Minha respiração se paralisa de sonho. Se você for boazinha, tiro a mordaça. Só para ver esses teus dentões de dragona de pés no chão. Mas tem de me prometer: não dirá nada. Nem mesmo o que quero, o que preciso escutar. Você acha que isto é poesia? Se for, você acha que esta é a poesia dum cara apaixonado? Ou só a lavagem que deus botou na minha alma antes de se suicidar? Sou castanho. Barbudo. Entradas ligeiras mas não calvo. Não sei amarrar sapato.

Se eu disser que nem sei amarrar sapato você não vai acreditar. Não sei amarrar sapato. Nunca vi alguém tão inepto quanto eu.

Ei meninota aí passando entre as mesas. Quer uma foto comigo de cigarro na boca? Só pra guardar no fundo da gaveta do sua cômoda e nunca ir lá olhar? Anexo ponho uma declaração de amor descarada pra você não ler. Cum montão de pensamentos inconfessáveis. Cadelinha silvestre roxa pintalgada de amarelo. Então um dia você resolve e pega e bota a foto no porta-retrato da estante cheia de badulaques na sala no lugar de papai. Que lhe parece? Ha-ha-ha, escuto tua risada sarcástica.

Depois desses anos todos hoje cedo me vi no espelho opaco do meu quarto e falei, meu, você vai mofar entre estas paredes rumo até quando, se me permite perguntar?

Petulante duma figa. Tédio reverberando a mil ciclos por segundo. Prestes a romper a barreira do meu coraçãozinho de rapadura e fígado empedrado. Duvido que você possa imaginar. Que digo? Não estou interessado. Vai assistir tevê e me deixa em paz com meus delírios.

Af explica que o Bial fala cinco línguas.

Uau, tô inspirado. Inspiração me dá prejuízo. Nesse estado bebo até desmaiar. Amanhã será um tormento. Não aguento mais beber. Tô com o serviço atrasado. Vários processos esperando. Os clientes retendo meus honorários. Vejo o calote escrito nos teus olhos.

Tainara, Larissa ou Suéllen atrai um dos meus olhos. Fred se põe vigilante, mordendo o lábio superior de ciúme. L, S ou T exala aquela sensualidade elétrica que todo homem, mesmo boyola, capta no ato. Ainda não sonâmbulo procuro aguçar a atenção em meio à névoa etílica. Beições chupáveis, nariz correto, olhões circulares, tudo gostoso e cafona. O problema é o conjunto. Rosto de vácuo, inexpressividade suja de incultura, insubstância meio aterradora. Não parece gente. Ai que falta sinto da minha Sílvia gente.

Ei Suéllen, quer falar dos teus sentimentos? Pode falar, não sei se quero ouvir. Porque você não sabe falar dos teus sentimentos. Porque não quer. Porque não pode. Só sabe inventar lorotas. Perdi a conta de todas as que inventa. Uma mais risível que a outra. Tenha ao menos a decência de soar convincente. Tainara e Larissa merecem um tico de consideração.

Af e Fred estão especialmente tagarelas hoje.

Que boçal, escuto a voz de loro do Af imitando Juvenal, o papagaio que o Lacerda sempre tem ao ombro. Inerme, evito reagir.

Não tolero gente baixa, escuto a voz se dirigindo diretamente a mim vindo de algum delírio online. Fred e Af discutem as chances dos concorrentes. Nasci no mundo errado. Este é das suéllens.

-- Bem, senhores, foi bom enquanto etc. Cansei. Já aturei além da conta a faladeira gay. Outros desafios inquietam meu espírito aventureiro, a comichão perambulatória torna a me atiçar. Minha sina não é ficar e sim partir. Preciso ir pra casa comer a Soninha.

Eles cessam a palração, arregalam os olhos doloridos coloridos por lentes em minha direção.

-- Não se preocupem. Partirei fisicamente mas meu espírito prosseguirá fazendo companhia aos dois nesta inglória noite povoada de mortos e fantasmas. Amanhã estarei de volta para as devidas atualizações. Peguem leve nas neuroses, companheiras. Gott, preciso de ar fresco, Hollywood é meu destino.

Af faz que vai chorar em seu passatempo preferido.

Até mais. Soninha sai detrás da porta da cozinha em sua saia esvoaçante e uma florzinha de girassol brotando no rostinho torto, atravessa o salão como se estivesse em seu baile de debutantes e me puxa pela mão.

-- Nunca tinha te visto de saia. Nem em baile de debutantes.

Então Soninha olha para mim e diz:

-- Você devia se matar.

Tento retrucar com meu ar sabe-com-quem-está-falando.

Saímos e Soninha tem cara de missão cumprida. Eu, bebezão de meia idade, cara de quem nunca teve uma missão.

Ah, lembrei de novo: escrevo tentando lograr um laivo de controle sobre minha cabeça.