Enterrem meu pen drive na curva do rio dos Meninos

29 de agosto de 2010. 11:03. O universo inesgotável do domingo até a hora do almoço. Clasp.

Outra das minhas manhãs.

Estou c'um troço entalado aqui dentro faz umas duas semanas. Um dos meus. Fora os inumeráveis, imensos, desentaláveis de outras eras de que já não me lembro mais. Espontaneamente.

Ontem (sábado? não acredito que Daniel perca seus sábados enviando emails a ex-amigos) recebi um email do Daniel, amigo dos tempos da faculdade que não vejo há 30 anos e lá vai pedrada. Eu, jornalismo, ele, cinema. Eu caçoava que ninguém precisa fazer curso de cinema para filmar, o argumento básico popular nas décadas de 70/80 quando ainda havia homens convictos de que eram capazes de fazer seu próprio caminho e os mais incautos como eu não davam bola para futilidades como diploma universitário, mesmerizados que éramos com Sartre tachando sumariamente qualquer coisa de "burguês". Eu provocava só para ver Daniel me devolver o sorriso mais cordial que já se abriu no rosto de alguém, sorriso no meio do rosto de barba castanho-clara rala, sorriso no meio do rosto pacato de quem não veio ao mundo matar ou morrer. Ele poderia retribuir na mesma moeda rindo que ninguém precisa cursar faculdade para redigir uma notícia, mas me poupava. Me poupava judicioso, sem bater no peito, me deixando interiormente envergonhado das minhas frivolidades quando ainda me sentia capaz de me envergonhar. Daniel foi uma das duas ou três pessoas que conheci que não são frívolas. No ponto a que cheguei, vejo que a maior virtude que você pode alcançar é não ser frívolo. Quando eu, ele, o Mario e o Jorge esticávamos a noite num buteco da vila Madalena nos atirando em intermináveis confabulações para derrubar o general Figueiredo, com gana de linchar Glauber por elevar Golbery a gênio da raça, declaração de independência ideológica impensável hoje sob a ditadura boçolulista, Daniel se levantava de repente da mesa alegando que tinha de estudar e dava tchau sem tom de censura e passava de fato as noites estudando e nenhum de nós era capaz de ganhar dele aquelas antológicas discussões em que despejava avalanches de datas e nomes obscuros até capitularmos. Glauberiano, a ditadura não lhe causava fascínio nem temor e eu o invejava e desprezava por isso. Saí da faculdade e acabamos nos afastando. Eu o chamava de Danny-baby e ele dizia que eu não era o único a chamá-lo de Danny-baby em tom de insustentável coquetterie.

Respondi o email fazendo um certo rodeio sobre minhas atitudes daqueles tempos, tentando não trair arrependimento nem soar nostálgico ou humilde nem sugerir que gostaria de tornar a vê-lo. Gostaria, claro. Mais que tudo, ontem, relembrando, sentindo o sabor amargo do meu ex-amor por ele. Nunca mais me apaixonei por um homem. Isso pelo menos consegui. É paixão indigesta que não sobe nem desce, entalando para todo o sempre junto com meus inumeráveis entalamentos.

Acabei de reler meu email e, droga, dei todas as bandeiras que pensava não ter dado. Nunca mais vou escrever nada em minha vida. E vou esquecer o Daniel.

Meu programa de alarme toca. 11:15. Hora de esticar os músculos. Acertei o programa para disparar a cada 15 minutos e me lembrar, senão passo três horas aqui parado tentando ler, tentando escrever, ciscando no portal do Estadão me exasperando com o boçolulismo encastelado no poder tal como me exasperava com os generais, com esses articulistas poderosos ilegíveis batendo mecanicamente na mesma tecla de sua visão assalariada e seus leitores com meio grau de noção do vernáculo alimentando vulcões de postagens indigentes.

Esqueço o alarme e sigo. 11:18. O cheiro de frango assado engravida o ar, como diria aquele cronista político dado a literatices. Vem lá debaixo, do Lacerda. O Lacerda nasceu para destrinchar frango assado. Arregaça as mangas, veste seu avental nascido branco que mudou de raça ao longo de anos de manhãs destrinchadoras, mune-se do garfão-facão e inicia seu show dominical na porta do buteco debruçado sobre a mesinha ao lado da máquina de assar, vulgo tevê de cachorro. Entrementes, dona Jussara cuida do cupim assado. Soninha gerencia a distribuição da manguaça no balcão, mandando e desmandando num molecote nordestino contratado especialmente para a farra do frango.

Aos domingos papai tomava meia malzebir que deixava eu e minha irmã pingar um dedo no guaraná no que para ele tangenciava a insensatez, um risco de devassidão que não valia a pena correr. Ah, se ele soubesse então. Uma época mamãe ia de sangue-de-boi, de que eu e minha irmã tomávamos meio copo com dois dedos de açúcar, minha primeira pista dos meus pendores autoinebriantes. Pós-adolescência virei biriteiro e a mana nunca mais bebeu, meio que enojada da corrupção dos sentidos provocada pelo álcool, até que arredia a qualquer tipo de porre. O que prova que beber ou deixar de beber não faz diferença: ambos demos errado aos olhos do mainstream deslumbrado com a felicidade de existir. Embora só eu ainda curta celebrar a morbidez de ser o que sou.

Farejo o frango me sentindo relativamente acordado. Alguns pensamentos mais lúcidos escapam até a tona, bracejam uns segundos e sucumbem sob o peso das emanações primevas do sono. Estou seco para tomar meu primeiro balla mas vou dissimulando como posso, fingindo que sei me controlar. Até um certo ponto logro curtir a angústia da abstinência. Dependendo do dia, da véspera, das minhas perspectivas imediatas, do meu estado interno refratário aos meus ataques volitivos, gozo mesmo o desespero alucinatório. Há anos o dr. G me diagnosticou distêmico nessa mania que os especialistas têm de rotular (claro, não há rótulo mais cafona que acusar alguém de rotulista), me olhando vaidoso se achando craque em desvendar as maçarocas da cabeça humana abrindo um risinho de quase escárnio ante a minha opção pelo sofrimento. Não é opção, seu burro, eu escarnecia por dentro, para instaneamente receber o troco do meu superego fustigado pelas sacadas interpretativas.

11:30. O despertador bipa. Está uns 27 graus neste dia de inverno. Falar do tempo é o que faltava. Me defendo: pelo menos não estou enganando ninguém. Vá ler os cronistas do Estadão e depois me diga. Antes de ontem não resisti quando o Jabor espinafrou Pessoa para fazer uma de suas gracinhas de cronista que tem de bater ponto e resolvi responder e disse que virou moda fazer de Pessoa saco de pancada. Como já disse, não tolero frívolos. Aquele caroço entalado é porque há dias venho penando tentando a simplicidade não me dando por satisfeito. Escrevo duas linhas e torço o bico achando rebuscado. E, ó santa mãe, a Soninha me dando de zero. Outro dia caçoei que ela me pediu aulas de escrita e vi abobalhado que aquilo que ela escreve é aquilo que eu sempre quis escrever. Leio os exercícios dela procurando a chave até me ver mordendo os lábios. É uma eloquência pueril e fácil. Livre destes meus badulaques intelectualizados. No frykots. Adjetivação coloquial. Ritmo natural. Produto duma cabeça sem bronca. Apesar do pai que a visita na cama no meio das noites desde os dez anos.

A manhã vai morrendo mais rápido do que eu. Sonambulismo a meia escala. Meu período de essência é a madrugada, que raramente vivo. A madrugada me aterroriza. Entre outras coisas. Antigamente acordava às cinco da manhã e saía e caminhava até a padaria, tomava um cafezinho melado e fumava meu primeiro cigarro olhando intrigado, meio extasiado a peãozada engolindo uma cana para pegar no batente rindo à fuzarca ante o barato de viver. Hoje fumo o primeiro sem café. Fumo cada dia mais. E bebo como nunca sonhei poder beber desde aquele dia em que aos 13 entrei naquele bar na esquina do instituto de ensino e pedi um dreher e fiquei esperando Ângela sair e o portuga perguntou minha idade e eu disse 16, ele disse que eu não tinha cara de 16 mas me serviu vários drehers franzindo o cenho à guisa de reprimenda e Ângela aquele dia não apareceu e voltei para casa bêbado e deitei na cama e enquanto meus pensamentos rodopiavam numa mistura do rosto brando e branco emoldurado pelo cabelo liso e loiro de Ângela misturado às paredes e ao teto fiquei prometendo a mim mesmo que nunca ia deixar de beber enquanto beijava o travesseiro delirando ser o angelical rostinho de Ângela e eis-me aqui cumprindo a única promessa que lembro ter feito a mim mesmo e a quem quer que seja numa época em que era magicamente possível acreditar em promessas.

O cheiro de frango assado atinge o auge. Ouço os guinchos dos bebuns celebrando a orgia da vida na porta do buteco. A essência da liberdade. Sinto a boca aguar. Ainda não, me contenho. Preciso escrever e nos últimos tempos não consigo mais escrever bebendo. Um gole, as palavras secam. Preciso escrever? Necessidade de escrever é papo de literato e graças a sei lá quem não sou, não quero nem posso ser literato. Escrevo apenas... Sei lá por quê. Estou me disciplinando para só beber na minha mesa no canto mais escuro do buteco. Preciso dum mínimo de organização. Nos últimos tempos minha cabeça tem me levado para uns cafundós inóspitos que me deixam meio assustado. Estou me descontrolando, minha loucura se desfazendo de qualquer resquício de glamur, o faz-de-conta virando realidade, às vezes não vislumbro o caminho de volta, já cheguei até aqui antes e corri de volta à familiaridade morrendo de medo não imagino de quê.

Ninguém te enche o saco num buteco. Todos sabem que você foi fugido até ali e todos são fugitivos por vocação e o pacto supremo inviolável é nunca especular sobre os motivos do outro e ninguém está preocupado com responsabilidades, compromissos ou opiniões alheias. Cobrar atitude de alguém dentro dum buteco pode resultar em morte.

11:43. Okay, estou a ponto de desistir. Não quero mais escrever. Não tenho mais o que escrever. Se é que tive algum dia. De novo: para que escrevo afinal? Quero ser escritor mas não tenho saco. Não gosto de, não sei fazer. Se faço, fica com essa cara de que não devia ter feito. Sou um mero sonâmbulo e a nada mais almejo senão dormir para sempre sem sonhos nem tiques.

Chega de rastrear as horas. O Lacerda, a Soninha, a dona Jussara, minha mesa no canto escuro ao lado do salão de jogos onde me sento para empolgar um copo e por umas horas reinar sobre os cadáveres fétidos das minhas neuroses me alheando das minhas injunções morais misericordiosamente me esperam e sei que em breve nem esse mísero bálsamo me restará e não me sobra nenhuma outra alternativa.

Adeus, literatura, escritores e palavras. Renuncio pomposo à minha autoimposta sina de ser pensante para abraçar pomposo minha animalidade. Por umas horas serei feliz. Vou em perseguição da inebriação mitigatória. Que minhas próprias palavras se recusam a me conceder. As palavras são minhas verdadeiras inimigas, não me concedem um pingo de alívio, não me permitem a dissimulação, então só me resta sufocá-las sob um aluvião de álcool. Por umas horas estarei livre delas e de mim mesmo?

Me faço essa pergunta três ou oito vezes por dia e sem pestanejar -- não sou homem dado a essas coisas -- saio e bato a porta e tomo o rumo do buteco do Lacerda aproximadamente um quarteirão ao sul daqui, cercado de fossos habitados por grifos nada mitológicos e miragens tatuadas de borboletas de ônibus.

São 87 passos até o buteco do Lacerda. Oitenta e sete passadas normais. Se é que sei o que seja uma passada normal. É difícil preservar a normalidade quando você está dando passadas para fins de medição. Não determinei esses 87 em uma só vez. Foram várias contagens. Umas davam sessenta e pouco, outras noventa e tantos. E o número na volta nunca era o mesmo que o da ida. Devo ter levado uns meses para me certificar dos 87 com razoável segurança. Mas em geral não faz diferença. Começo a contar, me perco no caminho, retomo dum número aleatório, às vezes roubo algumas passadas antes para fazer bater, outras, finjo que esqueci de contar e quando dou por mim estou sentado na minha mesa no canto mais afastado do salão das mesas ao lado do salão das mesas de jogos com meu copo de stein ultragelado entre os dedos e o teatro lá de fora desaba, matando seus personagens sórdidos.

Saio, tranco a porta, arrependimento instantâneo. Preciso, quero voltar para as palavras. Mas as palavras não perdoam e estou condenado a seguir em frente, cumprir minha peripécia e retornar de cabeça baixa para implorar que elas me aceitem de volta sabendo que o castigo será cruel e longo e acima de tudo árido.

O buteco está em estado ideal, meio cheio, meio vazio. O Lacerda zanza entre as mesas. Parece "alquebrado", segurando as ancas com uma das mãos e meio que mancando. Pergunto o que aconteceu, ele diz que machucou as costas levantando uma caixa de cerveja hoje cedo e quer saber se vale a pena ir ao INSS pedir licença remunerada. Digo que o INSS está em greve há cento e quarenta dias e um laudo levaria uns oito meses para sair. Ele resmunga um palavrão contra o governo e ruma para o balcão.

Minha mesa no meu canto é a única vazia. Sento e Soninha vem lá detrás do balcão c'um cinzeiro e um copinho de stein. Sinto gana de agarrá-la e lhe chupar a boca de lábios cafuzos mas o Lacerda nos proibiu demonstrações públicas de afeto. Ela deixa o cinzeiro e o copo na mesa e me roça o ombro com o bico de uma das tetas e quero lhe meter a mão sob a sainha e enfiar o dedo médio entre aqueles grandes lábios de cafuza. Está sem calcinha, dá para notar aqui de fora, me fazendo uma infindável, torturante promessa que sabe não precisar cumprir.

Empunho o copo ultragelado e começo a acordar. Eis o momento. Eis a glória do meu dia. A antecipação do néctar etílico me invadindo a boca, adormecendo a glândula salivar, descendo pelo esôfago, se embrenhando nos interstícios das minhas entranhas para me espantar de mim e me agraciar com a alforria do eu-verdugo. Meu batismo pagão tem me salvado. Quando não tiver mais direito a ele, tudo estará acabado.

Meto a borda do copo entre os lábios e sorvo com cuidado. Todas as palavras que fugiram de mim esta manhã passam em alto-relevo, nítidas, negras sobre fundo branco, reluzindo em fila indiana diante do meu cérebro. Até uns meses atrás corria a pedir um bloco de papel e uma caneta a Soninha para tentar registrar o desfile. Mas as palavras evaporam quando me veem equipado para a lida e só dão o ar da graça quando largo a caneta, afasto o bloco para um canto da mesa e empunho o copo novamente. Assim vamos brincando de esconde-esconde, eu eterno brincalhão contrariado, eu eterno perdedor. Três goles e posso enfim vislumbrar o que queria ter escrito esta manhã e não consegui e nunca vou conseguir.

Estou sentado em agosto. Papai morreu em agosto. Mamãe, setembro. Quando não tenho que fazer fico tentando adivinhar o mês da minha morte. É importante para os que ficam. Papai nasceu em dezembro. Mamãe, setembro. Eu, dezembro. Minha irmã, setembro. Sílvia, fevereiro. Dou graças por não ter nascido no mês do carnaval. Por que não fui embora do Brasil quando podia? O Canadá estava a uns poucos dias de preenchimento da documentação burocrática, fiquei com preguiça. E tenho medo do frio. Duvidava que pudesse sobreviver nas pradarias geladas canadenses. Tendo resistido até hoje ao Brasil, hoje sei que poderia ter sobrevivido até no inferno.

Último gole do stein. Agosto passado jantar com Sílvia num daqueles fancy restaurants que ela curte. Cisca em suas saladas enquanto bebo e quando me ocorre que estou com fome já é tarde e ela está pagando a conta. Digo que podíamos dar uma esticada até a praia assistir o pôr do sol, dormir na areia. Não gosto nem do pôr do sol nem de dormir na areia mas curto descer a serra grogue. Ela tem de acordar cedo. Então peço pelo menos uma passada num bar qualquer para a saideira. Ela concede contrariada. Enquanto bebo ela toma uma salada de frutas com tons de rum. Estamos em casa às onze. Ligo o computador, ela vai para a cama. Entro no youtube e assisto uma luta de vale-tudo. O sangue jorrando das caras dos gladiadores é uma das poucas coisas que me fascinam. Deito, fecho os olhos, retomo meu sono.

Acho que ainda não contei como eu e Sílvia nos conhecemos. Preguiça. Tenho essa preguiça insuperável.

O stein vai pouco a pouco combatendo este choro que ainda está entalado bem no meio do peito. O preço será alto. Todos são. Sempre são.

Sei lá se tem coisa mais gostosa que ficar me embebedando nesta minha mesa neste canto escuro olhando a rua matando a charada inscrita em cada rosto que passa lá na calçada acompanhando seus donos e donas mentalmente passo a passo até seus destinos me imaginando em cada um dos lugares em que jamais sonhei estar sem saber exatamente por que enquanto Fred e Afonso (esqueci de avisar que o Afonso e o Fred chegaram e já estão instalados ao meu lado trocando suas profusas impressões) trocam impressões contidamente histéricas sobre suas transas desta tarde naquele simulacro afetado de troca de gemidos que os bichas tanto curtem.

Comecei a perceber que havia algo errado entre mim e Sílvia aquela noite quando estávamos trepando (ou fazendo amor, como ela me corrigia franzindo a testa e revirando os olhões) e ela olha para a minha cara na sombra do quarto e começa a rir aquele riso de deboche que conheço tão dolorosamente bem.

Nos conhecemos pela internet tal qual metade do mundo se conhece hoje em dia. Tudo bem, pode rir também. Eu também ria até aquela vez em que entrei naquele portal de dating.

Antes preciso deixar registrado aqui e agora que tinha 12 anos quando fui ao baile de debutantes da minha irmã. Camisa de cetim brilhante branca (onde será que foi parar aquela camisa? me sentia um marciano dentro dela), calça preta de veludo cotelê. Ela (irmã), de vestido rosa-paraíso ao lado de papai mal enfiado num terno que não parecia ser dele.

Comecei a entrar nesses portais só para me divertir com a desconcertante e exótica e grotescamente patética fauna a navegar por esses escritórios obscuros online lançando risíveis e pueris truques na ânsia de engazopar algum/a trouxa. Passava horas condoído da solidão humana perplexo com a falta de simancol dos perdidos, descarados e solitários. Como toda tribo, são adeptos do jargão e tive de procurar um dicionário de dating cibernético para conhecer as dezenas de acrônimos que eles usam.

Estou equipado de súbita, surpreendente, irresponsável energia. Como nos tempos velhos. Há algo errado. Fôdasse.

O Lacerda liga a tevê de plasma mil polegadas recém comprada em mil prestações, peço para botar no Raul Gil-il-il-o sujeito mais televisivo do Brasil. Olho para o tagarelante Fred e quero lhe explicar que o mundo está nos estertores e as novas gerações estão perdidas, opto por me resguardar. Esse tipo de mecanismo ativa em algum lugar dentro de mim quando me encharco de stein ultragelado me propiciando essa inusitada, benfazeja blindagem.

Nos primeiros dias ficava zuando com as donas que na maioria são negras ou mulatas, pobres e ignorantes redundante incluir, e feias que sonham em fisgar um otário que opere o milagre de tirá-las do cortiço em que vivem para instalá-las num sobradinho classe-média-baixa na Penha ou no Butantã c'um Gol noventa e cinco na garagem de paredes de bloco sem reboque.

Homens querem comida pr'uma noite, mulheres "buscam" relacionamento permanente, honesto, sério e sólido. Eu achava que toda mulher é séria e sólida até a Sílvia começar a me trair com o Augusto e me contar as safadezas que faziam no motel e que nunca aceitou fazer comigo, na mais cruel vingança ao contrário que me deitou embasbacado para todo o sempre.

Me inscrevi no portal e fiz meu anúncio assim: "Homem na casa dos 30 procura mulher de qualquer idade e qualquer peso, qualquer escolaridade, qualquer QI e MEIGA para sexo ou algo mais. (Note a sacanagem neste detalhe.) Quero ser feliz uma vez na vida. Sou acima de tudo inortodoxo."

Apus o "inortodoxo" em posição estratégica na esperança de afugentar as domésticas que certamente associariam essa minha condição a uma doença e ao mesmo tempo chamasse a atenção de alguma universitária perdida na rede à procura de diversão. Naqueles tempos eu ainda tinha algum preconceito e achava que universitárias eram melhores que empregadas. Estava errado, claro. As humildes são bem mais simples e manipuláveis e você pode comer sem maiores implicações, comer de verdade, com variações no prato principal e na sobremesa, sem restrições de horário nem recomendações calóricas. Pode, vírgula. Podia, quando ainda era capaz duma ereção. E tudo se mostrou melhor assim. Nada é mais trabalhoso e fatigante que a faina sexual. E mais desorientador. E, no fim, nocivo. Eu estava relativamente bem até então. Uma ou outra retirante de vez em quando bastava. Mas como sempre a compulsão do sexo se impôs e concluí que era sexualmente frustrado e precisava de alguém mais ou menos à minha altura e entrei no maldito rendez-vous digital.

Batata. O "inortodoxo" produziu o efeito desejado. Hoje sei que devia ter sido mais malandro. Quem acabou indo para o abatedouro fui eu. Para variar, por causa duma palavra. Até então me achava o batuta do verbo. Nunca tinha escrito nada de importante mas "sabia" que daria no couro quando chegasse a hora ou quando simplesmente me dedicasse com um mínimo de empenho. Tinha tudo aqui dentro. Não tinha noção de que entre minhas teorias internas de mim mesmo e o mundo imediatamente exterior havia uma dimensão inteira de separação. Minha cabeça é e sempre foi regida por esse tipo de fantasia. Quando chegar a hora, quando eu realmente quiser, nada será impossível. Algumas vezes até que deu certo. Sou um sujeito "resourceful", afinal de contas. E nas vezes que deram certo simplesmente joguei as oportunidades pela janela. Mais um dos mecanismos que ativam dentro dentro de mim à minha revelia. Acho que agora lembrei por que escrevo, afinal de contas. Acho que escrevo para tentar entender os raios destes meus malditos mecanismos autômonos. E quando, durante, me lembro do por que escrevo, até que consigo botar o dedo. Mas eis que entra esse outro maldito mecanismo autônomo na parada que me faz escrever a esmo caçando no escuro cego sem faro.

Sílvia responde ao meu anúncio dizendo que passa o tempo livre com a família e amigos e com seus livros, seus preferidos sendo, CNPDS, os russos, os franceses e os alemães, gosta de cozinhar mas não tem muita paciência por isso só cozinha nas manhãs de domingo, encara arte seriamente frequentando MASPs e galerias, tem amigos pintores, designers e arquitetos, é conhecedora de vinhos, na verdade, modéstia à parte, uma sommelier (fiquei tentado a lhe explicar que no mundo da civilização sommelier é aquele garçom que traz a carta de vinhos mas achei melhor não), politicamente alienada, gostou do meu anúncio pela originalidade, dá para perceber que se trata dum cara "cultivado", talvez sofisticado, sofisticação parece ser sua senha no mundo e na vida, poucos sabem cultivar a sofisticação, poucos sabem identificar a necessidade de sofisticação, as injunções do dia a dia deixam a casca grossa, embrutecem, sabe como é, estamos cercados de primitivos por todos os lados e agora eles saltam da tela do computador diretamente no teu colo, e está torcendo para que eu seja de fato, como meu anúncio diz, um sujeito honesto, atencioso e orientado para os outros feito ela, não necessariamente bonito e atraente como ela, para finalizar é pessoa de princípios, alguns deles remanescentes dos tempos áureos em que havia hierarquia, autoridade e disciplina na família e eu ser um quê da moda antiga, eu ser antilulista, antiboçalista, antibabaquarista representaria definitivamente um plus, evidência cabal de estar lidando com alguém de personalidade.

Eu quero trocar fotos, Sílvia, não. Diz que confia em mim, que certamente não sou um obeso de 160 Kg vetado para qualquer tipo de "socialização". Não me dá tempo de ajuntar se do meu lado tudo bem. Uma fotinho, mesmo que de lado. Whatever, torço para que Sílvia seja uma velha albina e manca com tendências autistas e dentaduras. Já me arrependi da brincadeira toda. Se for bonita, ainda por cima, vou me apaixonar no ato e sofrer todo aquele martírio da paixão não correspondida que conheço como a p'alma da mi'alma. God, que é que vou falar com essa mulher? Você já reparou que todo filme hollywoodiano tem uma receita do que falar num primeiro encontro? Cada uma delas abjetamente inverossímel. Vou falar do tempo. Vou falar da economia. Perguntar em qual deputado ela votou na última eleição. Não, vou ficar quietinho, deixar que ela assuma a direção. Deve ser feminista como nos hollywoodianos. Do tipo acasaladora-procriadora-divorciadora. Talvez acabe pagando a conta do restaurante com tamanha sofisticação de mulher moderna, que eu sequer perceba que pagou a conta, deu gorjeta ao manobrista, me deixou na porta da estação do metrô e me esqueceu.

Me dá aquela coceira nos dedos que tantas vezes me botou em enrascadas. Questão de tempo. Cedo ou tarde dou uma pisada homérica. Quero digitar que vou lhe mandar meu erregê. Que é autêntico. Tirei em 71. Dezesseis anos de ferro.

Ergo a mão direita e estalo os dedos. Sô, mais um.

(Será que Sílvia sacou tudo aquela tarde em que voltou do trabalho e eu estava ajudando Soninha a esfregar o piso da sacada respingada de gordura do churrasco do sábado chamando Sô isso, Sô aquilo? Detesto intimidades e nunca chamo ninguém por apelido ou iniciais. Whatever. As paixões são impossíveis de esconder. Mesmo para os que pensam não se apaixonar.)

Soninha traz meu stein ultragelado. Qualquer hora conto como comecei a beber steins ultragelados. There's not much to it. Meus tipos de bebida são as fases da minha vida. Malzibier, vinho com açúcar, rum (sim, o doce, maquiavélico, teletransportante rum da minha pós-adolescência quando papai estava vivo para que eu pudesse odiá-lo sem culpa, quando já não havia saída mas ainda não me sentia encurralado), dreher, rum, cavalinho (a pinga dos meus tempos de navegante solitário, rei das ruas desoladas alheio a todas as caças, fera alimentada das desgraças raças taças), caipirinhas, cerveja, stein e balla. Vou pular o chá. O chá nunca me deu o barato de que gosto. Me carrega para um canto psicodesértico na minha cabeça com que não sei lidar. Qualquer hora também quero falar do meu recanto psicótico, meu jardim, o lugar onde me é possível entender todas as coisas para entender que nenhuma delas deve ter importância.

Irmã, por que tudo não parou naquele teu baile de debutante? Foi quando aprendi que só devia ir a eventos sociais bêbado e já não tinha outra solução. Aquela tarde tomei vinho com coca-cola, assisti você e papai dançando o hino das debutantes e metade de todas as mentiras se cristalizaram na minha mente.

Prezada Sílvia, permita-me apresentar algumas das minhas características. Não sou gênio nem jumento. Das coisas práticas, consigo trocar uma lâmpada. E queimar a lâmpada tão logo a tenha trocado. E acender uma vela. E apagar a vela. E murmurar a música que só toca na minha cabeça. Gole. E de tanto murmurar a música que só toca na minha cabeça você desistirá de cara de me levar a festas, jantares, casamentos e enterros. Gole. E só paro de murmurar esta minha maldita música para abrir o portão para o filho da puta que todo mês vem ler o relógio da luz. Gole. Gole. Mas sou imprevisível ao murmurar minha música. Gole. Gole. Gole. Quando dá na telha, sob gulosos goles de stein, solto um grito. Gole. Gole. Gole. Gole. No meio do salão das mesas do buteco do Lacerda da dona Jussara da Soninha. Gole. Então é a maior festa. Gole. Gole. Todos me olham, sou o esquisitão do pedaço. Gole. Viva o esquisitão. O esquisitão é esquisitão mas no fundo gostamos dele. Eles nunca toparam cum esquisitão de verdade. Com o esquisitão tudo é tão diferente. Gole. Gole. Gole. Esquisitão debuto e desdebuto a bel prazer. Represento todos os papéis que nunca pude. Gole. Gole. Paro. Olha a viagem. Sou uma degenerescência. Até que nasci normal. De lá pra cá, mergulho em queda livre em mim mesmo. Matei. Teatral. Teatralidade indeglutível.

Dentro de 35 min. vou finalmente me dar conta de que estou aqui parado assistindo ao fluxo da noite dando ouvidos a duas bibas desenxabidas letalmente maçantes e peidorreiras arriscando olhares tortos para as três ou seis piranhas ocupando a mesa ao lado trocando fofoquinhas aos silvos malcontidos que, sei, se prestasse atenção, me fariam dormir e então presto.

Deus ou sei lá quem está me usando de cobaia. Ih, bandeira divina.

Aperto os dedos no copo, me maravilho com minhas impressões digitais. São a prova de que existo. De que estive aqui. E testemunhei todos os risos e todas as carrancas e todos os diálogos que me couberam testemunhar. E cometi o crime que me coube cometer.

Sílvia, meu tipo sanguíneo é ó positivo, universal, vermelho, aguado.

De tanto irrigar este meu cérebro bichado.

Quero apanhar o copo e tiro um Free do maço, boto na boca e acendo. Voltei a fumar depois de 18 longos anos. Redebutando. E volto de novo se for preciso. Não há nada mais gostoso que fumar. Adivinha por quê? Não, você não é adivinha. Você é a mulherzinha mais sonsa que já conheci. Não há nada mais gostoso que fumar diante dum stein ultrahipergelado.

Preciso dum stein pra matar meus bichos. Não pergunte por quem os steins se devoram. Eles se devoram por ti.

Na impressão do meu polegar direito tem um calo. Rio extasiado. Ainda? Dos tempos em que tocava violão. Quando queria ser artista. Meu pai, qual o do Huxley (vou citar só desta vez), era semianalfabeto (ao contrário do pai do Huxley) e queria ser poeta. Taí algo que não se aprende nem tem diploma. Até hoje não aprendi a tocar vilão. Não sou bom em coordenação. Nem em nada que exija destreza física.

Lá, põe na conta. Com essa já são mil e duzentas pilas, mede o Lacerda em sua calculadora de bolso. A água de coco é por conta da casa.

Eu e meus recatos. Um dia deixei escapar piranha na frente do meu pai, tomei uma bofetada na boca, meus lábios incharam feito os daquela californiana que ficou com cara de gato esquizofrênico depois de centenas de plásticas. Pra que, pra quem? Escuto longinquamente que as piranhas da mesa vizinha se chamam Suéllen, Larissa e Tainara e não têm nada a ver com a minha infância. Fico ouvindo uns segundos alisando de mansinho o peitoril da minha camisa de cetim cor de pêssego (já sujou, seu porqueira?), vislumbrando enquanto o Lacerda muda de canal e põe no BBB.

Prezada Sílvia, vou te castigar. Te torturar. Te amarrar na minha cama. Amordaçada. Não vendada. Quero ver teus olhões espichando de apreensão. Medo. Ânsia. Gratidão. Coberta apenas com esse véu que você usa, ó mãe, no pescoço. Então vou puxar uma cadeira pertinho da cama, vou ficar te observando. Te ascultando. Te estudando. Talvez diga alguma coisa. Não sei. Não sei o que poderia dizer. Na hora talvez me ocorra algo. Sei que estarei inspirado. Quão inspirado estarei. Minha respiração se paralisa de sonho. Se você for boazinha, tiro a mordaça. Só para ver esses teus dentões de dragona de pés no chão. Mas tem de me prometer: não dirá nada. Nem mesmo o que quero, o que preciso escutar. Você acha que isto é poesia? Se for, você acha que esta é a poesia dum cara apaixonado? Ou só a lavagem que deus botou na minha alma antes de se suicidar? Sou castanho. Barbudo. Entradas ligeiras mas não calvo. Não sei amarrar sapato.

Se eu disser que nem sei amarrar sapato você não vai acreditar. Não sei amarrar sapato. Nunca vi alguém tão inepto quanto eu.

Ei meninota aí passando entre as mesas. Quer uma foto comigo de cigarro na boca? Só pra guardar no fundo da gaveta do sua cômoda e nunca ir lá olhar? Anexo ponho uma declaração de amor descarada pra você não ler. Cum montão de pensamentos inconfessáveis. Cadelinha silvestre roxa pintalgada de amarelo. Então um dia você resolve e pega e bota a foto no porta-retrato da estante cheia de badulaques na sala no lugar de papai. Que lhe parece? Ha-ha-ha, escuto tua risada sarcástica.

Depois desses anos todos hoje cedo me vi no espelho opaco do meu quarto e falei, meu, você vai mofar entre estas paredes rumo até quando, se me permite perguntar?

Petulante duma figa. Tédio reverberando a mil ciclos por segundo. Prestes a romper a barreira do meu coraçãozinho de rapadura e fígado empedrado. Duvido que você possa imaginar. Que digo? Não estou interessado. Vai assistir tevê e me deixa em paz com meus delírios.

Af explica que o Bial fala cinco línguas.

Uau, tô inspirado. Inspiração me dá prejuízo. Nesse estado bebo até desmaiar. Amanhã será um tormento. Não aguento mais beber. Tô com o serviço atrasado. Vários processos esperando. Os clientes retendo meus honorários. Vejo o calote escrito nos teus olhos.

Tainara, Larissa ou Suéllen atrai um dos meus olhos. Fred se põe vigilante, mordendo o lábio superior de ciúme. L, S ou T exala aquela sensualidade elétrica que todo homem, mesmo boyola, capta no ato. Ainda não sonâmbulo procuro aguçar a atenção em meio à névoa etílica. Beições chupáveis, nariz correto, olhões circulares, tudo gostoso e cafona. O problema é o conjunto. Rosto de vácuo, inexpressividade suja de incultura, insubstância meio aterradora. Não parece gente. Ai que falta sinto da minha Sílvia gente.

Ei Suéllen, quer falar dos teus sentimentos? Pode falar, não sei se quero ouvir. Porque você não sabe falar dos teus sentimentos. Porque não quer. Porque não pode. Só sabe inventar lorotas. Perdi a conta de todas as que inventa. Uma mais risível que a outra. Tenha ao menos a decência de soar convincente. Tainara e Larissa merecem um tico de consideração.

Af e Fred estão especialmente tagarelas hoje.

Que boçal, escuto a voz de loro do Af imitando Juvenal, o papagaio que o Lacerda sempre tem ao ombro. Inerme, evito reagir.

Não tolero gente baixa, escuto a voz se dirigindo diretamente a mim vindo de algum delírio online. Fred e Af discutem as chances dos concorrentes. Nasci no mundo errado. Este é das suéllens.

-- Bem, senhores, foi bom enquanto etc. Cansei. Já aturei além da conta a faladeira gay. Outros desafios inquietam meu espírito aventureiro, a comichão perambulatória torna a me atiçar. Minha sina não é ficar e sim partir. Preciso ir pra casa comer a Soninha.

Eles cessam a palração, arregalam os olhos doloridos coloridos por lentes em minha direção.

-- Não se preocupem. Partirei fisicamente mas meu espírito prosseguirá fazendo companhia aos dois nesta inglória noite povoada de mortos e fantasmas. Amanhã estarei de volta para as devidas atualizações. Peguem leve nas neuroses, companheiras. Gott, preciso de ar fresco, Hollywood é meu destino.

Af faz que vai chorar em seu passatempo preferido.

Até mais. Soninha sai detrás da porta da cozinha em sua saia esvoaçante e uma florzinha de girassol brotando no rostinho torto, atravessa o salão como se estivesse em seu baile de debutantes e me puxa pela mão.

-- Nunca tinha te visto de saia. Nem em baile de debutantes.

Então Soninha olha para mim e diz:

-- Você devia se matar.

Tento retrucar com meu ar sabe-com-quem-está-falando.

Saímos e Soninha tem cara de missão cumprida. Eu, bebezão de meia idade, cara de quem nunca teve uma missão.

Ah, lembrei de novo: escrevo tentando lograr um laivo de controle sobre minha cabeça.

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