Amorokê na vila - Capítulo 009

Quem salvou a fama póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, o do Nordeste e do interior do Brasil.
Otto Maria Carpeaux


Volto para casa, vejo o pedaço de papel dobrado em cima da mesa da cozinha. Poucas coisas são tão ominosas quanto um pedaço de papel dobrado em cima da mesa da cozinha. Sempre entro em casa meio precavido. Já é meio inconsciente. Esses traumas não me largam, ó mãe.
Vem, demônio, vem e assume. Peço, não demores. E, ao chegar sem anúncio nem pompa, sê rápido.
Hoje será. Eu sei.
Vem e te traz contigo. Você faz parte um do outro.
Me mostra o que sinto. Me explica.
Não quero ser apenas mais um dos teus filhos adotivos. Me extrai do meio da manada. Vê, já me desfiz de tudo que nos distancia.
Desdobro o pedaço de papel. A letrinha bonita e arredondada de Sílvia é miúda demais. Para piorar, a tinta da Bic devia estar no fim. Para piorar ainda mais, minha vista está embaçada. Labirintite ocular. Não vou ao gastro há uns dez anos. Tenho de pôr os óculos e aproximar o papel da cara para poder ler.
Decidi que não mais existo pra te agradar. De hoje em diante vou realizar minhas vontades. Seus desejos não são mais os meus desejos. Minha vida não é mais sua, meu corpo não é mais seu. Decidi que vou satisfazer apenas os desejos do meu corpo. Afinal é só um corpo. Vou me embonecar, assumir meu lado perua. Afinal, que é que você tem com isso?
Depois que disseram que o único problema filosófico é o suicídio, comecei a me preocupar. Até fiquei obsessivo. Deixou de ser papo de moleque romântico. Nunca tinha dado muita trela antes. Deixava sair pela linha de fundo como mais uma das incontáveis imperfeições da natureza a que estamos todos sujeitos. Sendo eu um melancólico mórbido, a blague de Camus ligou alguma fantasia primitiva aqui dentro que até então estava em repouso. Já tinha pensado pacas sobre o assunto, como encano alucinado em milhões de outros, ciscando aqui e ali algo que me faça sentido nesta sonata estéril de significados, mas de repente a noção só começou a deixar de ser vaga e alheia. Foi um clique. A idéia de que podia me matar era atraente demais — e a possibilidade, exequível demais — para fingir que não estava nem aí.
Folgo em saber que detenho a última prerrogativa de continuar ou não a existir. É um dos meus poucos poderes sobre alguma coisa. (A coisa de todas as coisas.) A partir daí, assumida a queda genuína para o suicídio, tudo se resume a aguardar. Como qualquer espera que tem alguma importância, esta também se arrasta, acelera, estanca, se dilui no dia-a-dia sem que você possa berrar basta e partir para alguma outra espera. Você não faz a mínima ideia de quando a bendita hora enfim chegará. Entrementes, vou tentando reunir coragem. Entrementes, vou pensando em escrever um manual sobre o maldito. Um decálogo. Dez princípios básicos que você deve seguir para evitar que os acordes dramáticos da sonata terminem por te levar a um leito de hospital por causa dum acidente imprevisto qualquer.
Não, não estou sendo pleonástico. Você não imagina quantos acidentes imprevistos forja o pretenso suicida cujo fito não é outro senão armar um escarcéu para chamar a atenção da mulher que lhe deu o fora ou do pai workaholic que não dá lhufas para o filhote desorientado sob o peso das próprias excentricidades. O manual está guardado algures na minha cômoda de seis gavetas num canto do meu quarto. Tenho receio de botar o bicho a lume. Toda vez que leio me dou conta de que a solução final não é tão complicada de pôr em prática. Ainda não sei se sou macho o bastante para segurar a barra caso algum neurótico efetivamente use a porcaria para desembarcar deste asilo de loucos. Não posso negar, porém, que ver que algo que escrevi deu algum resultado prático, embora trágico, seria motivo de vaidade e orgulho. Sei que você não quer, mas mesmo assim vou lhe dar uma pérola de sabedoria: um dos segredos para levar sua vidinha em relativa amenidade é não acordar o demônio que habita dentro de você. Se for sensato, você vai seguir meu conselho. A desobediência é o passo inicial rumo à catástrofe, creia. Arranque a fórceps as fantasias dessa sua cabecinha oca e pelo menos uma vez escute alguém que sabe o que está falando.
Você vai dizer que esse assunto não lhe diz respeito. Vai dizer que vive na mais perfeita tranquilidade e paz. E vai dizer que não é — nem jamais será — maluco a ponto de permitir que um demônio lhe tome conta da alma. Pois diga. Respondo que, em certas pessoas, o diabo — por alguma nebulosa razão que ainda não sei explicar — prefere viver em férias, eternamente tomando sol (para que quer ficar mais bronzeado também não sei) enquanto, com uma das patas, empunha uma caipirinha de vodka, com a outra acaricia uma resma de putinhas igualmente diabólicas e com a terceira redige o enésimo acordo ortográfico para os países lusófanos.
Piadas à parte, me permita fazer uma modesta interpretação da sua personalidade. A meu ver, seu maior problema é que você é destituído do sentido trágico da vida. Não, não cometerei a asneira de lhe recomendar Sófocles ou Shakespeare. Mas quem sabe uma ou duas páginas de Roth surtam algum efeito — efêmero, admito —, sobre  a boçalidade granítica com que você busca a felicidade a todo custo.
Isto posto, sei que você continua recalcitrante. Quer pagar para ver? Então me permita dar outro conselho: nunca pague para ver. Não se faça de anarquista. Simplesmente obedeça. Cordeirinhos feito você nascem para o abate. Não se concebe um cordeirinho adepto do suicídio. Até eu mesmo me acho um cordeirinho. Um cordeirinho deslocado que sonha em ser predador. Exatamente como você, rezo para que o lobo esteja morto de fome na hora fatídica; rezo para que o lobo não se sinta disposto a fazer de mim um brinquedo para suas garras e caninos; e rezo para que o lobo seja habilidoso o bastante e dê cabo de mim em um único e indolor golpe.
Somos infinitamente distantes, não somos? Vivemos incalculáveis dores-luz longe uns dos outros. Lutamos tanto para manter um tico de pessoalidade enquanto vamos tentando em vão nos tocar.
Você tem limitações de que às vezes quer se livrar num estalar de dedos, não tem? Eu mesmo vivo fazendo isso, sempre me esquecendo de que não sou capaz, estalando os dedos feito bobo enquanto me sirvo dum aperitivo ao cair da tarde no buteco.
Com o papel na mão, no primeiro instante não atino com a truculência e a selvageria do demônio. Ela já me deixou. Digo, ela já me deixou outros bilhetes antes.
Você acha que tudo podia ser diferente? Se eu quisesse? Afinal de que me defendo com tamanha fúria, erigindo muralhas e cavando pântanos e instalando armadilhas à minha volta? Se pudesse, me transformaria em vendedor de mim mesmo, cheio de dedos e bocas e trejeitos, fileira interminável de dentes rasgando o meio da cara, se pudesse.
Nos últimos tempos Sílvia também ficou obsessiva. O rosto sempre tenso. Não me preocupei. Enquanto o suposto suicida potencial fala que vai se matar, concluí em minhas investigações — acientíficas, devo esclarecer, mas confio na minha sensibilidade para fisgar um ou outro insight quando o assunto me interessa e quando me disponho a superar a preguiça —, o infeliz está ainda na fase de pedir ajuda, testando o efeito que a idéia produz nele mesmo, atento aos reflexos produzidos no rosto do outro. O sinal de crise séria vem com o mutismo. Então o cara já caiu na ratoeira da própria piada, de repente se vê sozinho no imenso palco que armou para si mesmo e que nunca imaginou um dia fosse estrear, se desligou do mundo exterior, cortou a fitinha azul e rosa que o prendia às pessoas, é um cérebro à deriva que pode partir para virtualmente qualquer direção.


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