Quem salvou a fama
póstuma de Augusto dos Anjos foi seu povo, o do Nordeste e do interior do
Brasil.
Otto Maria Carpeaux
Volto para casa, vejo o
pedaço de papel dobrado em cima da mesa da cozinha. Poucas coisas são tão
ominosas quanto um pedaço de papel dobrado em cima da mesa da cozinha. Sempre
entro em casa meio precavido. Já é meio inconsciente. Esses traumas não me
largam, ó mãe.
Vem, demônio, vem e assume.
Peço, não demores. E, ao chegar sem anúncio nem pompa, sê rápido.
Hoje será. Eu sei.
Vem e te traz contigo. Você
faz parte um do outro.
Me mostra o que sinto. Me
explica.
Não quero ser apenas mais um
dos teus filhos adotivos. Me extrai do meio da manada. Vê, já me desfiz de tudo
que nos distancia.
Desdobro o pedaço de papel. A
letrinha bonita e arredondada de Sílvia é miúda demais. Para piorar, a tinta da
Bic devia estar no fim. Para piorar ainda mais, minha vista está embaçada.
Labirintite ocular. Não vou ao gastro há uns dez anos. Tenho de pôr os óculos e
aproximar o papel da cara para poder ler.
Decidi que não mais existo
pra te agradar. De hoje em diante vou realizar minhas vontades. Seus desejos
não são mais os meus desejos. Minha vida não é mais sua, meu corpo não é mais
seu. Decidi que vou satisfazer apenas os desejos do meu corpo. Afinal é só um
corpo. Vou me embonecar, assumir meu lado perua. Afinal, que é que você tem com
isso?
Depois que disseram que o
único problema filosófico é o suicídio, comecei a me preocupar. Até fiquei
obsessivo. Deixou de ser papo de moleque romântico. Nunca tinha dado muita
trela antes. Deixava sair pela linha de fundo como mais uma das incontáveis
imperfeições da natureza a que estamos todos sujeitos. Sendo eu um melancólico
mórbido, a blague de Camus ligou alguma fantasia primitiva aqui dentro que até
então estava em repouso. Já tinha pensado pacas sobre o assunto, como encano
alucinado em milhões de outros, ciscando aqui e ali algo que me faça sentido
nesta sonata estéril de significados, mas de repente a noção só começou a
deixar de ser vaga e alheia. Foi um clique. A idéia de que podia me matar era
atraente demais — e a possibilidade, exequível demais — para fingir que não
estava nem aí.
Folgo em saber que detenho a
última prerrogativa de continuar ou não a existir. É um dos meus poucos poderes
sobre alguma coisa. (A coisa de todas as coisas.) A partir daí, assumida a
queda genuína para o suicídio, tudo se resume a aguardar. Como qualquer espera
que tem alguma importância, esta também se arrasta, acelera, estanca, se dilui
no dia-a-dia sem que você possa berrar basta e partir para alguma outra espera.
Você não faz a mínima ideia de quando a bendita hora enfim chegará.
Entrementes, vou tentando reunir coragem. Entrementes, vou pensando em escrever
um manual sobre o maldito. Um decálogo. Dez princípios básicos que você deve
seguir para evitar que os acordes dramáticos da sonata terminem por te levar a
um leito de hospital por causa dum acidente imprevisto qualquer.
Não, não estou sendo
pleonástico. Você não imagina quantos acidentes imprevistos forja o pretenso
suicida cujo fito não é outro senão armar um escarcéu para chamar a atenção da
mulher que lhe deu o fora ou do pai workaholic que não dá lhufas para o filhote
desorientado sob o peso das próprias excentricidades. O manual está guardado
algures na minha cômoda de seis gavetas num canto do meu quarto. Tenho receio
de botar o bicho a lume. Toda vez que leio me dou conta de que a solução final
não é tão complicada de pôr em prática. Ainda não sei se sou macho o bastante
para segurar a barra caso algum neurótico efetivamente use a porcaria para
desembarcar deste asilo de loucos. Não posso negar, porém, que ver que algo que
escrevi deu algum resultado prático, embora trágico, seria motivo de vaidade e
orgulho. Sei que você não quer, mas mesmo assim vou lhe dar uma pérola de
sabedoria: um dos segredos para levar sua vidinha em relativa amenidade é não
acordar o demônio que habita dentro de você. Se for sensato, você vai seguir
meu conselho. A desobediência é o passo inicial rumo à catástrofe, creia.
Arranque a fórceps as fantasias dessa sua cabecinha oca e pelo menos uma vez
escute alguém que sabe o que está falando.
Você vai dizer que esse
assunto não lhe diz respeito. Vai dizer que vive na mais perfeita tranquilidade
e paz. E vai dizer que não é — nem jamais será — maluco a ponto de permitir que
um demônio lhe tome conta da alma. Pois diga. Respondo que, em certas
pessoas, o diabo — por alguma nebulosa razão que ainda não sei explicar —
prefere viver em férias, eternamente tomando sol (para que quer ficar mais bronzeado
também não sei) enquanto, com uma das patas, empunha uma caipirinha de vodka,
com a outra acaricia uma resma de putinhas igualmente diabólicas e com a
terceira redige o enésimo acordo ortográfico para os países lusófanos.
Piadas à parte, me permita
fazer uma modesta interpretação da sua personalidade. A meu ver, seu maior
problema é que você é destituído do sentido trágico da vida. Não, não cometerei
a asneira de lhe recomendar Sófocles ou Shakespeare. Mas quem sabe uma ou duas
páginas de Roth surtam algum efeito — efêmero, admito —, sobre a boçalidade granítica com que você
busca a felicidade a todo custo.
Isto posto, sei que você
continua recalcitrante. Quer pagar para ver? Então me permita dar outro
conselho: nunca pague para ver. Não se faça de anarquista. Simplesmente
obedeça. Cordeirinhos feito você nascem para o abate. Não se concebe um
cordeirinho adepto do suicídio. Até eu mesmo me acho um cordeirinho. Um
cordeirinho deslocado que sonha em ser predador. Exatamente como você, rezo
para que o lobo esteja morto de fome na hora fatídica; rezo para que o lobo não
se sinta disposto a fazer de mim um brinquedo para suas garras e caninos; e
rezo para que o lobo seja habilidoso o bastante e dê cabo de mim em um único e
indolor golpe.
Somos infinitamente distantes,
não somos? Vivemos incalculáveis dores-luz longe uns dos outros. Lutamos tanto
para manter um tico de pessoalidade enquanto vamos tentando em vão nos tocar.
Você tem limitações de que às
vezes quer se livrar num estalar de dedos, não tem? Eu mesmo vivo fazendo isso,
sempre me esquecendo de que não sou capaz, estalando os dedos feito bobo
enquanto me sirvo dum aperitivo ao cair da tarde no buteco.
Com o papel na mão, no
primeiro instante não atino com a truculência e a selvageria do demônio. Ela já
me deixou. Digo, ela já me deixou outros bilhetes antes.
Você acha que tudo podia ser
diferente? Se eu quisesse? Afinal de que me defendo com tamanha fúria, erigindo
muralhas e cavando pântanos e instalando armadilhas à minha volta? Se pudesse,
me transformaria em vendedor de mim mesmo, cheio de dedos e bocas e trejeitos,
fileira interminável de dentes rasgando o meio da cara, se pudesse.
Nos últimos tempos Sílvia
também ficou obsessiva. O rosto sempre tenso. Não me preocupei. Enquanto o
suposto suicida potencial fala que vai se matar, concluí em minhas
investigações — acientíficas, devo esclarecer, mas confio na minha
sensibilidade para fisgar um ou outro insight quando o assunto me interessa e
quando me disponho a superar a preguiça —, o infeliz está ainda na fase de
pedir ajuda, testando o efeito que a idéia produz nele mesmo, atento aos
reflexos produzidos no rosto do outro. O sinal de crise séria vem com o
mutismo. Então o cara já caiu na ratoeira da própria piada, de repente se vê
sozinho no imenso palco que armou para si mesmo e que nunca imaginou um dia
fosse estrear, se desligou do mundo exterior, cortou a fitinha azul e rosa que
o prendia às pessoas, é um cérebro à deriva que pode partir para virtualmente
qualquer direção.
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