Já não dá mais tempo

Mario Quintana tem um problema. 
O problema de Mario Quintana não é a poesia dele.
O problema do Mario Quintana são os que dizem gostar da poesia dele.

Desejo de anononovo: lograr uma escrita sedutora que se automine incessantemente por saber que toda sedução é sacanagem.

O anononovo traz um nonovo sopro de vida.
Cuidado — não quero desmanchar meu penteado. 


No ano que vai nascer provavelmente continuarei sendo eu mesmo: não darei presente no Natal, não darei ovo de chocolate na Páscoa, não darei meia, cueca ou lenço em aniversários, não esperarei que me deem isso nem outras coisas.

Continuarei a ter bode de gente escandalosa, de gente que fala alto, de gente que fala demais, de gente repetitiva, de gente que faz as coisas de má vontade, de gente apática, de gente inexpressiva, de gente metida, de gente arrogante, de gente falsa, de gente que se faz de vítima, de gente que espera pena dos outros, de gente pra quem você conta alguma coisa e o fulano já fez e a fulana já conhece e de gente com mania de doença e de homem que só quer comer e de mulher que só pensar em dar e de gente que só conta vantagem e de gente que finge ser o que não é e de gente que não tem nada a dizer e de gente mal-resolvida e de gente que não sabe o que quer da vida e de gente cu-doce e de gente que não se manca quando você quer ficar sozinho nem saca quando você não tá a fim de conversar e de gente que fala e fala e fala e não age.

Nova Ode aos bananíssimos

Ó banho-maria que vens recozendo o prato-feito há 29 anos em suas "atividades diárias" a fazer questão de chover sem molhar.
Ontem tomei banho. Fui ao ateliê da vidente Iolanda. Que leu minha mão.
E viu na linha da minha vida: vou morrer do enfrentamento a tantos antros tais.
Previu ainda: "Escritor que é escritor morre do coração ou se mata. Qualquer coisa menos velhice.
Quer dizer que não fica construindo? — perguntei só pra confirmar o que já sabia.
Então que vi um livro de poemas de Poe no guarda-comida ao lado da mesa e entendi.

Dá tempo ainda, três

Que é que os que não sabem usar as palavras pensam, dizem, choram?

Como se chamam?
Que dizem uns aos outros?
Qual comentário fazem ao que está ao seu lado quando o sol começa a subir no céu?

Será que os que não sabem usar as palavras cantam?
Claro! O canto prescinde da palavra.
Tal como o olhar.
Tal como o amor.

Quer dizer que não há palavras no sopro do vento?

Não sei.
Podia responder que só o vento sabe.
Mas não seria satisfatório.
Nós homens e mulheres desta era científica não podemos dar a última palavra ao vento.

Dá tempo ainda, dois

Imagine uma língua sem adjetivos nem advérbios.
Imaginou?
É a minha.

Imagine uma língua sem preposições, conjunções, pronomes.
É a minha.

Imagine uma língua sem verbos.
Uma língua sem substantivos.





Dá tempo ainda

Vaux saindo da vila com a bice a tiracolo em direção à pizzaria para minhas primeiras entregas de sábado, dou com a Raimunda aos cochichos com o poeta, digo oi e sigo sem querer assuntar, a Ra abre aquele sorrisão de mil dentes de mulher oferecida em paz com os próprios hormônios sexuais, me convidando a um pit-stop.
Ela tem um papelzinho entre os dedos.
Vem cá, fujão. Ela me puxa, me dá um selinho, hm, que perfume de excreções à flor da pele. Quanto tempo. Não passa mais pra gente puxar um lero né?
Ah querida, essas entregas com bicicleta tão me matando. Chego, vou direto pro quarto e desmaio. Nem tiro a roupa.
E aí? — me dirijo ao poeta. Tá xucro, pra variar. Cabisbaixo. Não me vê. Não me escuta.
Interrogo a Ra c'um movimento das sobrancelhas. Ela faz negativo com o polegar.
Que papel é esse? pergunto.
Propaganda duma taróloga que deixaram ontem no portão.
Tá pensando...? — indico o poeta com o olhar.
Só. Meu neguinho aqui tá carecendo de ajuda braba. Profissional.
Faço que sim.
Acha que tem jeito?
Tudo tem jeito neste mundo de Deus, fio! Dona orgulhosa nenhuma vai botar meu amiguinho aqui pra baixo. Vai não senhora.
Me entrega o papeleto.
TARÓLOGA LÍGIA. Através de seu dom natural de vidência, a sensitiva Lígia abre suas cartas e pode, ajudar você entender e direcionar seus poblemas em apenas 1 conçulta. Venha conhecer-la hoje mesmo! Marque sua consulta nos seguintes tels 9-9593-8978 ou 9-9776-0726
Parece legal, devolvo a progapanda, digo, à Ra, que enfia no sutiã.
E o Osório, tempão que não vejo, me lembro de perguntar. A Ra vale um tiquinho de formalidade.
Tá com o pastor.
No culto a esta hora?
Não. Morando com o pastor.
Quer dizer que...? não me atrevo a terminar a pergunta.
Hm-hm. Desde o mês passado.
Puta merda! não consigo evitar a admoestação ão ona. Todo mundo deixa todo mundo na mão hoje em dia. Sacanagem!
Foi melhor assim, ela enverga novo sorrisão. Tava cansando do Ô. Muito mole pro meu gosto. Pisca um olho matreiro.
Oncê precisa é dum batalhão, mia flaux! rio.
O poeta solta um suspiro fundo e sentido. Tá precisado de atenção.
Pego ele no braço.
Cara, vamo dar um rolê de entrega comigo. Quem sabe a gente cruza cuma dona solitária por aí. Sábado à noite tá assim de mulher necessitada de homem.
Ele puxa o braço, emburrado.
Não desisto.
Vamo lá, meu! Sai dessa tristeza mórbida, pelamordedeus!
Só se — ele murmura.
Tá bom — aceito. Umazinha.
Cinco.
Duas.
Seis.
Três.
Sete.
Cinco, então, seu sacana. Mas tem de prometer se animar.
Dou um beijinho nos beições da Ra, ela enfia a língua na minha boca.
Tchauzinho, boneca. Passa lá amanhã. Domingo é meio devagar.
Pego a bice, puxo ele pelo ombro, nos pomos a caminho.
E se você comprasse uma garrafa de smirnof e guardasse aí nessa caixa?
Ia ferver aqui dentro junto com as pizzas, cara.
E daí? Vodka quente até que desce bem.
Meus lábios se contorcem involuntariamente ante a sugestão. Que estômago, cristo!
E sai mais barato. Três doses na paradia, digo, pagam quase um litro inteiro no mercado.
Taux meio curto, acabo condescendendo endo do do.
Promete beber só metade?
Promessa de reco do Tiro de Guerra. Ele abre dois dedos junto à testa à guisa de continência.
Não sabia que fez o Tiro.
Infelizmente.
Não foi bom?
Ele me olha extremamente sério.
Por acaso tive algo de bom na minha vida?
Rio. Tento imaginar ele moleque, de farda, cabelo raspado, um fuzil no ombro.
Fui o melhor atirador da minha turma, confidencia.
Acredito. Ele nunca mente.
Chegaux o fim do ano, organizaram um torneio entre os tiros do ABC, o melhor de cada um ia lá concorrer.
Você foi?
Não.
Por que não?
Antes da final fizeram uma pré-seleção. Sacaneei.
Como?
Cada concorrente tinha cinco tiros. Errei todos.
Putz!
Meus colegas ficaram putos. O sargento nunca mais falou comigo. Já não iam com mia cara. Me apelidaram de Soneca. Nem se preocupavam em disfarçar o escárnio quando me viam.
Olho o rosto dele, vejo aquele trejeito engraçado de memória ativa.
Pior foi um dia no plantão da guarda.
Que houve?
O Tiro ficava na Rafael Correia Sampaio, saca? Bem antes de ser transferido perto do Chico Mendes.
Hm-hm.
O plantão começava às seis da tarde. Vinte e quatro horas. Caralho, pensei, nem morto fico um dia e uma noite neste sarfócago, digo.
E...?
Em frente tinha um buteco, saca?
Saco, hehehehe.
Eram meia dúzia de coiós junto na guarda, falei, oncês fiquem aí, vou ali, já volto. Você sabe, a guarda tem um responsável, um tonho cum trapo branco no braço indicando que é o tonho mor.
Hm-hm.
O tonho mor falou, não posso deixar, tenho ordens expressas.
"Tenho ordens", mané? remedei. Ocê por um acaso tá fazendo papel de herói no seriado do doutor Kildare?
O tonho mor não sacou lhufas, naturalmente. Nem todo mundo entende minhas símiles e metáforas hollywoodianas.
Fica calmo aí, valentão. (Naquele época ainda não se usava "na sua".) Ninguém sai daqui sem minha permissão.
Os oito fuzis da guarda tavam encostados num canto do alojamento. Fui lá, peguei o meu.
Apontei pro peito dele.
Nunca mais vi palidez tão plena e repentina.
Ele começou a gaguejar. Os outros se afastaram. Não tinha motejo nenhum na minha cara.
Ca-ca-calma, um tremeu. Abaixa isso, pelamordedeus.
Engatilhei, botei o dedo indicador no gatilho. Aquelas armas eram de mil novecentos e dezesseis. Fabricadas na Holanda durante a Primeira Guerra. Dizem que hoje foram trocadas por outras mais modernas. Mas o projétil era deste tamanho.
Ele abre o indicador e o polegar, tremendo dum cartucho.
Tínhamos tido instrução de tiro, cada um de nós sabia o estrago que aquela porra podia fazer no peito dum cara. Entra um furinho de nada, sai dilacerando, abrindo uma cratera nas costas do filho da puta.
Quem estava atrás do tonho mor, saiu. Olhei os rostos, olhos esbugalhados por todo lado.
Baixei o fuzil, levei de volta pra parede e fui. Passei a noite no buteco em frente. Até me diverti um pouco cumas putas que chegaram logo depois. Voltei quando o dia começou a chegar, me evitaram de todas as formas possíveis. Fui pro alojamento, deitei, dormi. Ninguém se queixou aos superiores. Nunca mais me chamaram de Soneca, os filhos da puta.
Nesse momento chegamos no Extra, entro, saio com a garrafa de smirnof. Vai ser uma zorra este sábado à noite.

Que faço com tanta alegria?

Hoje queria não morar sozinho.
Já se passaram quase dez anos que minha ex me trocou pelo dono da empresa onde trabalhava. Pra piorar ainda mais a situação, meus quatro filhos se mudaram de casa quase na época: um foi trabalhar em outra cidade, o segundo se casou com um primo, o terceiro entrou para o Exército e foi servir no Pará e o outro atualmente está internado numa casa de "repouso".
Nesse tempo todo tive dias em que pensava que não ia suportar. Cheguei ao ponto de falar sozinho, eu, que antes achava ingenuamente que falar sozinho é coisa de louco. Certos dias evitava olhar as paredes, de medo de conversar com elas. (Pode parecer engraçado agora, mas aqueles momentos eram terrivelmente angustiantes.)
Sempre fui um devorador de livros e comecei a ler em voz alta só para ouvir minha própria voz. Mas nem conseguia mais me concentrar nos meus autores prediletos, aqueles que me acompanharam praticamente desde a adolescência. Até que um dia, de repente, quase sem me dar conta, me vi às lágrimas sentando na poltrona da sala, com O pequeno príncipe nas mãos, um livro que antes considerava literatura infantil.
Além disso sempre tinha o costume de ler dois jornais IMPRESSOS todo santo dia e também de repente deixei de me interessar pelas coisas do mundo lá de fora. Para minha própria consternação, comecei a assistir tevê. Pior, sempre detestei novelas mas acabei virando um seguidor quase canino delas e logo lá estava plantado na sala chorando diante da telinha feito um bebezão.
Peço que me desculpem por esta confidência tão íntima. Me sinto até meio ridículo falando assim como um garoto romântico.
Bem, passado aquele primeiro momento de choque, me voltei aos poucos para as comunidades de relacionamento, principalmente a orkut. (Peço que não estranhem eu tratar a orkut no feminino, mas me acostumei e hoje prefiro assim; talvez porque a imensa maioria dos membros se constitua de mulheres, não sei.)
Mas devo confessar que ando bem decepcionado com os relacionamentos online.
Nestes últimos três anos, conheci muitas pessoas na orkut (ainda não me animei a entrar no Face e provavelmente não vou; não quero nem posso perder ainda mais tempo com a vida virtual do que já perco hoje; se você não tomar cuidado, é fácil virar meio escravo do mouse e do F5).
Algumas dessas pessoas que conheci online são legais e me senti até gratificado pela oportunidade de fazer amizade com elas. Estabeleci uma forte relação com três delas e hoje somos amigos de infância, de trocarmos visitas e tomar uma cerveja de vez em quando.
Outras pessoas me decepcionaram, como já disse. Algumas parecem ter verdadeiro prazer em atrair outras só para abandoná-las depois que as cativam, seja sumindo ou, pior, te bloqueando, te ignorando como se de repente você tivesse adquirido lepra. A uma, cheguei até a enviar uma carta pelo correio, com um endereço que a pessoa tinha me dado. A carta voltou com o carimbo "Inexistente" ou algo assim. De qualquer forma acho que hoje me considero escaldado contra esses tipos. E não estou com ânimo para falar muito deles.
Concluindo, queria dizer que esta nossa convivência virtual é formidável, ainda mais para um cara feito eu que cresceu naquela remotíssima era pré-computador em que tudo era mais difícil e ao mesmo tempo mais fácil.
Tento pesar bem uma situação e outra e confesso que não sei dizer qual das duas prefiro. Às vezes tenho a sensação de que continuo sozinho com era há nove ou dez anos anos.
Por isso, repito, hoje queria não morar sozinho.
Ter uma pessoa não só para transar ocasionalmente ou passar umas horas na mesa dum barzinho. Ou que esteja só a fim de curtir. Ainda mais porque, como já faz uns tempos que não curto muita coisa fora de casa, queria uma pessoa para quem a maior curtição seja eu mesmo.
Que me aceite como sou, com minhas características, virtudes e defeitos. Que não me veja como um simples tapa-buraco, seja financeiro ou emocional. Que preze, acima de tudo, o companheirismo.
Uma pessoa para compartilhar meus pensamentos, minhas preocupações, meus temores e minhas alegrias. Para conhecer o meu passado, se interessar pela minha história pessoal, querer conhecer minha família. Para, quando nos encontrássemos em casa à noite, me olhar nos olhos, tomar minhas mãos e conversar comigo. Uma pessoa que realmente se importasse comigo, que se sentisse feliz com a minha presença e eu, feliz com a presença dela.

Salada de natau

(Lembre-se matar o porco — e calar sua língua — em primeiro lugar.)

Você.
E você.
E você.
E ela.
E ele.
E nós.
E ninguém.
Tempero a gosto.
Não é uma receita, puta que pariu.
O melhor é que ninguém se coma.
Queremos estar ainda vivos amanhã cedo.
Que pena que o tempo não para.
Que bom que cada um tenha uma cor preferida.
Só me pelo da Maria e seu banho morno.

Serdo


Precisamos fugir
Primeiro, da língua
Depois, de seu fantasma
Insepulto





Escrever sem aspas, eis minha promessa de ano-novo.
Abrir aspas eu sei, eu não sei é fechar.
Fechar parênteses eu sei, eu não sei é abrir.
Sempre vivi entre aspas. É engraçado.
Em negrito. Me embandeirando ostensivamente.
Em itálico, sendo eu mesmo assumidamente.
E assim me vejo, assim cercado
um sujeito a se carregar
aonde quer que vá
a ser o que é
o que quer que seja
Boa noite, eu disse?
Quer dizer que ainda estou aqui
A reverberar desde aquele catorze de dezembro
Lá fora, lá embaixo, lá no fundo
Tentando a inconsciência da sua presença no mundo?
Veja como nós humanos somos estranhos.
Entrementes a vida corria em outro lugar.

Estátua com cabeça

não posso dizer senão 
uma palavra
e a palavra que posso dizer
é esta que gerou o eco 
eterno que me fez 
surdo no instante em que
nasci e me faz surdo no
instante em que vivo

é a mesma palavra que 
disseram antes
de mim, a mesma que 
haverá de reverberar entre
estas paredes até o fim do
tempo

não, não posso dizer
nenhuma palavra

a palavra que posso
dizer não existe, não
tem som, não tem 
letras ou
significado

me limito a 
fechar os
olhos

Página 437


Lendo a FSP agora pouco, o Haddad liberou cento e sessenta milhão pra nova “arena” do curíntia. Pena que não conseguiu aprovar o aumento do iPTu, podia dar até um bi pro timão do coração dos paulistanos. O Haddad sabe que a copa é o que interessa, o resto não tem pressa, como dizia Goethe.
Mais. O Neymar disse uma coisa muito séria: “Não deixe escapar quem você ama”. Na hora me pareceu até que tava falando diretamente comigo. Como será que o Neymar soube que deixei quem amo escapar por entre estes meus dedos lânguidos e longos e lendários qual perereca ia ia luzidia?
Tava triste, me contristei mais. I mean, angustiado. Apreensivo. Alvoroçado. Não: nauseado. Melhor: agoniado. Ansioso. Incalculavelmente. Sim! Esperançoso. Tudo junto. Você já sentiu salada dessas num átimo (...)? (É o que os nascituros sentem, tenho certeza. Depois vamos aprendendo a negar o que vemos e experienciamos, até nos tornarmos adultos mentirosos e mistificadores), não só naquele momento tenebroso pelo que todos passamos quando duvidamos de que estar vivos é uma dádiva, seja em pesadelo, seja sob uma dessas tragédias a que estamos expostos, todos. Estou dizendo, uma constante. Puta merda, preciso abrir um parágrafo bem agora, esse comecinho parecia promissor, tenho essa dificuldade em lidar com o êxito, coisa de carcamano, o italiano é o ser mais fracassista do mundo, tema prum post futuro, me amarro em descer o sarrafo nos devoradores de massa com molho em abundância, nogentti, odeio meu nazzo pícolo e la neve del Chilimangiaro.
Por falar em coisas boas, acabei entrando numa roubada, como gostava de dizer meu bisavô, lo carcamano massimo, morto e estinto no inizio do ano.
Foi mais ou menos assim.
Como estão cientes, ando mais preocupado com o transcorrer do tempo do que o Einstein elaborando a relatividade das teorias. Vem me atazanando a aproximação do Natal. Como lhes contei outro dia, outro dia resolvi ir ter com esse sujeito que passa o dia e a noite numa mesa no canto mais sombrio do salão aqui do Bar Lacerda. Já tinham me contado que ele é poeta, então fui lá ver se podia encomendar um poema. Este ano decidi inovar. Chega de quinquilharia pra Cibele. (Como já lhes disse, estou noivo da Cibele há dezesseis anos.) Quero lhe dar alguma coisa diferente neste Natal. E o que pode ser mais diferente que um poema?
Sem problema, ele diz, aparentemente rimando sem querer. (O que, note-se, seria um sinal de alerta, não fosse eu tão distraído.)
Quanto fica? pergunto.
Pra você que é freguês do Lacerda faz anos, cinco perna.
Cinco mil? me assusto. Não é muita coisa? Sou assalariado, você sabe.
Cinquentinha, meu querido. Metade agora, metade na entrega.
Assim fizemos, assim ficou combinado. Me entregaria ontem, com tempo hábil para uma eventual revisão, correção, reelaboração.
Não sei, pode ser impressão, mas parece estar me evitando desde então e tô começando a desconfiar que me meti numa fria, como perorava minha bisavola que morreu semana passada numa festa rave perto de Guarulhos.
Até que consegui o encurralá-lo numa ida ao banheiro do Bar.
E aí? Quando vai entregar?
Depois.
Depois quando? O Natal tá aí. – Minha voz saiu esganiçada qual a dum castrati de Bach. – Se o poema não tiver pronto então, serei obrigado a presentear minha noiva c’uma assinatura da tevê a cabo. Não que vá ficar decepcionada. É fanática pela telinha. Deita no sofá e fica lá hipnotizada assistindo às imagens que desfilam indefinidamente sem formar uma narrativa que faça sentido sentimental ou intelectual, atiçando o sentido da visão e enganando o telespectador que olhar as coisas na superfície pode o aproximá-lo d'alguma significação verdadeira da vida.
O sujeito me olhou decididamente intrigado e depois duns segundos exalou com ruído áspero (ou aspereza ruidosa) todo o ar dos seus pulmões apodrecidos sob várias dezenas de marlboros todo santo dia. (Pude até sentir a aca transida de fumo.) Tava com o peito aprisionado de ansiedade, pauvre. Me surpreendi vendo que poeta sofre tanto. (Também, vai entender um coitado que se dedica a cultivar palavras numa floreira imaginária como se foram cebolinhas verdes num cantinho de horta. Era tão mais fácil e simples e seguro vender carro usado ou descolar um trampo num banco qualquer.)
Mas o tranquilizei-o: claro que nunca serei franco com a Cibele a esse ponto. Meu docinho de leite com mel na certa me daria uma daquelas descomposturas em que é craque, sabe como é, unhonas afiadas de mulher que sabe o que quer, hoje somos todos tão ciosos da nossa individualidade, nos confinamos em nosso mundinho protegidos por uma cerca elétrica em que os que tentam nos alcançar são eletrocutados enquanto fazemos de conta que somos os reis do relacionamento nos faces da vida.
Outro olhar inquieto do meu intercolutor, digo, você entendeu. Inquieto e ao mesmo tempo esquivo. Saquei, é daqueles que evitam olhar a gente nos olhos. Será assim com todo mundo? Esse é pró do sofrimento.
Ah meu amigo, se fosse sir Galahad raptava minha Cibele, a puxava ela pra sela do meu Rocinante sem rima, a levava-a pra masmorra do meu castelo onde seria mais livre do que imagina seu tenro cérebro de donzela lampeira.
Ato seguido desvio a cabeça na direção da rua para NÃO ver a reação do poeta ao meu ditirambo. Não gosto quando reagem idiossincraticamente ao meu jeito de ser e dizer.
Bem, esta é a situação no momento. Depois que cobrei o poema, o poeta tomou doril, me deixando entregue a um desassossego mais e mais agudo à medida que meu relógio rolex paraguaio conta as horas, os minutos, os segundos rumo ao Natal fatídico.
Quando me acho nesse estado de amofinação, a única saída é me empanturrar d'alguma guloseima ou quitute. Em casos mais extremos, que, como já lhes contei, são a regra e não exceções em minha atribulada existência, tenho de recorrer até a acepipes para tentar arrefecer o desalento.
Tão logo tive a ideia de remediar meu desânimo com três kg de glicose, a vitrine de delícias da dona Juçara, distinta esposa do Lacerda, lotou minhas pupilas feito ônibus da linha Pinheiros-Santo Amaro às seis da tarde duma sexta-feira pré-feriadão da Proclamação.
Rosquinha de leite! escuto minha própria voz fora de mim, exclamando como se pertencesse ao tio do Graciliano.
Nisso, o Luizinho, entregador do Bar, estaciona sua bice caloi sessenta e sete (modelo para moças, ainda desprovida do cano que conecta o selim ao guidão para que as distintas não precisassem erguer as pernas e a saia ao sentar) na calçada diante da porta do salão e me pede para vigiar seu meio de transporte enquanto vai prestar contas das entregas a dona Juçara, que toma conta do caixa.
E quem entra atrás do Luizinho (embora não parecesse que viessem juntos)? Bidu. 
Ele encosta a barriga dilatada no balcão (não fosse a pança, seria o retrato do Charlton Heston antes de subir em sua biga em Ben Hur. Vi o filme aos seis anos, nunca mais superei o êxtase da corrida de bigas. Depois fiquei sabendo que um ator morreu durante a filmagem da cena. A cinematografia atual feita à base de computador não chega na unha do dedinho, bem como a literatura de hoje atrelada à internet e o inferno da tevê. Ano passado vi umas cenas de King Kong com a indefinível e gostosérrima Naomi Watts, fiquei bobo com a pretensiosidade técnica e a indigência estética e artística, tudo feito a golpes de mouse e software. No próximo em 2020 vão dar um jeito de estuprar a donzela e esta atingir um orgasmo kingkonguiense).
Ao me ver, ele se volta rapidamente para a parede, fazendo que não me viu. (Especialidade do brasileiro que, quando não tem escapatória, abre um sorrisão pro nosso lado como se fôssemos cristo retornando da catacumba depois do sabbath.) Vai me desculpar mas tenho compromissos, penso, apertando os passos na direção do safado. O Natal taí, não posso facilitar.
E aí?
E aí?
Como vai indo a encomenda?
Hã?
O poema?
Tô no terceiro verso.
Inibo uma reação espontânea, optando por tergiversar. Manjo esses tipos. Fui vendedor de macarrão no circuito dos mercadinhos da Grande SP. Ganhei menção honrosa de vendedor do ano em 1978. Já levei muito japa dono de mercearia pra zona no fim do ano como prêmio pela preferência.
Diz os dois primeiros.
Não posso. Estão “sub lirica”.
O primeiro, então. Preciso duma garantia.
Sorry. Dá zica.
Entendo o ponto de vista do cara, não sei exatamente por quê. De repente me dá esse insight perturbador e total do que pode envolver a feitura dum poema. Tá certo. Não tô comprando assinatura da Veja, porra!
Ergo um dedo pra balconista. É a Soninha, toda dengosa e o cacete, peço um suco de melão. Me disseram que a Soninha tá dando pro poeta. Tão novinha, credo. O cara é quase sessentão. E barrigudo. E um tremendo dum pinguço.
O de sempre. Sem açúcar.
Uma vodka. Ele aproveita a oportunidade.
É por minha conta, ofereço, disposto a lhe fazer um agrado pra ver se desencanta.
Agradece cum relampejo de submissão no olhar.
Anotando meu pedido, a Soninha dá um sorrisinho pro lado dele.
Tá comendo, é? – não resisto à espicaçada.
Ele fica vermelho. (Ou se ruboriza, como dizia o primo em segundo grau do Monteiro Lobato.)
Sei qual é a desses zés-manés que se arrumam com balconistas e recepcionistas e empregadinhas em geral. Não têm peito pra encarar mulheres numa relação aberta, emocionalmente gratificante, de seu próprio nível e sua própria cultura, com quem possam dividir perspectivas e anseios sem a competitividade do mundo animal. Precisam se fingir superiores. Se sentem mais confortáveis com retirantes e comerciárias, marginais que aos olhos da classe média não têm condições de postular a papéis socialmente atraentes au au.
Soninha vem lá de trás do salão de jogos onde, dizem, habitam umas figuras barra-pesada. Vem esbanjando brejeirice pelos dentes e sedução pelos olhos.
Vem trazendo o pedido.
Brigadinho, fofa, se derrete o poeta, avançando a mão sôfrega para a bandeja, levando o copo à boca e sorvendo a vodka num só trago.
Pronto pra próxima.
Pego meu suco de melão e beberico. O poeta me olha de canto. Na certa me achando um marciano. Deve ter tomado o último suco há vinte anos, quando ainda havia alguém em sua vida que cuidasse dele. Engole a vodka e se posta de novo meio voltado pra parede, numa atitude entre ambígua e antipática.
Mais uma? incentivo.
Ele encolhe os ombros, fingindo indiferença.
Faço um sinal de vitória pra Soninha.
Agora quem olha de canto sou eu, infeliz. Sou fudido mas não além do ponto do não retorno de Nietzsche. É um sujeito inteligente, salta aos olhos. Podia ter um emprego público qualquer como tanto safado incompetente que descola uma boquinha imunda no funcionalismo. Preferiu o fogo fátuo do sonho. Ou o descompromisso suicida da vagabundice.
Soninha se reaproxima, duplicamos nossos pedidos.
Como vão as coisas? tento puxar conversa.
Ele encolhe os ombros, sem se dar o trabalho de corresponder ao meu sinal de civilidade. Ou de dissimular a má vontade. Me lembra uma época na juventude em que aspirava a ser um “independente social”. Dou graças aos céus por não ter con-seguido.
Chegam a vodka e o suco. Ele fecha os olhos e emborca o copo na boca e abre os olhos e exala. Parece relaxar. Finjo que presto atenção em algo na rua, não quero dar a impressão de que estou cuidando. De que posso intimidá-lo.
De repente desata uma sangria. Sai uma fala atropelada. Olho o rosto sem conseguir esconder que estou surpreso e ao mesmo divertido com a mudança repentina de comportamento. É fantástico o efeito do álcool no espírito dos homens.
Vai falando sem se preocupar em fazer nexo, uma barreira se rompendo por dentro, liberando matéria represada há anos. A expressão reservada cede lugar a uma careta atormentada. Os assuntos vão mudando sem aviso a intervalos de poucos segundos, saltando de acontecimentos da infância, a livros que leu ou está lendo, textos e poemas que escreveu ou está escrevendo, amadas que o deixaram por sujeitos pragmáticos ou prósperos, o apego ao álcool, a amargura de ter optado pela solidão, o papel vital da literatura em sua vida...
No momento estou vivendo o mito de Psiquê.
Como assim? pisco os olhos. Me desculpe, sou uma negação em mitologia grega.
Como de certo já ouviu falar, Psiquê significa alma em grego. E borboleta. Então pode deduzir que estou falando de transição.
Sei, faço que sim com a cabeça, estimulando que prossiga, receando perder a oportunidade de vê-lo se abrir.
Psiquê é uma bela princesa. Tão bela, que ninguém se apresenta como seu pretendente. Tudo que fazem é adorá-la. Seu pai, o rei de Mileto, vive a se perguntar se a filha um dia encontrará um marido. A angústia da dúvida é tanta, que um dia resolve consultar o Oráculo de Delfos. Como você também deve saber, todos que consultam o Oráculo de Delfos são obrigados a seguir o conselho recebido. Por isso, só os que estiverem de fato resolvidos a seguir o conselho dado pelo Oráculo devem se atrever a pedi-lo.
Hum-hum, incentivo.
O Oráculo recomenda então que o rei abandone a filha no topo d'uma montanha, onde haverá de ter um encontro com seu destino — e este será nada menos que um noivo não humano. Com a sorte lançada, só resta ao rei preparar Psiquê para sua desfortuna. E assim ele faz. Manda que vistam a filha como para o próprio funeral e a abandonem no mais alto penhasco do reino, os prantos da moça se misturam às lamúrias e aos lamentos de toda corte e de todos os súditos.
O que o rei não desconfia, porém, é que, depois de ser deixada à própria sorte, Psiquê acaba rumando para um vale encantado onde encontrará uma casa e verá atendidas suas necessidades. Na primeira noite seu misterioso noivo entra pela janela, a ama e, ao raiar do sol, parte sem que Psiquê jamais consiga vê-lo. E assim acontece noite  após noite.
Hum-hum...
Psiquê tem irmãs mais velhas, que, a julgando morta, visitam o penhasco para externar seu luto. Ao tomar conhecimento disso, Psiquê suplica ao noivo que a deixe ver as irmãs. O noivo tenta resistir, argumentando que não seria conveniente. Ante a insistência de Psiquê, porém, finalmente cede, desde que ela se comprometa a não revelar o segredo que existe entre ambos. E acrescenta: “Você está grávida. Se guardar o segredo, a criança será um deus. Se o revelar, será um mortal.” Dizendo assim, ele torna a partir, permitindo a vinda das irmãs.
Estas visitam Psiquê em duas ocasiões e durante suas conversas acabam sugerindo que Psiquê desposou um monstro. Psiquê fica aterrorizada com a ideia. “Oh, meu Deus, talvez tenham razão. Que devo fazer?” E as irmãs a instruem: “Esconda uma lamparina e uma faca sob o cesto ao lado da cama. Depois que seu noivo vier e fizer amor e adormecer, pegue a lamparina e ilumine o rosto dele. Se for mesmo um monstro, corte-lhe a cabeça com a faca!”
Assim procedendo, Psiquê termina por descobrir que seu desconhecido noivo e amante é Eros, deus do amor e filho de Afrodite, deusa da beleza. Afrodite está furiosa por uma humana ter lhe roubado o privilégio de ser a única adorada pela imensa beleza de seus traços, a ponto de Afrodite sentir-se desprezada. Sequiosa por vingança, a deusa obriga o filho a lhe prometer que irá punir Psiquê. Para isso, ele deve ferir a noiva com flechadas. Psiquê, em consequência, se apaixonará pelo homem mais torpe e indigno existente no mundo.
Sem escapatória, Eros se compromete a realizar o desejo da mãe. Acontece, porém, o imprevisto: ao ver Psiquê sob a luz da lamparina ele é invadido pela paixão. Temeroso de revelar a verdade a Afrodite, mantém às escondidas o caso de amor com Psiquê.
Mas então ocorre outro terrível golpe do azar. Na noite em que Psiquê decide descobrir a verdadeira identidade de seu noivo erguendo a lamparina para lhe iluminar o rosto, uma gota de óleo espirra da lamparina e cai no ombro de Eros. Despertando, ele é tomado de raiva e a recrimina por destruir o idílio que estavam vivendo. Sendo deus e dotado de asas, Eros alça voo e parte, magoado.
Ao se ver abandonada, Psiquê se entrega ao desespero e corre em direção ao rio que corre próximo de sua casa, se jogando nas águas, disposta a dar um cabo à própria vida. O rio, todavia, a lança de volta para a terra. Então Psiquê inicia uma peregrinação a diversos templos de deusas, implorando a ajuda delas. Porém, estas se recusam a interceder com Afrodite a seu favor.
Ante o desespero da donzela, a deusa da beleza se dispõe a perdoá-la. Só que, para obter seu perdão, Psiquê terá de cumprir quatro tarefas.
A primeira é classificar todas as sementes que estão amontoadas em uma sala. De início a reação de Psiquê é se entregar à angústia. Como poderá se desincumbir de tão impossível missão? se pergunta, sentada entre as sementes. De repente seus olhos se maravilham com o que veem: uma legião de formigas começa a separar as sementes, uma a uma. E, quando nasce o dia, estão todas organizadas por tamanho e tipo.
Quando volta e vê que a donzela realizou a contento a tarefa estipulada, Afrodite se irrita e lhe passa a segunda: deve recolher um punhado de pelugem dourada dos carneiros que pastam sob o sol e trazê-lo para Afrodite. Sem grande esforço, Psiquê atende à ordem recebida.
A terceira tarefa é encher uma jarra de cristal com a água dum riacho que corre do rio Estige em direção ao mais alto penhasco. Além de o rio cruzar o mais inacessível lado da montanha, é ladeado por dragões-víboras que a ameaçam “Não se aproxime!” E Psiquê pensa: “Não serei capaz de vencer esta tarefa!”. Nisso surge no céu uma ave. É uma águia. A águia de Zeus, que apanha a jarra das mãos de Psiquê, a leva rumo ao rio e retorna, entregando-a na volta cheia d'água à moça.
Para a última tarefa, Afrodite ordena a Psiquê que vá ao submundo, encha uma caixa vazia com a pomada da beleza de Perséfone, a deusa do inferno, e a traga para ela. Psiquê se deixa desanimar, considerando que a única forma de ir ao submundo é pelas mãos da Morte. Assim, sobe na torre mais alta, preparada para se atirar. Mas, pouco antes do último gesto, a torre lhe ensina como se livrar da dificílima incumbência sem precisar recorrer ao suicídio.
No caminho de volta uma ideia ocupa obsessivamente seus pensamentos: seus infortúnios começaram antes de tudo em razão de seu amor por Eros. E ele não a quer. Para que volte a desejá-la, pensa Psiquê, ela precisa aumentar ainda mais sua beleza. Assim, abre a caixa. Só que não havia ali beleza alguma e sim esquecimento e o mais profundo dos sonos. E ela então adormece instantaneamente.
Ao ver que Psiquê sucumbiu a um sono tão intenso que parece estar morta, Eros vai ao seu encontro, despertando-a. Leva-a para o Olimpo e anuncia aos deuses e às deusas que está finalmente disposto a se casar com sua bela noiva. Quando a beija, Psiquê acorda e dá à luz.
É uma menina, que os pais batizam com o nome de Alegria.
Ele encerra a narrativa com o olhar absorto nos ladrilhos da parede.
Ainda entretido com o relato, não me dou conta de que chegou ao fim. Podia passar a noite a escutá-lo falando sobre o mito. Soninha passa pelo lado de dentro do balcão e pergunta se queremos outra rodada. Faço que não. O poeta faz que sim.
Soninha traz a vodka e olho para o meu copo de suco vazio e meio que me arrependo de não ser alcoólatra. Ou poeta. Ou ambos. Parece haver algo recompensador por trás desse mundo encantado e dos homens e mulheres que nem imagino por que resolvem se dedicar à busca do fogo-fátuo. Por um segundo vislumbro o grande vazio da minha vida, que dedico e dediquei à procura de algo ou alguém que cumpra por mim minhas “tarefas”. Pelo segundo seguinte lamento dolorosamente viver nesta época que não se cultivam mais mitos, apenas se urdem mentiras.
Você acha que este mundo que fizemos está errado além da recuperação?
Ele dá de ombros. Tá na cara que acha. Mas este mundo que fizemos não parece ser sua maior preocupação.
Fizemos é tão imensamente amplo. Certamente fiz minha parte. Sujeitos como ele fizeram?
Pra minha sincera alegria, ele está sob euforia etílica. Uma cintilação em suas pupilas atesta sua disposição de continuar. Não duvido que falaria até o fim dos tempos se pudesse preservar esse estado de sobre-excitação.
Ouso uma pergunta direta sobre o que acabou de narrar: como, em sua opinião, nos situamos dentro dele?
Que mitos vivemos hoje em dia?
Ele me olha sério, um olhar não cúmplice, uma seriedade perturbadora. Por um instante receio estar diante de apenas mais um ébrio que se imagina em contato c’um espírito do candomblé capaz de proezas divinas. Testemunhei esse olhar de predestinado fajuto em muitos butecos vida afora.
Já capitulava ao tédio quando ele acrescenta:
Esse é o mundo que habitamos. E esses somos nós. Crisálidas. Crisálidas dotadas de alma. Precisamos estar prontos para a transição — abandonar o conhecido, desenvolver nossa capacidade de amar. Simbolicamente, a lamparina de Psiquê representa a vontade que cada um de nós tem de enxergar nossa própria situação e de ver quem são de fato as pessoas com quem vivemos e aquelas com quem pretendemos estabelecer uma relação forte. E sua faca significa nossa capacidade de pôr um fim a uma relação indesejada, cortando os laços que nos prendem a ela.
Então, indiferente à minha presença, se pergunta, tudo poderia ser tão simples, não é mesmo?
Vendo minha decepção, sorri. Tentei esconder, vejo que foi em vão.
É o que fazemos o tempo todo, não? Temos medo que os outros vejam o que sentimos. E por isso mesmo temos medo de nós mesmos vermos o que sentimos.
Faço que sim.
Soninha vem reabastecer os copos. Ele confirma. Recuso.
Está todo mundo e seu cachorrinho de estimação preocupado em se poupar, continua. Todos debruçados sobre esse infernal tabuleiro de xadrez que se chama Facebook. Não há ninguém com coragem suficiente para abrir seu próprio caminho, embora todos se julguem com tamanho controle de seus destinos. É um controle fictício, que deriva do hábito de mexer o mouse e apertar as teclas. Só que comandar o mouse ou o teclado não é o mesmo que comandar os rumos da sua vida. 
Então me lembro dumas fantasias que desde a adolescência jaziam soterradas sob os caminhos que tomei pressionado pelo pragmatismo. Por um terceiro segundo sinto um frio no estômago, temendo que aquela angustiante indecisão juvenil volte a se apoderar de mim. Tento me esquivar rapidamente da pergunta óbvia, mas não dá tempo: quer dizer que todo esse tempo em que me imaginava adulto estava só me enganando?
Me recuso a responder. Sou, afinal, o diretor do meu próprio filme. Pelo menos essa capacidade discricionária de nos auto-enganar a natureza nos deu.