Amorokê na vila - Capítulo 010

The sort of day that makes one glad to be dead.

Quanto a Soninha, é daqueles entes que nem cheiram nem fedem.
Estou sendo frívolo de novo.
Não é bem verdade. Cheira, e gostoso. Um cheiro calmante de carne fresca. Fez só o primário e seu odor é suficiente para dar conta das necessidades da expressão. Miraculoso aromazinho nesta minha jornada de ecos surdos e delírios mancos. Uma mistura fina de suor secretado sem esforço, denotando cabecinha oca, nervos firmes e glândulas saudáveis. Para ela duas dúzias de palavras não polissêmicas e sem hífen dão para o gasto. Não sou um sujeito erudito, sofisticado ou complexo. Me limito aos instintos e às emoções básicas: comer, cagar, dormir, rir e chorar, não importa a ordem. Ordem não significa nada. A ordem é inimiga da harmonia. O que os doutos chamam pedantes de potencialidades da experiência humana são apenas variações em torno dessas atividades toscas. Sonhar, quase não sonho mais, e se sonho é em inglês, acordado ou dormindo, e quando sonho não muda coisa alguma — meu autodesconhecimento prossegue impávido como sempre foi e como sempre será e como quero que seja. Outros não conheço nem quero conhecer. Algumas, queria apenas comer, se pudesse. Para uns, não almejo senão cagar. Nas duas ou três pessoas de quem me aproximei um pouco desde que nasci, não achei nada de interessante que quisesse investigar a fundo. Funduras alheias me dão enjoo. Entro enquanto dá pé. Só levo papo com gente rasa. O que os outros dizem ou deixam de dizer, pensam ou deixam de pensar, sentir e querer tem tanta importância para mim quanto um filme de Goddard ou a pseudoliteratura inflada de Humberto Eco. Tudo se resume ao forte que esmaga o fraco. Os que tentam ser grandes mas não podem acabam diletantes apodrecidos. É o Princípio da Excelência que vêm me enfiando pelo rabo desde o primeiro minuto em que passei a existir. Para quem é forte, legal. Para os fracos feito eu, apodrecimento e descarte sumário. Eis a medonha dualidade de que não posso escapar. Não fui agraciado geneticamente com monstruosa capacidade analítica. A única obscuridade em que me animo a refletir é a da fossa negra no fundo do meu quintal e do meu espírito. Não nasci com o dom de sacar a natureza humana e expressá-la em poesia, nem possuo a habilidade de desembaralhar os inumeráveis fantasmas que me assombram, não chego ao tornozelo dos grandes, não passo dum insistente aterrorizado por ataques mentais distorcidos que muito raramente se transubstanciam em poesia, sim, venderia a alma para ganhar na loteria dos excelsos, talvez um dia corte os pulsos como prenuncio ser minha sina e meu dever de fraco sem outra utilidade senão lamber o saco dos eleitos.
Apesar desta minha olímpica indiferença aos outros, consigo perceber que Soninha não aceita bem a distância que faço questão de manter de todos e de tudo que todos prezam e minha autodevoção à minha própria alienação. Ignorante qual uma bezerra a se apascentar da ração que toma por ambrosia, torce o narizinho para o que chama de minha empáfia. Típico dos que, por um motivo qualquer, por um período na vida, estão à minha volta. Sei que aparento arrogância e desprezo pelos outros. Não, lhe expliquei diversas vezes. É apenas abulia. Ela parece entender na hora, depois acaba esquecendo. É incapaz de reter palavras difíceis. Espero não ter de explicar mais cem vezes. Vejo nos seus olhos não abúlicos que ela não só não compreende como também não tá nem aí. Sabe quando alguém da família desenvolve câncer no pâncreas e você até sente algo de compaixão, lamenta franzindo o cenho para que não haja dúvidas da tua solidariedade, mas se deixa perturbar por não fazer ideia do padecimento alheio, por mais afeto que se esforce por demonstrar pelo desgraçado prestes a esticar as botas? A cruz do abúlico é insuportavelmente pesada e grotesca como a do deprimido. Se fosse escritor, escreveria Darkness Visible.
Tenho vontade de conhecê-la melhor. Ir além da pele jambo, da bunda apolínea, das pernas equinas e da ignorância antropofágica. Na cama, ela devastaria minhas pretensões transcendentalistas, me conduziria a um estado animalesco que sozinho jamais descobriria ter em mim, pois que me ensinaram que o único estado mental aceitável é a dum eunuco adorador de deus, e então, se não fosse eunuco, ia querer é que se fodesse e que ela me fodesse com sua vagina de virago, e, se não fosse eunuco, ela me puxaria para cima do corpinho meigo e me daria uma chave com pernas poderosas e então travaria minha rola dentro dos grandes lábios mais fortes e resilientes e articulados que já teria visto e enfiaria uma língua elástica e serpeante na minha boca e meteria o dedo médio no meu cu até o meio enquanto com os dedos da outra mão me apalparia o períneo me estimulando a próstata e me ninaria como se fosse minha babá primeva até meu orgasmo explodir num gozo doloroso de intenso e ao mesmo tempo ecumênico e redentor e, se não fosse eunuco, podia passar meses sobre o corpinho macio dela, sem me mexer um músculo, explorando extático e exanimado as sendas circundantes do inconsciente. Se ela quisesse virtualmente me devorar às dentadas e se não fosse eunuco, não me oporia. Então temeria que ela fosse canibal e que acabaria engolido cedo ou tarde. (Rio imaginando meus 120 quilos entalados em seu esôfago de jibóia esguia que acabou de deglutir uma capivara.) Como já vimos, ia querer é que se fodesse. Estou farto desta vidinha de eunuco racionalizador de merda. Preciso saber como devo proceder para sair por aí mugindo e abanando o rabo e babando e fornicando desvairado e inclemente feito um roedor provido duma alma de roedor.
Não a conheço, não quero conhecer, não me conheço. Autoconhecimento é picaretagem inventada pelas Grandes Corporações que Me Engambelam para obter alguma vantagem inconfessa. Persigo apenas um objetivo inatingível: gozo infinito e permanente. Tudo que não faça parte desse propósito pode ser deixado no escaninho “Práticas Diversionistas” na minha mente gangrenada de tanto almejar à luz. Lembrar, tampouco. Quando lembro, quero é esquecer. Se impossível, então morrer. O fio da meada pode ser curto quando o sujeito tem boa-fé. Religião, a mais nociva das engambelações, não tenho. Crença, idem. Superstição, neca. Sou um primário, no mau sentido. Essas palavras incomuns que só se encontram no Houaiss nascem de situações igualmente incomuns. Não tenho por que usar palavras especiais. Assim como jamais utilizo a trigonometria ou a química. Você por acaso sabe para que raios servem hidrocarbonetos policíclicos aromáticos? Eu também não. Você sabe quem é Antonio Cândido e por que cargas d'água alguém teria a pachorra de se referir a ele como founding father da doxa uspiana? Para sorte sua, não.
Mesmo que existissem palavras para cada cor de pele, ninguém saberia como usá-las. A variedade de tons e texturas dos rostos com que cruzamos dia a dia é assoberbante. Sem falar do rosto em si. Nada é mais indefinível em expressividade. Nesses cinco mil anos de civilização dormimos e acordamos encafifados, apaixonados, agoniados com semblantes. O leigo em sensibilidade, obcecado pela noção de que as respostas estão na metafísica das estrelas, passa batido. Mas sabe direitinho o que interessa: rostos. Eis a diferença. É onde mais gastamos nossa escassa energia. Caras podem ser misteriosas. Fora caras, não há mistérios. Nós é que nos amarramos em ver sombras onde há simplesmente falta de luz. Topamos qualquer coisa para escapar do tédio. Imagine nossa vidinha sem a ideia da imortalidade (que no fundo nunca negamos nem admitimos honestamente para nós mesmos, tirando espíritas, cabalistas, místicos e religiosos que empobrecem nossa amarga epopeia a uma reles passagem, faquires que se dedicam ao autoflagelo por medida preventiva contra o padecimento da carne e ascetas que renunciam desde cedo aos prazeres embriagantes porque viver dá trabalho).
Fui me dar conta do que é cor jambo quando a conheci. Me dei conta de várias outras coisas a que nunca prestara atenção. Hoje ainda não presto à maior parte do que existe neste mundão infindável. O mundo tem coisas demais. A maioria, desnecessárias. Hoje à tarde vou começar um inventário. Não. Seria inútil. Como tudo que faço. Como tudo que todos fazemos. E o mundo tem gente demais. Isso até você e essa sua índole de bater perna pelo chóping cuma sacolinha plástica pendurada na mão ao cair do crepúsculo é capaz de entender. Ela não é mulher de faquir, não sei se faquir se casa, mas recende a precaução. E prudência, naturalmente. Na época em que lia, na época em que podia ler Huxley, tudo era mais divertido. Por várias razões, que gostaria de elaborar mas de que declinarei por falta de paciência para comparar presente e passado, nossas duas únicas dimensões tangíveis.
Ela usa cabelo liso roçando os ombros. Nem curtos nem longos.
Peço perdão pelos meus vícios. Pelas palavras que contra a vontade sou forçado a usar. Por decepcionar. Pela gangorra das ideias e das possibilidades. Não sei o que é pior: quando a palavra não vem ou quando vem seguida de todo um bando e você não consegue decidir qual usar. Cada escolha é uma angústia. Vou alinhando uma atrás da outra me recriminando, essa, pesada demais, aquela, imprecisa, a outra, impertinente, um rojão na noite idílica, le mot juste é sempre a próxima. Nos meus tempos de Portas da percepção tudo era mais fácil. Para começo de papo, vivia bêbado. Não é força de expressão — Dreher de sol a sol. Até aí, nada de novo. A única diferença é que as ressacas não eram tão horripilantes como as de hoje. Aquilo é que era viver. Para espanto de madame, alguns de nós humanos nascemos incapazes de tolerar a vida. Curto e grosso: não sabemos como. Acidentes acontecem. Eis algo em que a natureza é pródiga. Os eugenistas estão certos. Excrecências como eu deviam ser removidas. Uma borrifada de aerosol exterminante e voilá. Sou uma degenerescência. Todos — madames e cavalheiros finos inclusos — degeneramos. Comigo é dom nato. Por isso, ainda cedo, entreguei meu destino a uma garrafa de Dreher combinada a um daqueles copinhos de fundo grosso que o Lacerda usa quando serve cafezinho ao peão indo ao trabalho e cachaça ao mesmo peão na volta. Agora você entendeu por que esses copinhos têm o fundo tão grosso, não entendeu? De manhãzinha, tudo bem, neguinho está razoavelmente dono de suas comichões e hormônios. O fundão se mostra útil é à noitinha, na sacra hora da pinga, o cabra despeja no chão o tradicional golinho do santo, derrama a talagada goela abaixo, geme alto de alívio e gana de matar e solta o copo no balcão numa porrada. Fosse um copo tipo americano espatifaria em mil caquinhos.
Ela me ama porque, a cada dez tentativas, em só uma sou capaz de penetrá-la. Não ofereço perigo.
Como você percebe, certos aspectos da existência dos degenerescentes também são regidos pela lógica. Os cruciais, pelo menos. É extraordinário como somos capazes de bloquear nossa atenção ao que não importa. Comigo não tem essa de horário. O prazer supremo é abrir os olhos de manhã — ou tarde, dependendo dos antecedentese logo enfiar um cigarro entre os lábios, acender e queimar sôfrego até o filtro. Lá se vai um Free Box inteirinho em apenas três profundas e ferozes tragadas. Me sinto prestes a levitar, saber que estou me punindo a uma doença fatal dá um barato reconfortante, a fumaça envenenada parece matar alguém ruim aqui dentro que não curte se intoxicar. À medida que apodreço vou me escoimando de porcarias largadas em meu interior à minha revelia. Meu ato seguinte — depois de vestir as calças resmungando uma fieira de palavrões e limpar a remela dos olhos desfiando a mesma fieira de trás para a frenteé atravessar a rua, entrar no buteco do Lacerda e permanecer. O Lacerda nota apenas perifericamente minha imperceptível presença. Sem erguer os olhos da pia onde esfrega trôpego e triste suas tralhas, pinga meticuloso um Dreher num daqueles copinhos robustos. Apanho o copo de mão cheia, envolvendo-o com todos os dedos evitando que ele fuja, encenando pela enésima vez o rito da embebição descendo incandescente por dentro de mim para me purificar da minha imundice, conduzindo lentamente ao ralo da boca e escoando enquanto espero embebedar à loucura os micróbios e amebas que hospedo inerme. Então, permaneço. É meu tributo à sina da busca duma satisfação à necessidade de permanência transcendental de brâmanes e outros devotos. Aí, bem diante dos meus olhos, acontece: minha alma sai de dentro da geladeira viscosa onde o Lacerda guarda os restos de linguiça e salaminho e cumbucas da feijoada do sábado para se instalar algures em meu interior onde é, ou devia ser, seu lugar em qualquer homem que se digne. É uma alma azul reluzente, como sóem ser todas as almas. Um azul quase marinho, contornado por uma passamanaria fina em turquesa-bebê. E uma aura rosa-esverdeada, aqui e ali iridescente de musgo. Ela se acomoda e me aquieta e por alguns minutos me vejo razoavelmente saciado da minha sede atávica de ser em eterno desmame inconformado enquanto antegozo o próximo conhaque descendo qual lava benta de vulcão infindo pelo meu esôfago para implodir no estômago. Um só instante. Até o próximo. O antegozo é o que me cabe.
Soninha não é feia nem bonita — pelo menos não tão feia quanto o Lacerda em si. Nem graciosa nem sem graça. Cabelo quase preto roçando os ombros. Braços quase roliços. É o que mais gosto nela, vagina mágica inclusa. Talvez a única coisa, ainda não tenho opinião formada, mesmo depois desses vinte anos que passaram sem que me desse conta. Todo dia depois do almoço, o Lacerda, ideias estropiadas pela pinga, arrasta dona Juçara para uma sesta no quarto da casa que fica nos fundos (o Lacerda faz várias sestas ao dia com dona Juçara, o nordestino é acima de tudo um reprodutor), antes escalando a filha para a gerência do buteco.
Ela insiste em se mudar para a minha casa. Se cansou de me servir apenas na cama. E, a notifiquei, faz uns dias que estou tentando comer a Nilzete, recepcionista do doutor Evanildo, meu dentista (popular, devo esclarecer, antes que você pense que sou funcionário público com condições de pagar dentista bom). E a Solange, adolescente do segundo ano do segundo grau que não vai bem em português e a quem dou aulas de reforço uma vez por semana em que vim a descobrir que sempre podemos tirar algo até então impensado deste nosso corpo santuário do martírio e depositário de doenças e dores e usina de dejetos).
Eu simplesmente não posso assumir uma relação estável, pois sei, embora nunca lhe tenha dito, que logo, sem poder precisar quando, logo tudo mudará, não tenho como prever. Acontece que estou trocando, aos poucos, o Dreher pelo rum. Sem marca preferida. Outro dia entrei num buteco qualquer no centro e, essas coisas acontecem comigo, entrei no buteco e pedi um rum e quando dei por mim o copo já estava vazio à minha frente no balcão, e então pedi outro e outro. Na hora saquei, a partir dali mudanças adviriam. Deixei de ir no Lacerda uns tempos, fiquei devendo um mês de conhaque e uns saquinhos de amendoim.
Um dia cedinho tocam insistentemente a campainha de casa, pulo da cama sobressaltado, corro para a porta. É dona Juçara, que às lágrimas me leva até a casinha nos fundos do bar. Ela está trancada no banheiro. Bato, chamo, forço a maçaneta. Ouvimos uns gemidos. Mando dona Juçara sair da frente, cerro os olhos com força e dou uma joelhada na porta, que, para sorte do meu joelho, é travada apenas por um trinquinho precário. O Lacerda está sentado na privada, mal se equilibrando no canto das paredes, segurando a menina no colo. Ela está sem blusa e tem as calças jeans abaixadas até o meio das coxas. Ela se levanta, puxa as calças, veste a blusa, passa por mim e dona Juçara nos fitando desafiadora e sai calmamente. O Lacerda cobre a cara com as duas mãos. Depois disso vive se esquecendo de me cobrar o fiado.


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