Iniciando a operação



– Começa exatamente como termina – dito, microfone na mão, cara de útero feliz. – Os eventos se desenrolam até a palavra que ocupa ordinalmente a posição central no livro. Precisão matematicamente determinada. Depois dessa, eventos, sentenças e parágrafos sofrem reversão, retornando inversamente simetricamente até o restabelecimento virtual da primeira frase. E sabe que é? Nada gratuito. Aleatório. Tudo se encaixa. Programa de computador. Se você tira uma palavra a coisa desaba. Quer definição? Então vai: desafio. Irresistível. E engraçado. – Passo o microfone a Fred, que o coloca em seu suporte no painel do Miata.
– Você sempre detestou essa gente – Fred diz. – Por que  ajudar?
– Somos solidário. Okay, muitos deixam de lado seu ideal. Só pensam em comer brócolis e germe de trigo. E numa conta bancária abarrotada.
– O que nos irrita é esse cosmopolitismo. Parecem relações-públicas.
– Somos refugiado. Dê aqui o microfone de novo. – Pigarreio e disserto. – Estamos localizado entre o Céu e o Inferno. Oeste e Sul. Ocidente e Oriente. Inglês e espanhol. Rio Grande do Sul e a Coisa Morna. Brancos e negros. Portugueses e índios. Cuzcuz e biguemaques. Nosso sonho secreto é morar em Luxemburgo. Estamos no meio dum incessante fogo-cruzado que nos ensurdece e que nos impede de escutar. Eternamente espremidos entre ontem e amanhã. O ontem não passa, o amanhã nunca chega. Nos consideramos mais racionais, mais profundos, mais próximos a deus que hindus, muçulmanos, budistas e protestantes. Sobretudo estes últimos, com sua falas mansas e higiênicas mãos branquinhas que nos cagamos de medo de tocar. Somos os proprietário por excelência dos mais belos atos de amor e portanto do reino dos céus.
Os olhos olham Fred, que vai fazendo que sim com a cabeça. Prossigo:
– Mas algo cresceu entre nós de que não nos se deu conta. Uma flor. Flor inodora, incolor, brotada no jardim que não nos pertence. Mas a ela dedicamos o pouco de diligência que nos foi facultado. Não descuidamos de adubá-la, aguá-la, não queremos que deixe nosso mundo. E o corpo fica aqui parado à espera que desabroche, a flor que a ideia não sabe existir. Somos profundamente certo. Profundamente certo. – Devolvo o microfone a Fred, que o encaixa no suporte.
– O importante é não fazer concessões – ele diz. – Custe o que custar.
– Nunca fez-se. Não vamos fazer agora. Toque a fita mais uma vez.
Fred tira a fita que eu acabara de gravar, insere outra no gravador, pressiona a tecla rewind e depois play. A voz de Giraldi torna a ocupar o compartimento de passageiros do Miata.
“A partir de agora nada mais acontecerá. Ao longo de todos os milênios que já vimos nos dedicamos a desenvolver essa fantástica capacidade de organização que temos hoje. Para quê? Para depletar...”
– Depletar...
“...as reservas disponíveis.”
“Nunca fomos tão bem-treinados, dotados e capazes. Finalmente derrotamos deus.”
– Derrotamos nossa própria natureza...
“Derrotamos nossa própria natureza? O homem sempre primou pelo hiato entre suas palavras e suas ações. Hoje estamos convicto, cientificamente convicto, de ser esse o vazio de que nos queixamos desde sempre.”
– Que não enxergamos.
“Eis a flor do vazio. Que não enxergamos. Que viceja em nossos corações. Que chegou a hora de decepar.”
– Pode desligar.
Os olhos olham para o carro ao lado e indico com um gesto de cabeça:
– Olha ela aí.
– Ela mesma.
– Ordens são ordens.
Fred apanha o telefone e disca. Alguns segundos depois os olhos vêem a meninota ao volante do outro carro atender.
– Olá. Como estás? – Fred diz com sotaque colombiano. – Si. Si. Nos conoscemos na buate, te recuerdas? Bailamos la rumba por la noche. Me deste tu teléfono. No te recuerdas pero si. Estábamos eu e mi amigo paseando por estas partes quando los ojos miran al lado e qui veo? Mira, no es Izildita? pregunto e mi amigo contesta, si, ela. Si, estamos bem de tu lado. Mira.
A moça olha em nossa direção. O rosto se ilumina e ela acena.
– Encoste o carro ali adiante. Vamos a bater un papito.
Alguns minutos depois estamos os três no Miata, Fred sentado no banco de trás com Izildinha, dizendo tengo un barato muy rico,  Izildinha respondendo, deixa eu experimentar. Enxarco um chumaço de estopa em clorofórmio e passo a ele. Fred imobiliza os braços da moça e pressiona a estopa contra o rosto dela, cobrindo a boca e o nariz. Quando a Izildinha desmaia Fred a ajeita no banco. Sai do Miata, dirige-se ao carro da Izildinha parado à frente, entra, dá partida e arranca. Giro a chave de ignição do Miata e seguimos atrás.
Quarenta e cinco minutos depois estamos no labirinto do ipsius ego. Atrás do espelho observamos Izildinha, filha de Norberto Coelho, elogiadíssimo escritor da atualidade, autor dos mais mirabolantes thrillers. A menina está prestes a ser…
Bem, agora um desses escritores abastados, cafonas e preguiçosos vai ver com quantas emoções se faz um romance.





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