Será que desta vez você aprende?



Primeiro vem o espanto.

Como é o espanto?
Não dá pra descrever.
Mas dá pra comparar.

Não, nada a ver com um soco no estômago.
Soco no estômago não espanta -- apenas dói.
Se deveras forte, pode matar.
E morrer nada tem de espantoso.

Que fazer, então?

Tenho uma ideia:

Imagine-se capaz de engolir um litro de pinga duma só vez.
Tá certo, é quase impossível.
Mas não tão impossível quanto descrever o espanto.

Um litro de pinga instantâneo no organismo não é batatinha.
Que será que acontece primeiro?
O espanto?
Quem sabe.

Imaginemos que primeiro o álcool produza um efeito anestésico.
Mas, porra, espanto também tem efeito anestésico?
Tem.
Como sei?
Experiência, oras.
A mesma experiência que me permite forjar este tipo de comparação.
Tivesse 10 anos, certamente não seria capaz de tal forjaria.

Vai por mim.
A seguir, a regurgitação, provavelmente.
Você pode regurgitar, mas nunca vomitar.
Aí é que a coisa engrena.
Você é forçado a cerrar os lábios com todas suas forças, atingindo seu limite, sentindo-se prestes a se entregar.

Mas não se entrega.
Como sei?
Sei, oras.
É como aquelas mães que são capazes de erguer um automóvel para salvar a vida dum filho atropelado.

Suas bochechas inflam qual as do Satchmo tocando trompete.
Algumas gotas da pinga regurgitada talvez escorram por entre seus lábios travados.
Mas você resiste.
Pois você, nessa situação, é a mãe.
O filho.
O automóvel.
O universo.

Então torna a engolir, desta vez uma mescla de pinga, saliva e sucos gástricos.
A esta altura, grande parte do álcool já terá entrado em seu sangue e atingido seu cérebro.

Aqui é a beleza.
A verdadeira.
Aquela que buscam cocainômanos, craqueiros, bêbados e derrotados em geral.
A beleza redentora.
A hiper, ultra, super fugaz gratificação estética que parece fazer da sua vida algo que mereça ser vivido.

Mas espere aí.
Estamos falando de nada mais, nada menos de um litro inteirinho da mais inebriante, da mais derrubante, da mais envenenada cachaça.

Será que desta vez você aprende?

Não, não será desta vez.
Como sei?
Sabendo, oras.

Mas, olha, nada a ver com experiência, não.

É que sou tolo.
Tolo além dos limites permitidos aos tolos.
Limites que apenas os tolos não enxergam.

Veja como me exponho.

Sou daqueles tolos que botam pra fora tudo que lhes sobe à cabeça.
Sim, mais ou menos como um litro da mais embriagante, da mais adulterada pinga.
E, no meu caso, sequer regurgito.
Apenas engulo.
Degluto.
Processo.
Mas só até certo ponto.
Pois não expilo.
Apenas reprocesso.
Redegluto.

E só no dia seguinte me dou conta do espanto.

Afago sísmico

Entraram no meu pedaço
Pisaram no meu tapete
Andaram no meu caminho
Seguiram todos meus rastros

Olharam da mi'a janela
Falaram com mi'a parede
Ouviram todos meus ecos
Rosnaram os meus sussurros

Mediram a minha altura
Partiram da minha origem
Chegaram ao meu destino
Julgaram minha bravura

Amaram os meus amores
Cheiraram as minhas flores
Sofreram as minhas dores
Imitaram os meus suspiros

Vagaram pelo meu céu
Riram minhas risadas
Sonharam todos meus sonhos
Armaram minhas ciladas

Tiraram o meu retrato
Quem sabe, as digitais
Conhecem meu endereço
Mas não sabem quem sou

Estar louco e ainda assim enlouquecer

Andante sostenuto
Ó virgem, como estou cansado de ser escravo da sensatez. É prisão cuja chave você avista delirante em toda parte, vendo teu tempo passar enquanto caça vultos. Ó virgem, que alívio sentiria se fosse capaz da simplicidade e, isento desta compulsão mórbida à grandiloqüência, me contentar bovino com versinhos pueris:

De repente, ela não está aqui
Reluto em proclamar seu status de desaparecida
Reluto e sei que é desaparecimento final
Pois tudo que acontece de repente em minha
vida é irrecorrivelmente final


Veja, se escondeu atrás daquela estrela sem brilho
Então desisto ─ ela não quer mais ser encontrada

Ó virgem, como é cruel que sejamos obrigados a ser nossos próprios juízes. Pare um segundo e pense: não é de outro fantasma que dedicamos nosso tempo infindável e nossas parcas forças a fugir. Temos horror à sentença com que somos capazes de nos condenar. Somos impiedosos e impiedosos nos condenamos às nossas dores.

Estou sendo patético e vou ficando louco. Tirano sensato desta frágil lucidez. Não senhor ─ não troco estes três gramas de bem-estar por três versinhos inócuos.

Atrás da estrela sem brilho ela geme ensandecida
Pernas tremendo, medo que eu a encontre
Tendo me percebido prestes ao adeus para sempre
Forjou o enigma da estrela
E assim vai me distraindo
por mais um dia


Ó virgem, como estou cansado de brincar. Preciso dizer chega. Nunca vou dizer. Mas preciso.

Out of the blue

Non troppo presto
Qual uma pistola esperando na gaveta do criado-mudo, uma bala na agulha, uma apenas, azeitada, descansando paciente e deitada enquanto não executa a função solitária que foi fabricada para executar, gaveta sem chave, dentro mais nada, nem os remédios de dor de cabeça, nenhum antidepressivo nem a esferográfica azul nem o bloquinho de papel onde costumo anotar umas bobagens. Nada. Nada.

Sobre o criado-mudo a toalhinha de crochê que, acho, foi feita por minha mãe, minha tia, minha avó, ou terá sido meu pai?

Qual a melodia escura que brota bruta, muda, inesgotável e constante por dentro e
Escute! Escute!
Para dentro
Igualmente aguardando

Quando quero, quando preciso
Escuto o chamado do lobo da estepe e não me dou o trabalho de responder. Minha melodia muda é satisfação suficiente, o pobre... O pobre maldito sabe

Sou um ladrão solitário
Ladrão inútil
Ladrão supérfluo pronto para roubar, sem nada para roubar

A única testemunha possível do meu crime será meu lobo, meu pobre lobo enlouquecido cujo uivo mudo é o murmúrio de fundo da minha missão
Minha missão não é outra senão silenciá-lo.

Departure?

Papai parado entre o amor e a dor.
Se alguém tentou, ninguém pôde conhecer.
O que pedia para ser visto.

Papai repudiado à solidão pela espera longa da compreensão.
Se alguém quis, ninguém conseguiu.
Saber era sofrer?

A multidão disposta ao adeus na morte
Sendo eu o único a viver tua vida, seguir teu recuo.
Papai esquecido no escuro das noites desesperadas pelo coração que seguiu em frente.
Guardei para ti uma lembrança.
Tenho para ti uma palavra que ainda ecoa nas paredes da tua casa e apazigua a perda daqueles que amaste.
E aqui me ofereço a ti e me quedo ao lado dos que te amaram.
E aos que te amaram ergo um brinde pela morte deles.

Durante o dia, limpo os vestígios do teu padecimento.
Durante a noite, aqueles do meu passado.
E quando enfim adormeço, enterro, sob a vista dos que anseiam pela vida, teus parcos pertences.

Papai completamente deitado sob a pedra inscrita com dizeres
Teu corpo a absorver a alegria do mundo em torno.
Foste absurdamente vivo.
Eis agora o que emana de mim se libertando por mim para dar à luz minha morte.

Pois o que, papai evocado, floresce da pedra no dia seguinte?