Libelo

Quem se lembra de Sérgio Sampaio?

Come sopra

Você não gosta de mim. Não gosta de mim faz tanto tempo, que enfim decidi lhe explicar. Pois você apenas pensa que sabe por que não gosta de mim. E tem várias razões para isso. Todas erradas. Legítimas, cada uma delas, até mais que suficientes - se fossem verdadeiras. Eu também não gostaria de alguém que me desse razões do tipo que dou a você. Mas, repito, erradas. As razões por que você não gosta de mim são outras. Ou melhor, outra - no singular. Quem diria? Uma unicazinha. De que, imagino, você sequer desconfia. E que nunca descobriria se eu não decidisse vir aqui lhe dizer. Pois não se trata de razão que se veja por aí todo dia. Essa é especial. Por isso quero lhe explicar.

Não pense que com isso pretendo obter sua simpatia. Ou ganhar seu perdão. Você nunca vai me perdoar, bem sei. Pois o que sou é imperdoável. Para pessoas como você. Para pessoas de bem com a vida, para pessoas que nasceram pra ser felizes. Eu lhe compreendo. E aprendi a lhe aceitar. Foi duro mas aprendi. E também estou ciente de que você não me compreende. Talvez continue a não me compreender mesmo depois da minha explicação. Admito, o que estou prestes a alegar em minha defesa é difícil de engolir. Eu, no seu lugar, provavelmente não aceitaria. Me pondo na sua pele, imagino como deve ser. Perseguir a felicidade a qualquer custo não é mole. A pessoa acaba ficando assim.

Mas o que interessa é que você não gosta de mim. E vou lhe dizer por quê:

Eu morava dentro da cabeça de minha mãe. Eu era uma cabeça. Uma cabaça. Uma cabaça gigante. Tinha por membros arremedos de pernas e braços. Se meus membros eram atrofiados e inúteis - tanto que se assemelhavam a penugem -, minha cabeça-cabaça já nasceu hipertrofiada. Na maior parte do tempo estava atulhada de seres que lembravam remotamente ciganos, acrobatas, condutores de charrete e cobradores de ônibus - todos tão grandes, que só os cordões umbilicais que os ligavam aos pensamentos de minha mãe cabiam dentro de mim. Assim, os umbigos eram a única imagem que eu podia ter deles.

Minha mãe sempre foi só pensamentos e impressões e divagações e delírios e outras entidades intangíveis do tipo. Tendo sido essa minha primordial herança, pude chegar aos extremos que vim a ser quando adulto. Por essa mesma característica, minha mãe não desenvolveu bem o corpo. Eu tampouco. Meus pseudomembros, que não passavam de apêndices rudimentares, só serviam para me estorvar. Nas pontas das minhas perninhas lastimavelmente raquíticas pés praticamente não havia. Meus bracinhos, quem os visse mal os reconheceria como tal. Em minhas diminutas mãos, que estavam mais para as patinhas grotescas dum leproso, não havia dedos, mas apenas caroços no lugar em que aqueles poderiam ter crescido. A mesma degeneração física, porém, não acontecia com minha mãe. Os membros dela eram razoavelmente bem crescidos. Até lembro vez ou outra ter vislumbrado um pênis pendurado entre suas pernas másculas. Era um pênis semiarmado, extremamente viril em suas potencialidades sensuais, em suas sugestões eréteis, mastro todopoderoso que os pensamentos dela viviam tentando introduzir dentro da minha cabeçorra. Lembro também que a minha mãe, embora feita quase exclusivamente de pensamentos e impressões e divagações e delírios, não tinha espírito. Nem alma.

A casa-cabeça de minha mãe onde eu morava era provida de paredes de dores que mudavam o tempo todo de localização e a cada instante, de altura, cor e textura. Os pensamentos dentro da cabeça de minha mãe permitiam que eu tivesse um quarto, mas este, quarto, em geral era apertado demais e só podia abrigar meus membrozinhos atrofiados. A cabaçona não tinha escolha senão jazer pensa na sala, onde toda manhã substituíam os móveis e toda tarde chegam outros, novos, às vezes inauditos, sala em cuja parede do fundo alguém instalara um enorme relógio de pêndulo que marcava o ritmo das minhas pulsações doloridas com seu tique-taque tirânico, ou no corredor, por onde passava uma interminável fila de pessoas que eu nunca soube quem eram ou para onde iam ou de onde voltavam. Eu-cabeça, por outro lado, pendia grande demais e por isso nunca se/me acomodava direito dentro da minha casinha.

No meio do meu rosto gigante havia um narigão igualmente gigante, se projetando saliente de mim qual a chaminé morta duma fábrica-fantasma, que me obrigava a deixar para fora da janela do meu ínfimo quartinho.

As condições em que eu vivia, naturalmente, me deixavam ansioso, às vezes quase angustiado, e por conseqüência meu narigão-chaminé morta vivia inspirando e exalando longos e ruidosos suspiros de desalento, contaminando a atmosfera circundante com sua fumaça insalubre invisível e inodora. O tempo que eu passava em meu miniquartinho, porém, era relativamente curto, apenas o suficiente para tirar uma soneca de dois segundos. Nunca podia dormir mais do que isso, pois a cabeça-casa de minha mãe não parava de sacolejar e rodopiar e os paquidérmicos pensamentões dela não paravam de trombar em mim, me esmagando e aplastrando contra o chão, me forçando a zanzar endoidecido pelas trevas daquela masmorra onírica, fazendo de mim um nômade interno para ela e ainda hoje não sei exatamente o que para mim.

O que mais me deixava zonzo era que eu morava dentro da cabeça de minha mãe mas não sabia. Tudo talvez tivesse sido diferente se soubesse. Mas isso não passa duma especulação, claro. Aqui, não há como determinar a verdade. E não há como determinar outras possíveis ilusões. Hoje só posso fantasiar meu passado. E esse tipo de fantasia é mais perigoso do que fantasiar o futuro. Pois se algo eu sabia, mesmo em minha abissal ignorância vagando no interior da minha cabeçorra descomunal, era que o próprio futuro é uma fantasia. Ignorava morar dentro da cabeça dela e desconhecia praticamente tudo o mais - quem eu era e o que fazia ali, quem ela era e por que me tinha dentro de sua cabeça, se fora ela quem me pusera ali ou se eu entrara por minha conta, se seria melhor estar em outro lugar - dúvidas amenas de tal natureza.

Nada que eu seja ou veja ao meu redor hoje me garante que as coisas não sejam mais como eram antes.

Outras dúvidas que me atormentam ainda hoje incluem:

não sei se fui gerado no útero de minha mãe e só depois transferido para a cabeça dela ou se o útero de minha mãe fica no interior da cabeça dela ou se fui gerado diretamente dentro da cabeça dela ou não é nada disso;

não sei se ainda hoje moro dentro da cabeça de minha mãe. Com base em certos sintomas psíquicossomáticos, tendo a achar que não. Mas não estou certo;

não sei se estou morto;

não sei se minha mãe está morta. Não sei se sempre esteve morta. Não sei se nasceu morta.

Me caberia ainda explicar que naquela época (?) eu era capaz de expandir e encolher dentro da cabeça de minha mãe e dentro da minha própria cabeça mas não dentro do meu quartinho de onde eu jamais saía e de onde, acho, nunca saio até hoje.

E não poderia omitir que meu mundo era horizontal, feito apenas de largura, comprimento e, ó mãe, uma insondável profundidade.

Teria também a acrescentar que onde eu morava não havia um espelho sequer e até hoje não tenho idéia das minhas próprias feições, nem me interesso por ter.

Por fim, restaria falar dos arredores, que poucas vezes ousei explorar e cujas lembranças me dóem além do exprimível e de que não falarei nem hoje nem nunca.

E assim concluo minha defesa. A meu ver, o que expus é suficiente para explicar por que você não gosta de mim.

Agora você talvez compreenda. Eu, no seu lugar, acho que compreenderia. Mas não estou certo.

Absurdo fogão 4 bocas

O Zé-Maioria tende à moderação. O Zé-Maioria que não está nas cadeias, nos hospícios, na Cracolândia ou na Antárdida estudando pinguim. O Zé-Maioria goza no meio das calças quando depara com outro Zé-Maioria moderado. Taí uma coisa que me encafifa. O distinto por certo conhece um jornalista, uma celebridade, um político desse jaez. Todo Zé-Maioria enche a boca e cospe elogioso: o Zé-Maioria é que é equilibrado. A Maioria-José tem crédito, afinal se mostra ponderada mesmo quando tá numa sinuca.

O disgramado que não se encaixa no Grande Molde do Equilíbrio, na exata contrapartida, esse é olhado com aqueles olhões que os Zés-Maioria olham um primata no zoológico. Se der mole, é capaz de passar ridículo: tu viu o Zé-Mané? Sujeito mais destemperado, seu. Diz tudo que lhe passa pela cabeça e um tanto mais. E lá vai o Zé-Mané tomar ferro na vida porque os doutores Zés-Maioria e as primeiras-damas Maioria-Josés decretaram a lei do aplomb.

Tu sabe, a política da moderação se ajusta bonitinho dentro dessa invenção dos velhacos chamada marketing pessoal. O panaca equilibrado ganha a confiança dos outros panacas equilibrados e acaba subindo na vida exatamente porque é um babaca cauteloso morno e insosso.

A tribo dos prudentes perdoa muitos dos desvios de conduta. Toleram que o coronelzão da política roube uns milhõezinhos, desde que não deixe pistas óbvias demais. Ao gambé pé-de-chinelo, que cometa abuso de autoridade ou desça a mão na orelha dum maconheiro, desde que as câmaras da imprensa não flagrem o delito ou o safado não morra no ato. O senhor Grotesco Juiz tem licença para acobertar poderosos e meter manés no xilindró, desde que o poderoso seja simpático e a poderosa, bonitinha, e que o mané, um primitivo irrecuperável sem noção de moda ou estética. 


Mas aquele que se indigna que a covardia seja a norma, esperneando que os manda-chuvas tenham posto tudo de ponta-cabeça; aquele que se exaspera vendo a cada dia crescer o número de humilhados deixando-se bovinamente espezinhar sob a maviosa empulhação da propaganda do depurador de ar de banheiro, esbravejando que em seus amargos delírios sonha com o dia em que a turba deitará os palácios por terra, martelando-lhes na cachola a toada infernal que eles também podem ser felizes se aceitarem o mundo do jeito que este lhes é oferecido, bem, tu sabe tanto quanto eu, são eles que nos governam a todos. Todas as atrocidades são cometidas por esses equilibrados ou sob seus auspícios. Bem diante das nossas bem-compostas fuças.   

É meu

Na tarde que não ouvia
prenunciando a mais terrível das noites
escutei a voz que não existia a cantar
a mais atroz das minhas dores.

No momento que não havia
peguei tuas mãos nas minhas
sentindo teu calor que não sentia.

Então lembro Pessoa
Um  Pessoa remoto
indigno da equiparação.
Sem a riqueza de sua pobreza
e o estrondo de seus oxímoros. 

Um Pessoa tão desfigurado
que só mesmo um filho
falso deserdado
podia reconhecer. 

Iniciando a operação



– Começa exatamente como termina – dito, microfone na mão, cara de útero feliz. – Os eventos se desenrolam até a palavra que ocupa ordinalmente a posição central no livro. Precisão matematicamente determinada. Depois dessa, eventos, sentenças e parágrafos sofrem reversão, retornando inversamente simetricamente até o restabelecimento virtual da primeira frase. E sabe que é? Nada gratuito. Aleatório. Tudo se encaixa. Programa de computador. Se você tira uma palavra a coisa desaba. Quer definição? Então vai: desafio. Irresistível. E engraçado. – Passo o microfone a Fred, que o coloca em seu suporte no painel do Miata.
– Você sempre detestou essa gente – Fred diz. – Por que  ajudar?
– Somos solidário. Okay, muitos deixam de lado seu ideal. Só pensam em comer brócolis e germe de trigo. E numa conta bancária abarrotada.
– O que nos irrita é esse cosmopolitismo. Parecem relações-públicas.
– Somos refugiado. Dê aqui o microfone de novo. – Pigarreio e disserto. – Estamos localizado entre o Céu e o Inferno. Oeste e Sul. Ocidente e Oriente. Inglês e espanhol. Rio Grande do Sul e a Coisa Morna. Brancos e negros. Portugueses e índios. Cuzcuz e biguemaques. Nosso sonho secreto é morar em Luxemburgo. Estamos no meio dum incessante fogo-cruzado que nos ensurdece e que nos impede de escutar. Eternamente espremidos entre ontem e amanhã. O ontem não passa, o amanhã nunca chega. Nos consideramos mais racionais, mais profundos, mais próximos a deus que hindus, muçulmanos, budistas e protestantes. Sobretudo estes últimos, com sua falas mansas e higiênicas mãos branquinhas que nos cagamos de medo de tocar. Somos os proprietário por excelência dos mais belos atos de amor e portanto do reino dos céus.
Os olhos olham Fred, que vai fazendo que sim com a cabeça. Prossigo:
– Mas algo cresceu entre nós de que não nos se deu conta. Uma flor. Flor inodora, incolor, brotada no jardim que não nos pertence. Mas a ela dedicamos o pouco de diligência que nos foi facultado. Não descuidamos de adubá-la, aguá-la, não queremos que deixe nosso mundo. E o corpo fica aqui parado à espera que desabroche, a flor que a ideia não sabe existir. Somos profundamente certo. Profundamente certo. – Devolvo o microfone a Fred, que o encaixa no suporte.
– O importante é não fazer concessões – ele diz. – Custe o que custar.
– Nunca fez-se. Não vamos fazer agora. Toque a fita mais uma vez.
Fred tira a fita que eu acabara de gravar, insere outra no gravador, pressiona a tecla rewind e depois play. A voz de Giraldi torna a ocupar o compartimento de passageiros do Miata.
“A partir de agora nada mais acontecerá. Ao longo de todos os milênios que já vimos nos dedicamos a desenvolver essa fantástica capacidade de organização que temos hoje. Para quê? Para depletar...”
– Depletar...
“...as reservas disponíveis.”
“Nunca fomos tão bem-treinados, dotados e capazes. Finalmente derrotamos deus.”
– Derrotamos nossa própria natureza...
“Derrotamos nossa própria natureza? O homem sempre primou pelo hiato entre suas palavras e suas ações. Hoje estamos convicto, cientificamente convicto, de ser esse o vazio de que nos queixamos desde sempre.”
– Que não enxergamos.
“Eis a flor do vazio. Que não enxergamos. Que viceja em nossos corações. Que chegou a hora de decepar.”
– Pode desligar.
Os olhos olham para o carro ao lado e indico com um gesto de cabeça:
– Olha ela aí.
– Ela mesma.
– Ordens são ordens.
Fred apanha o telefone e disca. Alguns segundos depois os olhos vêem a meninota ao volante do outro carro atender.
– Olá. Como estás? – Fred diz com sotaque colombiano. – Si. Si. Nos conoscemos na buate, te recuerdas? Bailamos la rumba por la noche. Me deste tu teléfono. No te recuerdas pero si. Estábamos eu e mi amigo paseando por estas partes quando los ojos miran al lado e qui veo? Mira, no es Izildita? pregunto e mi amigo contesta, si, ela. Si, estamos bem de tu lado. Mira.
A moça olha em nossa direção. O rosto se ilumina e ela acena.
– Encoste o carro ali adiante. Vamos a bater un papito.
Alguns minutos depois estamos os três no Miata, Fred sentado no banco de trás com Izildinha, dizendo tengo un barato muy rico,  Izildinha respondendo, deixa eu experimentar. Enxarco um chumaço de estopa em clorofórmio e passo a ele. Fred imobiliza os braços da moça e pressiona a estopa contra o rosto dela, cobrindo a boca e o nariz. Quando a Izildinha desmaia Fred a ajeita no banco. Sai do Miata, dirige-se ao carro da Izildinha parado à frente, entra, dá partida e arranca. Giro a chave de ignição do Miata e seguimos atrás.
Quarenta e cinco minutos depois estamos no labirinto do ipsius ego. Atrás do espelho observamos Izildinha, filha de Norberto Coelho, elogiadíssimo escritor da atualidade, autor dos mais mirabolantes thrillers. A menina está prestes a ser…
Bem, agora um desses escritores abastados, cafonas e preguiçosos vai ver com quantas emoções se faz um romance.