Amorokê na vila - Capítulo 013


A garota que trabalha no bar chega mansinha cochichando que carece uma palavrinha comigo e perguntando se a gente pode dar um passeio. Faço que sim, ela me puxa pelo braço. Saímos para a noite, ela chama um táxi.
Não ando de táxi, recuso. Só de ônibus. Só de ônibus.
Tudo bem, vamos de busão.
Aonde?
Aonde o senhor quiser ir.
Pode ser o circular quatrocentos e nove?
Ela topa.
Só passa na rua de cima.
Ela me puxa pelo braço e subimos. Paramos no ponto, pergunto se posso dar o sinal, ela ri que sim.
O quatrocentos e nove é meio demorado, explico quando vejo que ela está impaciente.
Deve ser aquele, ela fica feliz, apontando.
Arrastamos os pés até a beirada da calçada e dou o sinal. Ele vem soltando aquele guincho de breque sem lona até parar com a porta bem na nossa frente.
Montamos.
O motorista é o Geraldo. Geraldo é meu chapa.
Boa noite, Geraldo.
Geraldo responde e me olha estranho me vendo com a menina.
Repreendo ele com o cenho.
A menina me puxa para um banco vazio.
Quando sentamos, pergunto que é e enquanto ela explica vou desmontando.
Desmontando o quê, você vai querer saber?
Estrelas do céu.
Desta vez vou começar por N.
Éramos felizes nos reunindo em família, coisas simples.
Mas antes vou descrever aquele dia há uns dois anos em que estava distraído desmontando quando os passageiros começaram a reclamar. Parei de desmontar e assuntei. Geraldo tinha saído do itinerário.
Levantei e fui ter com ele.
Que é que está havendo, Gê? achego a boca por trás da orelha dele para não atrapalhar a condução.
Ele não respondeu.
Estranhei. Geraldo está sempre simpático e solícito.
Gê? perguntei, enfiando a mão direita sob a aba da camisa.
Continuou mudo.
Então vi a nuca dele suando frio. Atentei para o rosto. Mais branco que folha corrida de nenê.
Pedi ajuda a uns passageiros e conseguimos parar o ônibus e tirar Geraldo do banco do motorista.
Soube depois que ele tinha tido um ataque do coração.
Fui visitar ele nas Clínicas, chorou quando entrei no quarto, ficou agradecendo sem parar, me deixou envergonhado na frente da mulher e da filha. Jurou que nunca ia cobrar passagem de mim. A mulher e a filha corroboraram com a cabeça.
Agradeci declinando. Não gosto de ficar devendo esse tipo de coisa, não.
Se é para dever, devemos dever coisas de valor genuíno.
Era quase meio-dia quando a enfermeira chegou com a bandeja de caldo de galinha e gelatina num copo plástico.
Geraldo queria de todo jeito que eu comesse o almoço dele. A mulher e a filha corroboraram de novo.
Nem pensar, censurei com o cenho. Comigo tem essa, não.
Inventei um compromisso, estimei melhoras, apertei as mãos das mulheres e saí.
O hall estava cheio de gente esperando o elevador. Não tomo elevador para descer, só para subir, e só se o andar for muito alto. Se tiver ascensorista, nem pensar. Odeio ascensorista com cara de quem tem o emprego mais nobre do mundo.
Entrei pela porta onde estava escrito “Escadas” e fui descendo em passinhos pausados e sossegados, pensando na vida do Geraldo e sua esposa e sua filha e contando os degraus. Apostei comigo mesmo que dava mais de quinhentos até o térreo.
Toda vez que passo pela escadaria dum prédio alto me admiro por nunca ter trabalhado num lugar desses. As potencialidades são extraordinárias. Principalmente se na hora estiver com vontade de ir subindo ou vir descendo. Ou então posso parar entre dois andares. A ideia me faz sorrir sozinho. Gosto de rir sozinho.
Um hospital, então, parece mais promissor ainda. Preciso renovar meu mundinho, experimentar novos métodos, desenvolver novas doutrinas. Essa área não é diferente de qualquer outra. Você tem de arrumar um jeito de não se acomodar, alimentar seu próprio interesse em renovar suas motivações depois que a rotina se estabelece. Faz sentido, creia.
Não me isento das minhas responsabilidades. Afinal, sou um profissional e me preocupo com o desenvolvimento de inovações espirituais e técnicas em meu metier. E gosto de pensar em termos orgânicos e em como eu e meus colegas de profissão podemos integrar nossas experiências para aprimorar nosso desempenho e prestar a nossos clientes serviços com um nível de excelência. Só falta mesmo é uma certificação sob as normas ISO.
Vamos parar e tomar uma cerva, Viramundo diz assim que me junto a ele no ponto de ônibus na Rebouças em frente ao hospital.
Buteco nesta área só atravessando a passarela.
Tudo bem.
Zanzamos uns quarteirões até encontrar uma padaria na Consolação.
Fazemos uma parada nas proximidades antes de entrar, assuntando. Passados uns cinco minutos concluímos que está tudo limpo. Esticamos os braços para o alto, exalamos, relaxamos.
Aqui começa.
As pernas entram na padaria, pocilga macaquita salvessalve. Sentamos em duas banquetas que são um desafio às leis da física diante dum balcão que é uma cusparada na cara do freguês.
O atendente leva vários minutos para girar o pescoço em nossa direção. Quando o faz finge que não nos vê e prossegue em sua lida de encardir ainda mais o ambiente em que vive esfregando um pano imundo no chão.
Viramundo assobia e o rapaz por fim decide se dar por achado. Vem insolente, quase desafiador.
Uma Brama.
Está em falta.
Então Escol.
Servi a última indagorinha.
Triste esta terra, exótico este povo.
Esta aqui também é boazinha.
Ele se abaixa, abre a porta do refrigerador e quando se levanta tem uma garrafa na mão.
Não conheço essa marca, Viramundo torce o nariz.
É boa igual às outras.
Sei não. Nome estranho. Onde fica essa fábrica?
É a mais vendida hoje em dia.
Viramundo põe-se em guarda. A confiança nunca foi seu forte.
Tem algo de errado.
Você está sendo paranoico, digo. Vê um cafezinho sem açúcar, por favor.
Já aconselhamos Viramundo a procurar um psiquiatra, pai de santo, acupuntura. Às vezes temo por sua lucidez e segurança.
Uma das minhas poucas qualidades é a capacidade de aprender com a história.
Veja este rótulo, ele aponta a garrafa. Nada a ver. Parece marca de remédio.
Os olhos olham a tevê. Está passando o que parece ser uma reportagem sobre uma nova fábrica de componentes eletrônicos em Jundiaí. Peço ao atendente para aumentar o som.
Vai tomar a cerveja ou não? o garoto pergunta.
Rápido feito um felino, Viramundo atira as duas mãos sobre os braços do outro e o imobiliza.
Calma. Solta o moço. Massageio os ombros dele com a palma da mão.
Vou. E você também.
Não posso beber durante o trampo.
Ou bebe ou morre.
Ele ergue a aba da camisa, exibindo o cabo da peixeira.
O atendente abre a garrafa e bota dois copos entre ambos e serve.
Você primeiro.
O rapaz esvazia o copo na boca.
Meu café sai ou não sai?
Só falta trazer um frasco para exame de urina, brinco.
Viramundo não responde.


Amorokê na vila - Capítulo 012

Momento presente, só com filtro.

lavaragai aagairalv vralaigaa aaaagrivl aiavagalr viaaragal alvaargai gavaiaalr iaragaval aarlagiav lvrgaaaia ragvialaa vaaaarlgi aailgvaar
Sorriso vertical.
Puxo o braço para coçar o nariz, agulhada no punho.
Nada. A.Ver. Com. Os. Abomináveis. Smiles.
Aperto no bíceps do braço direito. Aí não, please.
Me acariciam o pinto e apalpam.
Hummmmm. Zumbe uma voz.
Tralha tilintando.
Abro os olhos que não abrem.
Acorda. Comanda a voz.
Vou coçar o nariz, nova agulhada.
Fica quietinho.
A memória secou. Um alívio.
Maldito olfato, abre um buraco negro no meu cérebro, suga suor, éter, ofego, esparadrapo, impaciência, algodão, truculência.
O garrote no bíceps desaparece.
Abro os olhos manquitolas, minha garganta geme.
Uma carranca negra e balofa no meu campo de visão.
Se não parar de se mexer, vou te amarrar.
A memória vai emergindo num álbum de milhões de fotos duma foto, toda cada uma dum ângulo mortalmente entediante dum lixão.
A enfermeira negra abundante de tetas mastodônticas sai batendo os tamancos, não sem antes dar uma última apalpada no meu pinto.
O álbum se fecha em baques.
Gemidos.
Minha orelha está interditada por uma botinada marrom no meio do viaduto que me conecta a algum dia no jardim-da-infância.
Esterço um olho, uma fileira de leitos de pronto-socorro, moribunda algaravia.
Outra negra, jeitão de supervisora, cutuca a agulha no meu punho e vai.
Graças, o boquete ainda não foi desta vez.
A porta vaivém se abre, um sujeito com pinta de segurança entra, no crachá pregado na aba do bolso está escrito “administração”.
Fecho os olhos que não fecham, abro, o segurança está ao meu lado.
Mandaram te entregar isto.
Joga um objeto em cima da minha barriga e vai.
Tento pegar o objeto, agulhada no punho.
Lembro de usar o outro braço.
Uma caixa de bombons.
Um cartãozinho pendurado num durex, letrinha de marmanjo iletrado de Soninha.
Sara logo. Te amo.
Tomara que sejam de licor de rum.
São.
O sujeito no leito ao meu lado dispara lamentos agoniados.
A língua mais simples que existe.
Tem um sujeito todo de branco parado do outro lado da cama.
Abre a torneirinha do meu soro, espeta meu outro braço, anota numa prancheta e vai.
Sou uma abreviatura de gente. Inválido para armazenagem. Inapto para classificação.
Um calendário na parede dos fundos atrai meu olhar.
Quarta-feira.
A negra tetudo-ventruda passa, para, troca minha bolsa de soro, aperta a agulha no meu punho, cola uma etiqueta na minha prancheta, belisca meu pinto e vai.
Já tá na hora do recreio?
Deve ser o único lugar público do mundo sem uma tevê.
Durmo intermitentemente.
O sujeito todo de branco quer saber se sou alérgico a algum medicamento.
Digo que nem imagino e não tenho cor preferida.
Apalpo a caixa de bombons na minha barriga, alguém pelo menos sabe onde estou, não serei enterrado como indigente.
A porta vaivém se abre, entram vários sujeitos com diversas macas, os gemidos se amplificam, um motor operado a sangue entra em funcionamento.
Beeps disparam.
O buteco do Lacerda é mais organizado e tranquilo.
Semipalavras afloram à consciência formando o poema mais papudo, meigo, ameaçador, escorrido, patético, vendedor, epidêmico, litorâneo que já li.
Tá na hora do parêntese?
Meu coração acorda, o antigo relógio que na parede da nossa casa badala é de corda, padre Cirilo que era taradão por mamãe discorda com seu sorrisinho cínico, o relógio recorda, o padre levanta a batina.
Será que tem câmaras escondidas por aqui?


Amorokê na vila - Capítulo 011

O homem é um animal em eterno cio; a mulher só entra no cio quando ama 
Antonio Fraga

Estou ávido por contar tudo sobre mim e os que conheço, queria acabar logo com essa ansiedade torturante, mas hoje me deu uma preguiça braba logo cedo, digo, não tão cedo, acordei quase meio-dia, por mim ficaria o resto da vida na cama, mas tenho de trabalhar, não estou com a vida feita mas tenho onde cair morto, não lembro se já disse, sou advogado, não dá pra acreditar, né? pode não parecer mas gosto do que faço, desde menino já vi que tinha vocação pra causídico e esta minha facilidade com as palavras ajuda pacas, leio uma vez e pronto, posso decorar um compêndio de direito na primeira, tenho o código civil na ponta da língua, nem sei ao certo por que foi me dar esse ímpeto desembuchante agora, não, não é compulsão confessional, talvez só esteja pressentindo que não terei tempo, sou normal, também quero deixar algum vestígio da minha passagem por aqui, custei mas aprendi que não posso fugir desses sentimentos básicos, até pouco tempo me soava tão cafona, de repente começou a fazer sentido e vi que grande parte do que sofri foi à toa, podia ter evitado, mas não é mecânica mental que funcione comigo, nunca tive sensibilidade para o padecimento, me comprazia atravessar a dor, às vezes só pra provar a mim mesmo que era capaz, tinha esse horário marcado com o Jorge, meu único cliente, no fórum, de repente essa minha preguiça me invadiu feito a blitz krieg de Adolf pra cima da Polônia, apalpei o outro lado da cama para chamar Soninha, vazio, ela acorda cedo e puxa o carro com receio do pai, grudei os olhos no teto e pensei, é agora que só saio deste quarto em forma de cadáver, o Jorge vai ficar uma arara, não posso perder meu único cliente, a conta no Lacerda tá cada mês mais alta, tenho de fazer um esforço e me mandar pro buteco, não quero esticar as canelas sozinho neste túmulo, então cá estou eu nesta minha mesa no canto mais escuro do salão da frente, dormitando sob a algaravia dos jogaradores de sinuca no outro salão, ficar sóbrio é um desafio que vai se tornando mais e mais penoso a cada dia, alço as sobrancelhas na direção de Soninha atrás do balcão, ela apanha a garrafa e vem apressada e enche meu copo e a seguro pelo braço impedindo que se afaste e engulo num só trago e peço outro e outro e outro e outro e só a deixo ir quando calculo que já entornei o bastante para dinamitar a sobriedade e a algaravia dos sinuqueiros deixar de dominar o resto dos ruídos e as paredes pararem de bailar sob a batuta da minha labirintite e o stein lavar a decepção azeda permanente que me queima a base da língua e esta minha ânsia de falar de mim e do meu mundo e da minha vida finalmente descer pelo ralo entupido dentro da minha cabeça e meus pensamentos assumirem apenas formas dos objetos da minha adoração como garrafas e copos e maços de cigarro e cigarros e isqueiros e bucetas e tetas e não correr mais riscos de criar metáforas idiotas, pois é nesta hora e só nesta hora que entro neste meu estado em que passo a me dar respeito, entornando para algum lugar incógnito o balde cheio de lixo dentro de mim de que não consigo me livrar até um ponto em que posso enfim reconhecer, conscientemente, quero isso, quero aquilo, não vou mais lutar, minha vocação é o cabotinismo, vomitar poesia, falar qual matraca de língua enrolada, lembrar que ainda tenho livros e músicas e autores e compositores favoritos, que antigamente eu... não, não sou neurótico além da conta, nem sou uma anta, sou um leão, um tigre, pra que ficar me explicando assim? se precisa explicar é porque não tem mais jeito, Sô passa atrás de mim e cochicha que quer ir ao shopping depois que fechar, vou, claro, sou capaz de tudo, invencível, e deitarei à sombra duma palmeira que já não há que ela toca em meu benefício, que cazzo, detesto Chico, detesto o esquerdóide infantilizado do Chico, cara descabido, não puxou nada do pai, patife idealista duma figa, são esses cagões mitificadores, simpatizantes do jardim da infância do socialismo, jegues que puxam o carrossel ao contrário do caminho natural da vida os culpados pelas mentiras que perpetuam a ignorância, patife é eco de algum flaubert que não leio faz tanto tempo, preciso me desapaixonar, estou me vendo no antigo escritório de meu pai, ele está tentando me ensinar a atender telefone, me passa uma descompostura atrás da outra, até hoje odeio telefone, falar no telefone, não tenho telefone, preciso deixar de ser tonto, pronto, Sô minha rainha, vem, vamos, vou te comprar umas coisinhas, já te disse, pega um guaraná e vem e senta aí comigo, como fui me engraçar cuma mulherzinha tão estúpida como você? claro, faz parte dos meus pensamentos na medida que não atrapalhe minha vida, meu dia-a-dia, perdão pelo clichê, vai, vai enquanto passo a noite te olhando de mesa em mesa distribuindo cerveja, recolhendo garrafas, esfregando pano com os bebuns te passando a mão na bunda ao que você responde com esse teu riso assanhado e sensual de fêmea sempre pronta para o embate sexual, não vai ser em vão que fiz tantos planos de me enganar, me deixa pensar, preciso de papel e uma caneta, acabei de ter uma ideia genial, não, afasta de mim esse dedo acusador, chega de descompostura, não, não preciso ser mais organizado nem pensar nas consequências nem prestar atenção, tenho de registrar essas três linhazinhas açodadas de alguma forma, vou no banheiro já volto... pronto, nunca estive tão lúcido, não precisa dar se não quiser, não, é uma merda, não, você não é, não, ele que fez tua cabeça, ainda mato esse estrume, te juro, eu mesmo, não, contrato alguém, claro que não tenho coragem, te garanto, ele tá com os dias contados, vem, me dá o bálsamo do teu beijo, epa, preciso do teu carinho, preciso da tua buceta, preciso da tua boca, preciso da tua candura, vai sumir nada, se sumir amanhã seco três, quatro garrafas, o tanto suficiente pra acabar com tudo, e aí? sei, sou dado ao melodramático, mas não é piada, como assim, já deu? inda nem comecei, tem esse sujeito mal-encarado que toda noite joga sinuca aí, estou quase convicto de que ele encara, tudo é questão de preço, porra, sou um cara digno, essa é a grande diferença, você saberia se tivesse um pai digno, o meu era, embora pobretaço, sou um desastre lidando com coisas e pessoas reais, me sinto mais no controle com álcool, né? não é por mal, juro que não acreditei, também não sou poeta, daria pra botar um rachmaninov aí no som? não precisa dizer mais nada, meu amorzinho, eu entendo, por isso quero te proteger, vou mandando bala na retórica, não vou te deixar largada no meio do deserto que ocupa minha cabeça e se estende pra todos os lados até meus horizontes, não, não me xinga assim, sou o cara mais incapaz de conter os sentimentos que conheço, olha, olha bem de leve, é esse aí saindo pela porta, tem pinta ou não tem? tá namorando ele também? melhor ainda, faremos uma dupla nefasta, não, não me deixe sozinho nesta câmara de gás entuchada de fumo de torresmo, lingüiça e bisteca de porco ao som duma dupla sertaneja, não, nada contra sertanejos, deixa teu pai trabalhar um pouco, ele te explora, só mais dois minutinhos, conversa com o sujeito, marca um encontro comigo, não, que isso, e se não for? não posso correr esse risco, não sei cultivar relacionamentos, okay, se a única alternativa é o Chico, então bota o Chico, é, acho que retrato é a melhor dele, não pode forçar, quem tô pensando que sou? que pergunta, vem, dá um beijinho, escondido, fôdasse, porra, se chiar acabo com ele agora mesmo, releva, volta logo, barafunda me percolando a superfície nevrálgica da mente, me apaixonar por uma menina, que frívolo sou, que nome, devo me portar recatadamente e usar minhas palavras com parcimônia, o Lacerda liga a tevê, posso botar chumbinho no rabo-de-galo dele, vou dando o dia por liquidado, não, preciso ter calma, cabeça fria, assistir todo dia o Datena pra ver como os caras que tramam crimes perfeitos quebram a cara, Sô volta correndo, me dá um beijinho de raspão e se dirige apressada para o salão da sinuca, será que já vai falar? quem sabe se preservar não se expõe, nunca soube me preservar, sou um tagarela de merda, tô fudido, canto mais que o sabiá-laranjeira que mora no pé de oliveira no fundo do meu quintal, pô, até que o Chico é bom, mas eu sou mais eu, até me deu vontade de ouvir atrás da porta com a Elis, juro pela milésima vez que nunca mais, vou ficar na minha, me limitar a escrachar o que execro, bêbado feito um irlandês do mato, Sô sai ao lado do tipo mal-encarado e me olha hostil, vai entender, puta que pariu, me prometo me comportar amanhã, que fartura de imagens poéticas, sei também que aqui sozinho vou ficar tanto pior, ela tá certa, só uma louca confiaria em mim, minha rainha, está agora lá fora na calçada abrindo largamente um braço para um táxi, fadiga sentimental, sabiá, desses que os poetas querem imitar quando têm medo de ser entendidos e desmacarados por suas severas leitorinhas que só engolem declarações amorosas dignas do Nobel, ainda sinto na pele os efeitos da sua visceralidade, não vou me conter, não passo duma quimera etílica, que bosta, que recaída, quando escrevo pra mim gosto de um tico de escatologia, sou um cara legal altamente apaixonado por uma fadinha nordestina que conheci sob os auspícios da tragédia e seremos felizes enquanto minha queda por desastres permitir e o álcool encharcar todo o éter até que meu sangue vire biotônico fontoura e se esvaia na escuridão entre as galáxias e se una ao vácuo do firmamento e se aglutine ao Halley ou e a outros cometas que me leve eternamente universo afora, tô pensando em mudar pro Pantanal, o Lacerda sai detrás da porta e seu olhar é de adeus, sou um pêndulo maluco balançando multipolar entre extremos, imbecil, como é que vou inventar uma desculpa esfarrapada assim de supetão? meu raciocínio acabou, sei lá onde está tua filha! mata-me de rir, preciso deixar de ser meu único público, chega de explicação, mein Gott, malhando o fígado 18 horas por dia de domingo a domingo e tudo que me ocorre é que cão que ladra é balela, me esqueçam, Sílvia, sei, tava demorando, queria te dizer que te amo mas quando digo que te amo soa tão insensato, você sempre me lembrando de qual é o meu lugar, a abstração me dá uma sensação horrível de vazio no “coração”, me diz, tem de fazer de conta que não tá nem pensando no assunto, se prepara, essas panorâmicas urbanas me dão uma puta angústia, né? me segurei todos esses dias, presta atenção, obviamente não funciona, não, sim, você deplora minha baba canina, me perdoa a autoimolação afetada, se não quiser mais ficar comigo, pelo menos me dê um sinal de que poderemos nos ver esporadicamente, morro se te perder pra sempre, você tinha razão, não pode viver cum homem que desmaia de bêbado, quando reli de novo tua nota e tua nota era de adeus, as miríades de promessas que fiz e que nunca se cumpriram, só queria dar uma ideia mais ou menos precisa de como sou, veja lá o que fez pra ela, sabe qual foi a última vez que escutei essa? essa joana francesa é a melhor, delirando com meus braços, mas depois que tiver ido não chore, não precisa responder, deixa eu mudar de assunto, bato o pé quando não me dão a atenção que acho que mereço, não, tô apenas procurando me exibir, hoje em dia homem decente é relíquia, vou me comportar, pelo menos consegui manter os olhos abertos sob meus lapsos instintivo-sentimentais, tenho gana de chorar quando olho o céu, sei, as flores que nunca te dei no dia dos namorados, pra mim era só questão de livre arbítrio, você não é a dona do mundo nem a mestre de cerimônias da minha alma de lata enferrujada, não esperava essas mancadas dum cara como eu, pois é, esta minha insensibilidade de poeta, passo dos limites a cada frase que digo, demônia, me leva na tua garupa, prometo ficar na minha, de repente senta diante de mim, na minha mesa, um desconhecido com cara de cão, avançando mais e mais o focinho em direção ao meu rosto.


iwjj012 passa logo?

Me arrependo
das mulheres que não amei
das mulheres que não beijei
das mulheres que não traí

Me arrependo
de cada momento
em que, por experimento,
permiti que minha mente em desnorteio se entregasse ao desespero atrás da música impossível que meus ouvidos exigiam ouvir

Me arrependo, todos os instantes,
De todos os instantes em que fugi e em que fiquei
Em que nem notei, em que dormi
Dos sonhos que não tive, dos sonhos que esqueci

Me arrependo da última dança
E, naturalmente, da primeira

Me arrependo do olhar curioso daquela garota do prédio da rua Goitacazes
Do seu perfume, da invasão inebriante em minhas narinas quando a puxei para dançar
Me arrependo, ó Deus, da sua pele de seda a roçar os pelos do meu rosto púbere

Me arrependo dos que me leem de nariz torcido me achando repetitivo e previsível
E que só fazem me arrepender cada vez mais dos meus arrependimentos

Me arrependo do que fiz, do que falei
E daquela distante tarde em que nasci

Da vida que vivi, da vida que evitei
Do pouco que fui capaz de aprender essas longas décadas
Da chuva que ameaça cair na tarde de amanhã

iwjj012 no duro

Agora me convenci
A dor existe
O padecimento intolerável existe
A degradação e a degenerescência existem
A morte existe

Retiro tudo que sonhei
Um dia

Uma noite

Amorokê na vila - Capítulo 010

The sort of day that makes one glad to be dead.

Quanto a Soninha, é daqueles entes que nem cheiram nem fedem.
Estou sendo frívolo de novo.
Não é bem verdade. Cheira, e gostoso. Um cheiro calmante de carne fresca. Fez só o primário e seu odor é suficiente para dar conta das necessidades da expressão. Miraculoso aromazinho nesta minha jornada de ecos surdos e delírios mancos. Uma mistura fina de suor secretado sem esforço, denotando cabecinha oca, nervos firmes e glândulas saudáveis. Para ela duas dúzias de palavras não polissêmicas e sem hífen dão para o gasto. Não sou um sujeito erudito, sofisticado ou complexo. Me limito aos instintos e às emoções básicas: comer, cagar, dormir, rir e chorar, não importa a ordem. Ordem não significa nada. A ordem é inimiga da harmonia. O que os doutos chamam pedantes de potencialidades da experiência humana são apenas variações em torno dessas atividades toscas. Sonhar, quase não sonho mais, e se sonho é em inglês, acordado ou dormindo, e quando sonho não muda coisa alguma — meu autodesconhecimento prossegue impávido como sempre foi e como sempre será e como quero que seja. Outros não conheço nem quero conhecer. Algumas, queria apenas comer, se pudesse. Para uns, não almejo senão cagar. Nas duas ou três pessoas de quem me aproximei um pouco desde que nasci, não achei nada de interessante que quisesse investigar a fundo. Funduras alheias me dão enjoo. Entro enquanto dá pé. Só levo papo com gente rasa. O que os outros dizem ou deixam de dizer, pensam ou deixam de pensar, sentir e querer tem tanta importância para mim quanto um filme de Goddard ou a pseudoliteratura inflada de Humberto Eco. Tudo se resume ao forte que esmaga o fraco. Os que tentam ser grandes mas não podem acabam diletantes apodrecidos. É o Princípio da Excelência que vêm me enfiando pelo rabo desde o primeiro minuto em que passei a existir. Para quem é forte, legal. Para os fracos feito eu, apodrecimento e descarte sumário. Eis a medonha dualidade de que não posso escapar. Não fui agraciado geneticamente com monstruosa capacidade analítica. A única obscuridade em que me animo a refletir é a da fossa negra no fundo do meu quintal e do meu espírito. Não nasci com o dom de sacar a natureza humana e expressá-la em poesia, nem possuo a habilidade de desembaralhar os inumeráveis fantasmas que me assombram, não chego ao tornozelo dos grandes, não passo dum insistente aterrorizado por ataques mentais distorcidos que muito raramente se transubstanciam em poesia, sim, venderia a alma para ganhar na loteria dos excelsos, talvez um dia corte os pulsos como prenuncio ser minha sina e meu dever de fraco sem outra utilidade senão lamber o saco dos eleitos.
Apesar desta minha olímpica indiferença aos outros, consigo perceber que Soninha não aceita bem a distância que faço questão de manter de todos e de tudo que todos prezam e minha autodevoção à minha própria alienação. Ignorante qual uma bezerra a se apascentar da ração que toma por ambrosia, torce o narizinho para o que chama de minha empáfia. Típico dos que, por um motivo qualquer, por um período na vida, estão à minha volta. Sei que aparento arrogância e desprezo pelos outros. Não, lhe expliquei diversas vezes. É apenas abulia. Ela parece entender na hora, depois acaba esquecendo. É incapaz de reter palavras difíceis. Espero não ter de explicar mais cem vezes. Vejo nos seus olhos não abúlicos que ela não só não compreende como também não tá nem aí. Sabe quando alguém da família desenvolve câncer no pâncreas e você até sente algo de compaixão, lamenta franzindo o cenho para que não haja dúvidas da tua solidariedade, mas se deixa perturbar por não fazer ideia do padecimento alheio, por mais afeto que se esforce por demonstrar pelo desgraçado prestes a esticar as botas? A cruz do abúlico é insuportavelmente pesada e grotesca como a do deprimido. Se fosse escritor, escreveria Darkness Visible.
Tenho vontade de conhecê-la melhor. Ir além da pele jambo, da bunda apolínea, das pernas equinas e da ignorância antropofágica. Na cama, ela devastaria minhas pretensões transcendentalistas, me conduziria a um estado animalesco que sozinho jamais descobriria ter em mim, pois que me ensinaram que o único estado mental aceitável é a dum eunuco adorador de deus, e então, se não fosse eunuco, ia querer é que se fodesse e que ela me fodesse com sua vagina de virago, e, se não fosse eunuco, ela me puxaria para cima do corpinho meigo e me daria uma chave com pernas poderosas e então travaria minha rola dentro dos grandes lábios mais fortes e resilientes e articulados que já teria visto e enfiaria uma língua elástica e serpeante na minha boca e meteria o dedo médio no meu cu até o meio enquanto com os dedos da outra mão me apalparia o períneo me estimulando a próstata e me ninaria como se fosse minha babá primeva até meu orgasmo explodir num gozo doloroso de intenso e ao mesmo tempo ecumênico e redentor e, se não fosse eunuco, podia passar meses sobre o corpinho macio dela, sem me mexer um músculo, explorando extático e exanimado as sendas circundantes do inconsciente. Se ela quisesse virtualmente me devorar às dentadas e se não fosse eunuco, não me oporia. Então temeria que ela fosse canibal e que acabaria engolido cedo ou tarde. (Rio imaginando meus 120 quilos entalados em seu esôfago de jibóia esguia que acabou de deglutir uma capivara.) Como já vimos, ia querer é que se fodesse. Estou farto desta vidinha de eunuco racionalizador de merda. Preciso saber como devo proceder para sair por aí mugindo e abanando o rabo e babando e fornicando desvairado e inclemente feito um roedor provido duma alma de roedor.
Não a conheço, não quero conhecer, não me conheço. Autoconhecimento é picaretagem inventada pelas Grandes Corporações que Me Engambelam para obter alguma vantagem inconfessa. Persigo apenas um objetivo inatingível: gozo infinito e permanente. Tudo que não faça parte desse propósito pode ser deixado no escaninho “Práticas Diversionistas” na minha mente gangrenada de tanto almejar à luz. Lembrar, tampouco. Quando lembro, quero é esquecer. Se impossível, então morrer. O fio da meada pode ser curto quando o sujeito tem boa-fé. Religião, a mais nociva das engambelações, não tenho. Crença, idem. Superstição, neca. Sou um primário, no mau sentido. Essas palavras incomuns que só se encontram no Houaiss nascem de situações igualmente incomuns. Não tenho por que usar palavras especiais. Assim como jamais utilizo a trigonometria ou a química. Você por acaso sabe para que raios servem hidrocarbonetos policíclicos aromáticos? Eu também não. Você sabe quem é Antonio Cândido e por que cargas d'água alguém teria a pachorra de se referir a ele como founding father da doxa uspiana? Para sorte sua, não.
Mesmo que existissem palavras para cada cor de pele, ninguém saberia como usá-las. A variedade de tons e texturas dos rostos com que cruzamos dia a dia é assoberbante. Sem falar do rosto em si. Nada é mais indefinível em expressividade. Nesses cinco mil anos de civilização dormimos e acordamos encafifados, apaixonados, agoniados com semblantes. O leigo em sensibilidade, obcecado pela noção de que as respostas estão na metafísica das estrelas, passa batido. Mas sabe direitinho o que interessa: rostos. Eis a diferença. É onde mais gastamos nossa escassa energia. Caras podem ser misteriosas. Fora caras, não há mistérios. Nós é que nos amarramos em ver sombras onde há simplesmente falta de luz. Topamos qualquer coisa para escapar do tédio. Imagine nossa vidinha sem a ideia da imortalidade (que no fundo nunca negamos nem admitimos honestamente para nós mesmos, tirando espíritas, cabalistas, místicos e religiosos que empobrecem nossa amarga epopeia a uma reles passagem, faquires que se dedicam ao autoflagelo por medida preventiva contra o padecimento da carne e ascetas que renunciam desde cedo aos prazeres embriagantes porque viver dá trabalho).
Fui me dar conta do que é cor jambo quando a conheci. Me dei conta de várias outras coisas a que nunca prestara atenção. Hoje ainda não presto à maior parte do que existe neste mundão infindável. O mundo tem coisas demais. A maioria, desnecessárias. Hoje à tarde vou começar um inventário. Não. Seria inútil. Como tudo que faço. Como tudo que todos fazemos. E o mundo tem gente demais. Isso até você e essa sua índole de bater perna pelo chóping cuma sacolinha plástica pendurada na mão ao cair do crepúsculo é capaz de entender. Ela não é mulher de faquir, não sei se faquir se casa, mas recende a precaução. E prudência, naturalmente. Na época em que lia, na época em que podia ler Huxley, tudo era mais divertido. Por várias razões, que gostaria de elaborar mas de que declinarei por falta de paciência para comparar presente e passado, nossas duas únicas dimensões tangíveis.
Ela usa cabelo liso roçando os ombros. Nem curtos nem longos.
Peço perdão pelos meus vícios. Pelas palavras que contra a vontade sou forçado a usar. Por decepcionar. Pela gangorra das ideias e das possibilidades. Não sei o que é pior: quando a palavra não vem ou quando vem seguida de todo um bando e você não consegue decidir qual usar. Cada escolha é uma angústia. Vou alinhando uma atrás da outra me recriminando, essa, pesada demais, aquela, imprecisa, a outra, impertinente, um rojão na noite idílica, le mot juste é sempre a próxima. Nos meus tempos de Portas da percepção tudo era mais fácil. Para começo de papo, vivia bêbado. Não é força de expressão — Dreher de sol a sol. Até aí, nada de novo. A única diferença é que as ressacas não eram tão horripilantes como as de hoje. Aquilo é que era viver. Para espanto de madame, alguns de nós humanos nascemos incapazes de tolerar a vida. Curto e grosso: não sabemos como. Acidentes acontecem. Eis algo em que a natureza é pródiga. Os eugenistas estão certos. Excrecências como eu deviam ser removidas. Uma borrifada de aerosol exterminante e voilá. Sou uma degenerescência. Todos — madames e cavalheiros finos inclusos — degeneramos. Comigo é dom nato. Por isso, ainda cedo, entreguei meu destino a uma garrafa de Dreher combinada a um daqueles copinhos de fundo grosso que o Lacerda usa quando serve cafezinho ao peão indo ao trabalho e cachaça ao mesmo peão na volta. Agora você entendeu por que esses copinhos têm o fundo tão grosso, não entendeu? De manhãzinha, tudo bem, neguinho está razoavelmente dono de suas comichões e hormônios. O fundão se mostra útil é à noitinha, na sacra hora da pinga, o cabra despeja no chão o tradicional golinho do santo, derrama a talagada goela abaixo, geme alto de alívio e gana de matar e solta o copo no balcão numa porrada. Fosse um copo tipo americano espatifaria em mil caquinhos.
Ela me ama porque, a cada dez tentativas, em só uma sou capaz de penetrá-la. Não ofereço perigo.
Como você percebe, certos aspectos da existência dos degenerescentes também são regidos pela lógica. Os cruciais, pelo menos. É extraordinário como somos capazes de bloquear nossa atenção ao que não importa. Comigo não tem essa de horário. O prazer supremo é abrir os olhos de manhã — ou tarde, dependendo dos antecedentese logo enfiar um cigarro entre os lábios, acender e queimar sôfrego até o filtro. Lá se vai um Free Box inteirinho em apenas três profundas e ferozes tragadas. Me sinto prestes a levitar, saber que estou me punindo a uma doença fatal dá um barato reconfortante, a fumaça envenenada parece matar alguém ruim aqui dentro que não curte se intoxicar. À medida que apodreço vou me escoimando de porcarias largadas em meu interior à minha revelia. Meu ato seguinte — depois de vestir as calças resmungando uma fieira de palavrões e limpar a remela dos olhos desfiando a mesma fieira de trás para a frenteé atravessar a rua, entrar no buteco do Lacerda e permanecer. O Lacerda nota apenas perifericamente minha imperceptível presença. Sem erguer os olhos da pia onde esfrega trôpego e triste suas tralhas, pinga meticuloso um Dreher num daqueles copinhos robustos. Apanho o copo de mão cheia, envolvendo-o com todos os dedos evitando que ele fuja, encenando pela enésima vez o rito da embebição descendo incandescente por dentro de mim para me purificar da minha imundice, conduzindo lentamente ao ralo da boca e escoando enquanto espero embebedar à loucura os micróbios e amebas que hospedo inerme. Então, permaneço. É meu tributo à sina da busca duma satisfação à necessidade de permanência transcendental de brâmanes e outros devotos. Aí, bem diante dos meus olhos, acontece: minha alma sai de dentro da geladeira viscosa onde o Lacerda guarda os restos de linguiça e salaminho e cumbucas da feijoada do sábado para se instalar algures em meu interior onde é, ou devia ser, seu lugar em qualquer homem que se digne. É uma alma azul reluzente, como sóem ser todas as almas. Um azul quase marinho, contornado por uma passamanaria fina em turquesa-bebê. E uma aura rosa-esverdeada, aqui e ali iridescente de musgo. Ela se acomoda e me aquieta e por alguns minutos me vejo razoavelmente saciado da minha sede atávica de ser em eterno desmame inconformado enquanto antegozo o próximo conhaque descendo qual lava benta de vulcão infindo pelo meu esôfago para implodir no estômago. Um só instante. Até o próximo. O antegozo é o que me cabe.
Soninha não é feia nem bonita — pelo menos não tão feia quanto o Lacerda em si. Nem graciosa nem sem graça. Cabelo quase preto roçando os ombros. Braços quase roliços. É o que mais gosto nela, vagina mágica inclusa. Talvez a única coisa, ainda não tenho opinião formada, mesmo depois desses vinte anos que passaram sem que me desse conta. Todo dia depois do almoço, o Lacerda, ideias estropiadas pela pinga, arrasta dona Juçara para uma sesta no quarto da casa que fica nos fundos (o Lacerda faz várias sestas ao dia com dona Juçara, o nordestino é acima de tudo um reprodutor), antes escalando a filha para a gerência do buteco.
Ela insiste em se mudar para a minha casa. Se cansou de me servir apenas na cama. E, a notifiquei, faz uns dias que estou tentando comer a Nilzete, recepcionista do doutor Evanildo, meu dentista (popular, devo esclarecer, antes que você pense que sou funcionário público com condições de pagar dentista bom). E a Solange, adolescente do segundo ano do segundo grau que não vai bem em português e a quem dou aulas de reforço uma vez por semana em que vim a descobrir que sempre podemos tirar algo até então impensado deste nosso corpo santuário do martírio e depositário de doenças e dores e usina de dejetos).
Eu simplesmente não posso assumir uma relação estável, pois sei, embora nunca lhe tenha dito, que logo, sem poder precisar quando, logo tudo mudará, não tenho como prever. Acontece que estou trocando, aos poucos, o Dreher pelo rum. Sem marca preferida. Outro dia entrei num buteco qualquer no centro e, essas coisas acontecem comigo, entrei no buteco e pedi um rum e quando dei por mim o copo já estava vazio à minha frente no balcão, e então pedi outro e outro. Na hora saquei, a partir dali mudanças adviriam. Deixei de ir no Lacerda uns tempos, fiquei devendo um mês de conhaque e uns saquinhos de amendoim.
Um dia cedinho tocam insistentemente a campainha de casa, pulo da cama sobressaltado, corro para a porta. É dona Juçara, que às lágrimas me leva até a casinha nos fundos do bar. Ela está trancada no banheiro. Bato, chamo, forço a maçaneta. Ouvimos uns gemidos. Mando dona Juçara sair da frente, cerro os olhos com força e dou uma joelhada na porta, que, para sorte do meu joelho, é travada apenas por um trinquinho precário. O Lacerda está sentado na privada, mal se equilibrando no canto das paredes, segurando a menina no colo. Ela está sem blusa e tem as calças jeans abaixadas até o meio das coxas. Ela se levanta, puxa as calças, veste a blusa, passa por mim e dona Juçara nos fitando desafiadora e sai calmamente. O Lacerda cobre a cara com as duas mãos. Depois disso vive se esquecendo de me cobrar o fiado.


Amorokê na vila - Capítulo 009

Quem salvou a fama póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, o do Nordeste e do interior do Brasil.
Otto Maria Carpeaux


Volto para casa, vejo o pedaço de papel dobrado em cima da mesa da cozinha. Poucas coisas são tão ominosas quanto um pedaço de papel dobrado em cima da mesa da cozinha. Sempre entro em casa meio precavido. Já é meio inconsciente. Esses traumas não me largam, ó mãe.
Vem, demônio, vem e assume. Peço, não demores. E, ao chegar sem anúncio nem pompa, sê rápido.
Hoje será. Eu sei.
Vem e te traz contigo. Você faz parte um do outro.
Me mostra o que sinto. Me explica.
Não quero ser apenas mais um dos teus filhos adotivos. Me extrai do meio da manada. Vê, já me desfiz de tudo que nos distancia.
Desdobro o pedaço de papel. A letrinha bonita e arredondada de Sílvia é miúda demais. Para piorar, a tinta da Bic devia estar no fim. Para piorar ainda mais, minha vista está embaçada. Labirintite ocular. Não vou ao gastro há uns dez anos. Tenho de pôr os óculos e aproximar o papel da cara para poder ler.
Decidi que não mais existo pra te agradar. De hoje em diante vou realizar minhas vontades. Seus desejos não são mais os meus desejos. Minha vida não é mais sua, meu corpo não é mais seu. Decidi que vou satisfazer apenas os desejos do meu corpo. Afinal é só um corpo. Vou me embonecar, assumir meu lado perua. Afinal, que é que você tem com isso?
Depois que disseram que o único problema filosófico é o suicídio, comecei a me preocupar. Até fiquei obsessivo. Deixou de ser papo de moleque romântico. Nunca tinha dado muita trela antes. Deixava sair pela linha de fundo como mais uma das incontáveis imperfeições da natureza a que estamos todos sujeitos. Sendo eu um melancólico mórbido, a blague de Camus ligou alguma fantasia primitiva aqui dentro que até então estava em repouso. Já tinha pensado pacas sobre o assunto, como encano alucinado em milhões de outros, ciscando aqui e ali algo que me faça sentido nesta sonata estéril de significados, mas de repente a noção só começou a deixar de ser vaga e alheia. Foi um clique. A idéia de que podia me matar era atraente demais — e a possibilidade, exequível demais — para fingir que não estava nem aí.
Folgo em saber que detenho a última prerrogativa de continuar ou não a existir. É um dos meus poucos poderes sobre alguma coisa. (A coisa de todas as coisas.) A partir daí, assumida a queda genuína para o suicídio, tudo se resume a aguardar. Como qualquer espera que tem alguma importância, esta também se arrasta, acelera, estanca, se dilui no dia-a-dia sem que você possa berrar basta e partir para alguma outra espera. Você não faz a mínima ideia de quando a bendita hora enfim chegará. Entrementes, vou tentando reunir coragem. Entrementes, vou pensando em escrever um manual sobre o maldito. Um decálogo. Dez princípios básicos que você deve seguir para evitar que os acordes dramáticos da sonata terminem por te levar a um leito de hospital por causa dum acidente imprevisto qualquer.
Não, não estou sendo pleonástico. Você não imagina quantos acidentes imprevistos forja o pretenso suicida cujo fito não é outro senão armar um escarcéu para chamar a atenção da mulher que lhe deu o fora ou do pai workaholic que não dá lhufas para o filhote desorientado sob o peso das próprias excentricidades. O manual está guardado algures na minha cômoda de seis gavetas num canto do meu quarto. Tenho receio de botar o bicho a lume. Toda vez que leio me dou conta de que a solução final não é tão complicada de pôr em prática. Ainda não sei se sou macho o bastante para segurar a barra caso algum neurótico efetivamente use a porcaria para desembarcar deste asilo de loucos. Não posso negar, porém, que ver que algo que escrevi deu algum resultado prático, embora trágico, seria motivo de vaidade e orgulho. Sei que você não quer, mas mesmo assim vou lhe dar uma pérola de sabedoria: um dos segredos para levar sua vidinha em relativa amenidade é não acordar o demônio que habita dentro de você. Se for sensato, você vai seguir meu conselho. A desobediência é o passo inicial rumo à catástrofe, creia. Arranque a fórceps as fantasias dessa sua cabecinha oca e pelo menos uma vez escute alguém que sabe o que está falando.
Você vai dizer que esse assunto não lhe diz respeito. Vai dizer que vive na mais perfeita tranquilidade e paz. E vai dizer que não é — nem jamais será — maluco a ponto de permitir que um demônio lhe tome conta da alma. Pois diga. Respondo que, em certas pessoas, o diabo — por alguma nebulosa razão que ainda não sei explicar — prefere viver em férias, eternamente tomando sol (para que quer ficar mais bronzeado também não sei) enquanto, com uma das patas, empunha uma caipirinha de vodka, com a outra acaricia uma resma de putinhas igualmente diabólicas e com a terceira redige o enésimo acordo ortográfico para os países lusófanos.
Piadas à parte, me permita fazer uma modesta interpretação da sua personalidade. A meu ver, seu maior problema é que você é destituído do sentido trágico da vida. Não, não cometerei a asneira de lhe recomendar Sófocles ou Shakespeare. Mas quem sabe uma ou duas páginas de Roth surtam algum efeito — efêmero, admito —, sobre  a boçalidade granítica com que você busca a felicidade a todo custo.
Isto posto, sei que você continua recalcitrante. Quer pagar para ver? Então me permita dar outro conselho: nunca pague para ver. Não se faça de anarquista. Simplesmente obedeça. Cordeirinhos feito você nascem para o abate. Não se concebe um cordeirinho adepto do suicídio. Até eu mesmo me acho um cordeirinho. Um cordeirinho deslocado que sonha em ser predador. Exatamente como você, rezo para que o lobo esteja morto de fome na hora fatídica; rezo para que o lobo não se sinta disposto a fazer de mim um brinquedo para suas garras e caninos; e rezo para que o lobo seja habilidoso o bastante e dê cabo de mim em um único e indolor golpe.
Somos infinitamente distantes, não somos? Vivemos incalculáveis dores-luz longe uns dos outros. Lutamos tanto para manter um tico de pessoalidade enquanto vamos tentando em vão nos tocar.
Você tem limitações de que às vezes quer se livrar num estalar de dedos, não tem? Eu mesmo vivo fazendo isso, sempre me esquecendo de que não sou capaz, estalando os dedos feito bobo enquanto me sirvo dum aperitivo ao cair da tarde no buteco.
Com o papel na mão, no primeiro instante não atino com a truculência e a selvageria do demônio. Ela já me deixou. Digo, ela já me deixou outros bilhetes antes.
Você acha que tudo podia ser diferente? Se eu quisesse? Afinal de que me defendo com tamanha fúria, erigindo muralhas e cavando pântanos e instalando armadilhas à minha volta? Se pudesse, me transformaria em vendedor de mim mesmo, cheio de dedos e bocas e trejeitos, fileira interminável de dentes rasgando o meio da cara, se pudesse.
Nos últimos tempos Sílvia também ficou obsessiva. O rosto sempre tenso. Não me preocupei. Enquanto o suposto suicida potencial fala que vai se matar, concluí em minhas investigações — acientíficas, devo esclarecer, mas confio na minha sensibilidade para fisgar um ou outro insight quando o assunto me interessa e quando me disponho a superar a preguiça —, o infeliz está ainda na fase de pedir ajuda, testando o efeito que a idéia produz nele mesmo, atento aos reflexos produzidos no rosto do outro. O sinal de crise séria vem com o mutismo. Então o cara já caiu na ratoeira da própria piada, de repente se vê sozinho no imenso palco que armou para si mesmo e que nunca imaginou um dia fosse estrear, se desligou do mundo exterior, cortou a fitinha azul e rosa que o prendia às pessoas, é um cérebro à deriva que pode partir para virtualmente qualquer direção.