A garota que trabalha no bar chega mansinha cochichando que carece
uma palavrinha comigo e perguntando se a gente pode dar um passeio. Faço que
sim, ela me puxa pelo braço. Saímos para a noite, ela chama um táxi.
Não ando de táxi, recuso. Só de ônibus. Só de ônibus.
Tudo bem, vamos de busão.
Aonde?
Aonde o senhor quiser ir.
Pode ser o circular quatrocentos e nove?
Ela topa.
Só passa na rua de cima.
Ela me puxa pelo braço e subimos. Paramos no ponto, pergunto se
posso dar o sinal, ela ri que sim.
O quatrocentos e nove é meio demorado, explico quando vejo que ela
está impaciente.
Deve ser aquele, ela fica feliz, apontando.
Arrastamos os pés até a
beirada da calçada e dou o sinal. Ele vem soltando aquele guincho de breque sem
lona até parar com a porta bem na nossa frente.
Montamos.
O motorista é o Geraldo. Geraldo é meu chapa.
Boa noite, Geraldo.
Geraldo responde e me olha estranho me vendo com a menina.
Repreendo ele com o cenho.
A menina me puxa para um banco vazio.
Quando sentamos, pergunto que é e enquanto ela explica vou
desmontando.
Desmontando o quê, você vai querer saber?
Estrelas do céu.
Desta vez vou começar por N.
Éramos felizes nos reunindo em família, coisas simples.
Mas antes vou descrever aquele dia há uns dois anos em que estava
distraído desmontando quando os passageiros começaram a reclamar. Parei de
desmontar e assuntei. Geraldo tinha saído do itinerário.
Levantei e fui ter com ele.
Que é que está havendo, Gê? achego a boca por trás da orelha dele
para não atrapalhar a condução.
Ele não respondeu.
Estranhei. Geraldo está sempre simpático e solícito.
Gê? perguntei, enfiando a mão direita sob a aba da camisa.
Continuou mudo.
Então vi a nuca dele suando frio. Atentei para o rosto. Mais
branco que folha corrida de nenê.
Pedi ajuda a uns passageiros e conseguimos parar o ônibus e tirar
Geraldo do banco do motorista.
Soube depois que ele tinha tido um ataque do coração.
Fui visitar ele nas Clínicas, chorou quando entrei no quarto,
ficou agradecendo sem parar, me deixou envergonhado na frente da mulher e da
filha. Jurou que nunca ia cobrar passagem de mim. A mulher e a filha corroboraram
com a cabeça.
Agradeci declinando. Não gosto de ficar devendo esse tipo de
coisa, não.
Se é para dever, devemos dever coisas de valor genuíno.
Era quase meio-dia quando a enfermeira chegou com a bandeja de
caldo de galinha e gelatina num copo plástico.
Geraldo queria de todo jeito que eu comesse o almoço dele. A
mulher e a filha corroboraram de novo.
Nem pensar, censurei com o cenho. Comigo tem essa, não.
Inventei um compromisso, estimei melhoras, apertei as mãos das
mulheres e saí.
O hall estava cheio de gente esperando o elevador. Não tomo
elevador para descer, só para subir, e só se o andar for muito alto. Se tiver
ascensorista, nem pensar. Odeio ascensorista com cara de quem tem o emprego
mais nobre do mundo.
Entrei pela porta onde estava escrito “Escadas” e fui descendo em
passinhos pausados e sossegados, pensando na vida do Geraldo e sua esposa e sua
filha e contando os degraus. Apostei comigo mesmo que dava mais de quinhentos
até o térreo.
Toda vez que passo pela escadaria dum prédio alto me admiro por
nunca ter trabalhado num lugar desses. As potencialidades são extraordinárias.
Principalmente se na hora estiver com vontade de ir subindo ou vir descendo. Ou
então posso parar entre dois andares. A ideia me faz sorrir sozinho. Gosto de
rir sozinho.
Um hospital, então, parece mais promissor ainda. Preciso renovar
meu mundinho, experimentar novos métodos, desenvolver novas doutrinas. Essa
área não é diferente de qualquer outra. Você tem de arrumar um jeito de não se
acomodar, alimentar seu próprio interesse em renovar suas motivações depois que
a rotina se estabelece. Faz sentido, creia.
Não me isento das minhas responsabilidades. Afinal, sou um
profissional e me preocupo com o desenvolvimento de inovações espirituais e
técnicas em meu metier. E gosto de pensar em termos orgânicos e em como eu e
meus colegas de profissão podemos integrar nossas experiências para aprimorar
nosso desempenho e prestar a nossos clientes serviços com um nível de
excelência. Só falta mesmo é uma certificação sob as normas ISO.
Vamos parar e tomar uma cerva, Viramundo diz assim que me junto a
ele no ponto de ônibus na Rebouças em frente ao hospital.
Buteco nesta área só atravessando a passarela.
Tudo bem.
Zanzamos uns quarteirões até encontrar uma padaria na Consolação.
Fazemos uma parada nas proximidades antes de entrar, assuntando.
Passados uns cinco minutos concluímos que está tudo limpo. Esticamos os braços
para o alto, exalamos, relaxamos.
Aqui começa.
As pernas entram na padaria, pocilga macaquita salvessalve.
Sentamos em duas banquetas que são um desafio às leis da física diante dum
balcão que é uma cusparada na cara do freguês.
O atendente leva vários minutos para girar o pescoço em nossa
direção. Quando o faz finge que não nos vê e prossegue em sua lida de encardir
ainda mais o ambiente em que vive esfregando um pano imundo no chão.
Viramundo assobia e o rapaz por fim decide se dar por achado. Vem
insolente, quase desafiador.
Uma Brama.
Está em falta.
Então Escol.
Servi a última indagorinha.
Triste esta terra, exótico este povo.
Esta aqui também é boazinha.
Ele se abaixa, abre a porta do refrigerador e quando se levanta
tem uma garrafa na mão.
Não conheço essa marca, Viramundo torce o nariz.
É boa igual às outras.
Sei não. Nome estranho. Onde fica essa fábrica?
É a mais vendida hoje em dia.
Viramundo põe-se em guarda. A confiança nunca foi seu forte.
Tem algo de errado.
Você está sendo paranoico, digo. Vê um cafezinho sem açúcar, por
favor.
Já aconselhamos Viramundo a procurar um psiquiatra, pai de santo,
acupuntura. Às vezes temo por sua lucidez e segurança.
Uma das minhas poucas qualidades é a capacidade de aprender com a
história.
Veja este rótulo, ele aponta a garrafa. Nada a ver. Parece marca
de remédio.
Os olhos olham a tevê. Está passando o que parece ser uma
reportagem sobre uma nova fábrica de componentes eletrônicos em Jundiaí. Peço
ao atendente para aumentar o som.
Vai tomar a cerveja ou não? o garoto pergunta.
Rápido feito um felino, Viramundo atira as duas mãos sobre os
braços do outro e o imobiliza.
Calma. Solta o moço. Massageio os ombros dele com a palma da mão.
Vou. E você também.
Não posso beber durante o trampo.
Ou bebe ou morre.
Ele ergue a aba da camisa, exibindo o cabo da peixeira.
O atendente abre a garrafa e bota dois copos entre ambos e serve.
Você primeiro.
O rapaz esvazia o copo na boca.
Meu café sai ou não sai?
Só falta trazer um frasco para exame de urina, brinco.
Viramundo não responde.