The sort of day that makes one glad to be dead.
Quanto
a Soninha, é daqueles entes que nem cheiram nem fedem.
Estou
sendo frívolo de novo.
Não
é bem verdade. Cheira, e gostoso. Um cheiro calmante de carne fresca. Fez só o
primário e seu odor é suficiente para dar conta das necessidades da expressão.
Miraculoso aromazinho nesta minha jornada de ecos surdos e delírios mancos. Uma
mistura fina de suor secretado sem esforço, denotando cabecinha oca, nervos
firmes e glândulas saudáveis. Para ela duas dúzias de palavras não polissêmicas
e sem hífen dão para o gasto. Não sou um sujeito erudito, sofisticado ou
complexo. Me limito aos instintos e às emoções básicas: comer, cagar, dormir,
rir e chorar, não importa a ordem. Ordem não significa nada. A ordem é inimiga
da harmonia. O que os doutos chamam pedantes de potencialidades da experiência
humana são apenas variações em torno dessas atividades toscas. Sonhar, quase
não sonho mais, e se sonho é em inglês, acordado ou dormindo, e quando sonho
não muda coisa alguma — meu autodesconhecimento prossegue impávido como sempre
foi e como sempre será e como quero que seja. Outros não conheço nem quero
conhecer. Algumas, queria apenas comer, se pudesse. Para uns, não almejo senão cagar. Nas duas
ou três pessoas de quem me aproximei um pouco desde que nasci, não achei nada
de interessante que quisesse investigar a fundo. Funduras alheias me dão enjoo.
Entro enquanto dá pé. Só levo papo com gente rasa. O que os outros dizem ou
deixam de dizer, pensam ou deixam de pensar, sentir e querer tem tanta importância
para mim quanto um filme de Goddard ou a pseudoliteratura inflada de Humberto
Eco. Tudo se resume ao forte que esmaga o fraco. Os que tentam ser grandes mas
não podem acabam diletantes apodrecidos. É o Princípio da Excelência que vêm me
enfiando pelo rabo desde o primeiro minuto em que passei a existir. Para quem é
forte, legal. Para os fracos feito eu, apodrecimento e descarte sumário. Eis a
medonha dualidade de que não posso escapar. Não fui agraciado geneticamente com
monstruosa capacidade analítica. A única obscuridade em que me animo a refletir
é a da fossa negra no fundo do meu quintal e do meu espírito. Não nasci com o
dom de sacar a natureza humana e expressá-la em poesia, nem possuo a habilidade
de desembaralhar os inumeráveis fantasmas que me assombram, não chego ao
tornozelo dos grandes, não passo dum insistente aterrorizado por ataques
mentais distorcidos que muito raramente se transubstanciam em poesia, sim,
venderia a alma para ganhar na loteria dos excelsos, talvez um dia corte os pulsos
como prenuncio ser minha sina e meu dever de fraco sem outra utilidade senão
lamber o saco dos eleitos.
Apesar
desta minha olímpica indiferença aos outros, consigo perceber que Soninha não
aceita bem a distância que faço questão de manter de todos e de tudo que todos
prezam e minha autodevoção à minha própria alienação. Ignorante qual uma
bezerra a se apascentar da ração que toma por ambrosia, torce o narizinho para
o que chama de minha empáfia. Típico dos que, por um motivo qualquer, por um
período na vida, estão à minha volta. Sei que aparento arrogância e desprezo
pelos outros. Não, lhe expliquei diversas vezes. É apenas abulia. Ela parece
entender na hora, depois acaba esquecendo. É incapaz de reter palavras
difíceis. Espero não ter de explicar mais cem vezes. Vejo nos seus olhos não
abúlicos que ela não só não compreende como também não tá nem aí. Sabe quando
alguém da família desenvolve câncer no pâncreas e você até sente algo de
compaixão, lamenta franzindo o cenho para que não haja dúvidas da tua solidariedade,
mas se deixa perturbar por não fazer ideia do padecimento alheio, por mais
afeto que se esforce por demonstrar pelo desgraçado prestes a esticar as botas?
A cruz do abúlico é insuportavelmente pesada e grotesca como a do deprimido. Se fosse escritor, escreveria Darkness
Visible.
Tenho
vontade de conhecê-la melhor. Ir além da pele jambo, da bunda apolínea, das
pernas equinas e da ignorância antropofágica. Na cama, ela devastaria minhas
pretensões transcendentalistas, me conduziria a um estado animalesco que sozinho jamais descobriria ter em mim, pois que me ensinaram que o único estado
mental aceitável é a dum eunuco adorador de deus, e então, se não fosse eunuco, ia querer é que se fodesse e que ela me fodesse com sua vagina de virago, e,
se não fosse eunuco, ela me puxaria para cima do corpinho meigo e me daria uma
chave com pernas poderosas e então travaria minha rola dentro dos grandes
lábios mais fortes e resilientes e articulados que já teria visto e enfiaria
uma língua elástica e serpeante na minha boca e meteria o dedo médio no meu cu
até o meio enquanto com os dedos da outra mão me apalparia o períneo me
estimulando a próstata e me ninaria como se fosse minha babá primeva até meu
orgasmo explodir num gozo doloroso de intenso e ao mesmo tempo ecumênico e
redentor e, se não fosse eunuco, podia passar meses sobre o corpinho macio
dela, sem me mexer um músculo, explorando extático e exanimado as sendas
circundantes do inconsciente. Se ela quisesse virtualmente me devorar às dentadas
e se não fosse eunuco, não me oporia. Então temeria que ela fosse canibal e
que acabaria engolido cedo ou tarde. (Rio imaginando meus 120 quilos entalados
em seu esôfago de jibóia esguia que acabou de deglutir uma capivara.) Como já
vimos, ia querer é que se fodesse. Estou farto desta vidinha de eunuco
racionalizador de merda. Preciso saber como devo proceder para sair por aí
mugindo e abanando o rabo e babando e fornicando desvairado e inclemente feito um
roedor provido duma alma de roedor.
Não
a conheço, não quero conhecer, não me conheço. Autoconhecimento é picaretagem
inventada pelas Grandes Corporações que Me Engambelam para obter alguma
vantagem inconfessa. Persigo apenas um objetivo inatingível: gozo infinito e
permanente. Tudo que não faça parte desse propósito pode ser deixado no
escaninho “Práticas Diversionistas” na minha mente gangrenada de tanto almejar
à luz. Lembrar, tampouco. Quando lembro, quero é esquecer. Se impossível, então
morrer. O fio da meada pode ser curto quando o sujeito tem boa-fé. Religião, a
mais nociva das engambelações, não tenho. Crença, idem. Superstição, neca. Sou
um primário, no mau sentido. Essas palavras incomuns que só se encontram no
Houaiss nascem de situações igualmente incomuns. Não tenho por que usar palavras
especiais. Assim como jamais utilizo a trigonometria ou a química. Você por
acaso sabe para que raios servem hidrocarbonetos policíclicos aromáticos? Eu
também não. Você sabe quem é Antonio Cândido e por que cargas d'água alguém
teria a pachorra de se referir a ele como founding
father da doxa uspiana? Para sorte sua, não.
Mesmo
que existissem palavras para cada cor de pele, ninguém saberia como usá-las. A
variedade de tons e texturas dos rostos com que cruzamos dia a dia é
assoberbante. Sem falar do rosto em si. Nada é mais indefinível em
expressividade. Nesses cinco mil anos de civilização dormimos e acordamos
encafifados, apaixonados, agoniados com semblantes. O leigo em sensibilidade,
obcecado pela noção de que as respostas estão na metafísica das estrelas, passa
batido. Mas sabe direitinho o que interessa: rostos. Eis a diferença. É onde
mais gastamos nossa escassa energia. Caras podem ser misteriosas. Fora caras,
não há mistérios. Nós é que nos amarramos em ver sombras onde há simplesmente
falta de luz. Topamos qualquer coisa para escapar do tédio. Imagine nossa
vidinha sem a ideia da imortalidade (que no fundo nunca negamos nem admitimos
honestamente para nós mesmos, tirando espíritas, cabalistas, místicos e
religiosos que empobrecem nossa amarga epopeia a uma reles passagem, faquires
que se dedicam ao autoflagelo por medida preventiva contra o padecimento da
carne e ascetas que renunciam desde cedo aos prazeres embriagantes porque viver
dá trabalho).
Fui
me dar conta do que é cor jambo quando a conheci. Me dei conta de várias outras
coisas a que nunca prestara atenção. Hoje ainda não presto à maior parte do que
existe neste mundão infindável. O mundo tem coisas demais. A maioria,
desnecessárias. Hoje à tarde vou começar um inventário. Não. Seria inútil. Como
tudo que faço. Como tudo que todos fazemos. E o mundo tem gente demais. Isso
até você e essa sua índole de bater perna pelo chóping cuma sacolinha plástica
pendurada na mão ao cair do crepúsculo é capaz de entender. Ela não é mulher de
faquir, não sei se faquir se casa, mas recende a precaução. E prudência,
naturalmente. Na época em que lia, na época em que podia ler Huxley, tudo era mais divertido.
Por várias razões, que gostaria de elaborar mas de que declinarei por falta de
paciência para comparar presente e passado, nossas duas únicas dimensões
tangíveis.
Ela
usa cabelo liso roçando os
ombros. Nem curtos nem longos.
Peço perdão pelos meus vícios. Pelas
palavras que contra a vontade sou forçado a usar. Por decepcionar. Pela
gangorra das ideias e das possibilidades. Não sei o que é pior: quando a
palavra não vem ou quando vem seguida de todo um bando e você não consegue
decidir qual usar. Cada escolha é uma angústia. Vou alinhando uma atrás da
outra me recriminando, essa, pesada demais, aquela, imprecisa, a outra,
impertinente, um rojão na noite idílica, le mot juste é sempre a próxima. Nos
meus tempos de Portas da
percepção tudo era mais
fácil. Para começo de papo, vivia bêbado. Não é força de expressão — Dreher
de sol a sol. Até aí, nada de
novo. A única diferença é que as ressacas não eram tão horripilantes como as de
hoje. Aquilo é que era viver.
Para espanto de madame, alguns de nós humanos nascemos incapazes de tolerar a
vida. Curto e grosso: não sabemos como. Acidentes acontecem. Eis algo em que a
natureza é pródiga. Os eugenistas estão certos. Excrecências como eu deviam ser
removidas. Uma borrifada de aerosol exterminante e voilá. Sou uma
degenerescência. Todos — madames e cavalheiros finos inclusos — degeneramos.
Comigo é dom nato. Por isso, ainda cedo, entreguei meu destino a uma garrafa de
Dreher combinada a um daqueles copinhos de fundo grosso que o Lacerda usa
quando serve cafezinho ao peão indo ao trabalho e cachaça ao mesmo peão na
volta. Agora você entendeu por que esses copinhos têm o fundo tão grosso, não
entendeu? De manhãzinha, tudo bem, neguinho está razoavelmente dono de suas
comichões e hormônios. O fundão se mostra útil é à noitinha, na sacra hora da
pinga, o cabra despeja no chão o tradicional golinho do santo, derrama a
talagada goela abaixo, geme alto de alívio e gana de matar e solta o copo no
balcão numa porrada. Fosse um copo tipo americano espatifaria em mil caquinhos.
Ela
me ama porque, a cada dez tentativas, em só uma sou capaz de penetrá-la. Não
ofereço perigo.
Como
você percebe, certos aspectos da existência dos degenerescentes também são
regidos pela lógica. Os cruciais, pelo menos. É extraordinário como somos
capazes de bloquear nossa atenção ao que não importa. Comigo não tem essa de
horário. O prazer supremo é abrir os olhos de manhã — ou tarde, dependendo dos
antecedentes — e logo enfiar um cigarro entre os lábios,
acender e queimar sôfrego até o filtro. Lá se vai um Free Box inteirinho em
apenas três profundas e ferozes tragadas. Me sinto prestes a levitar, saber que
estou me punindo a uma doença fatal dá um barato reconfortante, a fumaça
envenenada parece matar alguém ruim aqui dentro que não curte se intoxicar. À
medida que apodreço vou me escoimando de porcarias largadas em meu interior à
minha revelia. Meu ato seguinte — depois de vestir as calças resmungando uma
fieira de palavrões e limpar a remela dos olhos desfiando a mesma fieira de
trás para a frente — é atravessar a
rua, entrar no buteco do Lacerda e permanecer. O Lacerda nota apenas perifericamente minha imperceptível presença. Sem erguer os
olhos da pia onde esfrega trôpego e triste suas tralhas, pinga meticuloso um
Dreher num daqueles copinhos robustos. Apanho o copo de mão cheia, envolvendo-o
com todos os dedos evitando que ele fuja, encenando pela enésima vez o rito da
embebição descendo incandescente por dentro de mim para me purificar da minha
imundice, conduzindo lentamente ao ralo da boca e escoando enquanto espero
embebedar à loucura os micróbios e amebas que hospedo inerme. Então, permaneço.
É meu tributo à sina da busca duma satisfação à necessidade de permanência
transcendental de brâmanes e outros devotos. Aí, bem diante dos meus olhos,
acontece: minha alma sai de dentro da geladeira viscosa onde o Lacerda guarda
os restos de linguiça e salaminho e cumbucas da feijoada do sábado para se
instalar algures em meu interior onde é, ou devia ser, seu lugar em qualquer
homem que se digne. É uma alma azul reluzente, como sóem ser todas as almas. Um
azul quase marinho, contornado por uma passamanaria fina em turquesa-bebê. E
uma aura rosa-esverdeada, aqui e ali iridescente de musgo. Ela se acomoda e me
aquieta e por alguns minutos me vejo razoavelmente saciado da minha sede
atávica de ser em eterno desmame inconformado enquanto antegozo o próximo conhaque
descendo qual lava benta de vulcão infindo pelo meu esôfago para implodir no
estômago. Um só instante. Até o próximo. O antegozo é o que me cabe.
Soninha
não é feia nem bonita — pelo
menos não tão feia quanto o Lacerda em si. Nem graciosa nem sem graça. Cabelo
quase preto roçando os ombros. Braços quase roliços. É o que mais gosto nela, vagina mágica
inclusa. Talvez a única coisa, ainda não tenho opinião formada, mesmo depois
desses vinte anos que passaram sem que me desse conta. Todo dia depois do
almoço, o Lacerda, ideias estropiadas pela pinga, arrasta dona Juçara para uma
sesta no quarto da casa que fica nos fundos (o Lacerda faz várias sestas ao dia
com dona Juçara, o nordestino é acima de tudo um reprodutor), antes escalando a
filha para a gerência do buteco.
Ela
insiste em se mudar para a minha casa. Se cansou de me servir apenas na cama.
E, a notifiquei, faz uns dias que estou tentando comer a Nilzete,
recepcionista do doutor Evanildo, meu dentista (popular, devo esclarecer, antes
que você pense que sou funcionário público com condições de pagar dentista
bom). E a Solange, adolescente do segundo ano do segundo grau que não vai bem
em português e a quem dou aulas de reforço uma vez por semana em que vim a
descobrir que sempre podemos tirar algo até então impensado deste nosso corpo
santuário do martírio e depositário de doenças e dores e usina de dejetos).
Eu
simplesmente não posso assumir uma relação estável, pois sei, embora nunca lhe
tenha dito, que logo, sem poder precisar quando, logo tudo mudará, não tenho
como prever. Acontece que estou trocando, aos poucos, o Dreher pelo rum. Sem
marca preferida. Outro dia entrei num buteco qualquer no centro e, essas coisas
acontecem comigo, entrei no buteco e pedi um rum e quando dei por mim o copo já
estava vazio à minha frente no balcão, e então pedi outro e outro. Na hora
saquei, a partir dali mudanças adviriam. Deixei de ir no Lacerda uns tempos,
fiquei devendo um mês de conhaque e uns saquinhos de amendoim.
Um
dia cedinho tocam insistentemente a campainha de casa, pulo da cama
sobressaltado, corro para a porta. É dona Juçara, que às lágrimas me leva até a
casinha nos fundos do bar. Ela está trancada no banheiro. Bato, chamo, forço a
maçaneta. Ouvimos uns gemidos. Mando dona Juçara sair da frente, cerro os olhos
com força e dou uma joelhada na porta, que, para sorte do meu joelho, é travada
apenas por um trinquinho precário. O Lacerda está sentado na privada, mal se
equilibrando no canto das paredes, segurando a menina no colo. Ela está sem
blusa e tem as calças jeans abaixadas até o meio das coxas. Ela se levanta,
puxa as calças, veste a blusa, passa por mim e dona Juçara nos fitando
desafiadora e sai calmamente. O Lacerda cobre a cara com as duas mãos. Depois
disso vive se esquecendo de me cobrar o fiado.
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