Dá tempo ainda

Vaux saindo da vila com a bice a tiracolo em direção à pizzaria para minhas primeiras entregas de sábado, dou com a Raimunda aos cochichos com o poeta, digo oi e sigo sem querer assuntar, a Ra abre aquele sorrisão de mil dentes de mulher oferecida em paz com os próprios hormônios sexuais, me convidando a um pit-stop.
Ela tem um papelzinho entre os dedos.
Vem cá, fujão. Ela me puxa, me dá um selinho, hm, que perfume de excreções à flor da pele. Quanto tempo. Não passa mais pra gente puxar um lero né?
Ah querida, essas entregas com bicicleta tão me matando. Chego, vou direto pro quarto e desmaio. Nem tiro a roupa.
E aí? — me dirijo ao poeta. Tá xucro, pra variar. Cabisbaixo. Não me vê. Não me escuta.
Interrogo a Ra c'um movimento das sobrancelhas. Ela faz negativo com o polegar.
Que papel é esse? pergunto.
Propaganda duma taróloga que deixaram ontem no portão.
Tá pensando...? — indico o poeta com o olhar.
Só. Meu neguinho aqui tá carecendo de ajuda braba. Profissional.
Faço que sim.
Acha que tem jeito?
Tudo tem jeito neste mundo de Deus, fio! Dona orgulhosa nenhuma vai botar meu amiguinho aqui pra baixo. Vai não senhora.
Me entrega o papeleto.
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Parece legal, devolvo a progapanda, digo, à Ra, que enfia no sutiã.
E o Osório, tempão que não vejo, me lembro de perguntar. A Ra vale um tiquinho de formalidade.
Tá com o pastor.
No culto a esta hora?
Não. Morando com o pastor.
Quer dizer que...? não me atrevo a terminar a pergunta.
Hm-hm. Desde o mês passado.
Puta merda! não consigo evitar a admoestação ão ona. Todo mundo deixa todo mundo na mão hoje em dia. Sacanagem!
Foi melhor assim, ela enverga novo sorrisão. Tava cansando do Ô. Muito mole pro meu gosto. Pisca um olho matreiro.
Oncê precisa é dum batalhão, mia flaux! rio.
O poeta solta um suspiro fundo e sentido. Tá precisado de atenção.
Pego ele no braço.
Cara, vamo dar um rolê de entrega comigo. Quem sabe a gente cruza cuma dona solitária por aí. Sábado à noite tá assim de mulher necessitada de homem.
Ele puxa o braço, emburrado.
Não desisto.
Vamo lá, meu! Sai dessa tristeza mórbida, pelamordedeus!
Só se — ele murmura.
Tá bom — aceito. Umazinha.
Cinco.
Duas.
Seis.
Três.
Sete.
Cinco, então, seu sacana. Mas tem de prometer se animar.
Dou um beijinho nos beições da Ra, ela enfia a língua na minha boca.
Tchauzinho, boneca. Passa lá amanhã. Domingo é meio devagar.
Pego a bice, puxo ele pelo ombro, nos pomos a caminho.
E se você comprasse uma garrafa de smirnof e guardasse aí nessa caixa?
Ia ferver aqui dentro junto com as pizzas, cara.
E daí? Vodka quente até que desce bem.
Meus lábios se contorcem involuntariamente ante a sugestão. Que estômago, cristo!
E sai mais barato. Três doses na paradia, digo, pagam quase um litro inteiro no mercado.
Taux meio curto, acabo condescendendo endo do do.
Promete beber só metade?
Promessa de reco do Tiro de Guerra. Ele abre dois dedos junto à testa à guisa de continência.
Não sabia que fez o Tiro.
Infelizmente.
Não foi bom?
Ele me olha extremamente sério.
Por acaso tive algo de bom na minha vida?
Rio. Tento imaginar ele moleque, de farda, cabelo raspado, um fuzil no ombro.
Fui o melhor atirador da minha turma, confidencia.
Acredito. Ele nunca mente.
Chegaux o fim do ano, organizaram um torneio entre os tiros do ABC, o melhor de cada um ia lá concorrer.
Você foi?
Não.
Por que não?
Antes da final fizeram uma pré-seleção. Sacaneei.
Como?
Cada concorrente tinha cinco tiros. Errei todos.
Putz!
Meus colegas ficaram putos. O sargento nunca mais falou comigo. Já não iam com mia cara. Me apelidaram de Soneca. Nem se preocupavam em disfarçar o escárnio quando me viam.
Olho o rosto dele, vejo aquele trejeito engraçado de memória ativa.
Pior foi um dia no plantão da guarda.
Que houve?
O Tiro ficava na Rafael Correia Sampaio, saca? Bem antes de ser transferido perto do Chico Mendes.
Hm-hm.
O plantão começava às seis da tarde. Vinte e quatro horas. Caralho, pensei, nem morto fico um dia e uma noite neste sarfócago, digo.
E...?
Em frente tinha um buteco, saca?
Saco, hehehehe.
Eram meia dúzia de coiós junto na guarda, falei, oncês fiquem aí, vou ali, já volto. Você sabe, a guarda tem um responsável, um tonho cum trapo branco no braço indicando que é o tonho mor.
Hm-hm.
O tonho mor falou, não posso deixar, tenho ordens expressas.
"Tenho ordens", mané? remedei. Ocê por um acaso tá fazendo papel de herói no seriado do doutor Kildare?
O tonho mor não sacou lhufas, naturalmente. Nem todo mundo entende minhas símiles e metáforas hollywoodianas.
Fica calmo aí, valentão. (Naquele época ainda não se usava "na sua".) Ninguém sai daqui sem minha permissão.
Os oito fuzis da guarda tavam encostados num canto do alojamento. Fui lá, peguei o meu.
Apontei pro peito dele.
Nunca mais vi palidez tão plena e repentina.
Ele começou a gaguejar. Os outros se afastaram. Não tinha motejo nenhum na minha cara.
Ca-ca-calma, um tremeu. Abaixa isso, pelamordedeus.
Engatilhei, botei o dedo indicador no gatilho. Aquelas armas eram de mil novecentos e dezesseis. Fabricadas na Holanda durante a Primeira Guerra. Dizem que hoje foram trocadas por outras mais modernas. Mas o projétil era deste tamanho.
Ele abre o indicador e o polegar, tremendo dum cartucho.
Tínhamos tido instrução de tiro, cada um de nós sabia o estrago que aquela porra podia fazer no peito dum cara. Entra um furinho de nada, sai dilacerando, abrindo uma cratera nas costas do filho da puta.
Quem estava atrás do tonho mor, saiu. Olhei os rostos, olhos esbugalhados por todo lado.
Baixei o fuzil, levei de volta pra parede e fui. Passei a noite no buteco em frente. Até me diverti um pouco cumas putas que chegaram logo depois. Voltei quando o dia começou a chegar, me evitaram de todas as formas possíveis. Fui pro alojamento, deitei, dormi. Ninguém se queixou aos superiores. Nunca mais me chamaram de Soneca, os filhos da puta.
Nesse momento chegamos no Extra, entro, saio com a garrafa de smirnof. Vai ser uma zorra este sábado à noite.

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