In the jungle the lion sleeps tonight


Escrevi há tempos sobre um tal de Paul Walker, americano que estrelou uma longa série de filmes em que uma cambada jogava tempo fora apostando corridas de carro por ruas sem fim e que morreu num acidente de carro. Fosse eu articulista da Folha de SP, aporia um “ironicamente” ao último verbo do período. Em geral não tenho sorte em muitas coisas na vida. Uma das poucas que tive foi nunca me atrever a colaborar em jornais e revistas para não me ver obrigado a mentir descaradamente ao meu eventual público.
Agora quero falar de outro americano. Adivinharam: o dentista. Aquele que atende pelo epíteto Walter Palmer.
Jesus Fucking Christ.
Leio nas mídias que do dr. Palmer viajou até um parque nacional do Zimbábue onde a caça é proibida, atraiu um leão para fora dos limites do parque e o alvejou c’uma flecha. O leão agonizou durante infindáveis 40 horas e só então o caçador se dignou a por um fim no padecimento do animal. A Veja online estampa uma foto do doutor, acompanhado de outro sujeito, postado atrás do cadáver da fera. O corpo do leão é exibido cuidadosamente arrumado sobre um monte de terra de modo que sua cabeçorra está apoiada na posição ereta, como se ainda estivesse vivo.
Os dois energúmenos assassinos sorriem para a câmara, inchados de orgulho.
O artigo informa ainda que no site da Casa Branca há um abaixo-assinado (ou “petição”, segundo o crânio que traduziu o texto de alguma publicação americana, provavelmente usando o Google Translate) pela extradição de Palmer para o Zimbábue e subsequente julgamento.
Puta que pariu.
Notícias desse tipo sempre me remetem a Hemingway e seus romances recheados de fantasia e miticismo em que sub-heróis tentam provar algum valor pessoal a si mesmos e a seus amigos e namoradas lutando contra a natureza no sentido amplo da palavra: a que determina a nossa própria natureza, índole e caráter e a exterior que nos condiciona. Hemingway foi um homem típico do século 19 e nunca deixou de sê-lo, mesmo em 1961 quando, também tipicamente, acabou com a própria vida desferindo um tiro de espingarda dentro da própria boca. Seus livros descrevem touradas e caçadas antológicas de que qualquer macho da época gostaria de ter participado. E os protagonistas homens engoliam inacreditáveis quantidades de vinho e scotch na esperança de enfeitiçar a fêmea (em geral, uma única, disputada pelos homens).
Tinha sete anos em 1961 e visitávamos o sertão do Estado de São Paulo pelo menos duas vezes por ano e cada uma dessas viagens era uma incursão passado adentro no DKW branco e cinza de papai, nossa máquina do tempo particular. Nas seguidas visitas à fazenda da família e às casas de tios e primos aprendi a reconhecer e compreender que histórias individuais podem ter ritmos distintos. Viajar significava se deslocar não apenas geograficamente mas também ao longo das décadas. Muitos dos meus tios viviam em cidades que cultural e economicamente não passavam de aldeias quase medievais, e, temporalmente, simplesmente não passavam.
Lembrança que não se apaga da memória: certa feita chegamos à casa duma parentada em Américo Brasiliense e um primo me chamou a um canto. “Olha!”, exclamou altaneiro, querendo impressionar o caipira da cidade grande. Olhei. Era um balde, desses de vinte litros usados para lavar roupa, cheio até a metade duma extensa variedade de passarinhos abatidos. Eram de diversos tamanhos, cores e tamanhos de bico. Em seguida ele me levou até seu quarto para me mostrar sua eficiente, precisa espingarda de chumbo.
Fui crescendo aprendendo as intransponíveis diferenças e um dia me dei conta de que nem tudo pode ser exigido de todos indistintamente. Não podemos esperar atitudes do século 21 dum sujeito vindo ao mundo e dele se despedindo no século 19. O velho “o tempora o mores” de Cícero provavelmente terá aplicação legítima até a última geração da raça.
Agora, que é que se faz com milhões de pessoas que a cada ano pagam ingresso para assistir a touros sendo torturados em rodeios ou requintadamente massacrados em touradas ou galos a se atacar ou cães a se trucidar em rinhas? Sob apupos e ovações e relinchos duma audiência de neandertais que nada ficariam a dever em selvageria à plateia que frequentava os duelos mortais de escravos na Roma antiga?
Vira e mexe leio nas mídias gente que se pretende inteligente como a gente tentando passar adiante a lorota de que nossa crueldade com os animais faz parte da nossa natureza tanto quanto qualquer outro de nossos atributos antropológicos e portanto deveríamos tomá-la absolutamente. Para esses caras evoluímos pouco ou nada até hoje. As batalhas de vida ou morte que travávamos contra seres formidavelmente terríveis, monstros quase míticos que sobrevivem apenas na ficção e em nossa memória atávica, ainda nos significam algo hoje. Não se deram conta de que somos os vencedores em nossa milenar missão civilizatória. Não perceberam que enfim derrotamos a natureza. E a devastamos a tal ponto, que infringimos os limites da nossa própria devastação.
Inacreditavelmente, reis de Espanha insistem em passear pela África a pretexto de distrair suas amantes em safáris sanguinários.
Inimaginavelmente, países que se proclamam evoluídos como os Estados Unidos e o Canadá e a Inglaterra ainda mantêm legalmente temporadas de caça a ursos e raposas e veados.
Absurdamente, Hollywood ainda propaga em seus filmes a noção de que abater animais silvestres a tiro é okay, desde que Johnny & Suzy adquiram uma licença para matar no bureau apropriado.
Dear god, o dentista teve a pachorra de viajar dos EUA à África meramente para imolar um ser tido até então como mito entre nativos.
Walter, por que simplesmente não fez como a maioria de seus patrícios que freak out e empunham a pistola de Dirty Harry e saem por universidades e escritórios dando cabo de antigos colegas?
Jesus fucking christ, Walter. Que foi que o lendário leão do Zimbábue te fez?
You mother fucker douchebag, gente inteligente como você é a prova de que não temos salvação.

Ultimato

cintila a estrela se perguntando “qual é teu mistério?”
“de onde vens, aonde vais, por que brilha tua alma?”
pupila incerta e aflita, te conheço de outro rosto
o fundo duma rosa que me ajoelhei para cheirar
sabendo que não guardava perfume nenhum
se recompensa houver, a vida estará consumada

Autobiografia

Cortei o pulso e pichei o muro com o sangue
O pulso e o sangue eram do meu gato
O muro, do meu quintal

O gato sobreviveu
O piche ninguém leu

O condenado

O olhar de marfim sem eclipses ou raios.
Nas linhas da boca nenhuma lembrança.
Na testa de louça nenhuma esperança.
O rosto é todo esquecimento.
Quando foi seu último sentimento?

Terá sido na tarde imensa de domingo em que perdeu definitivamente a infância?
Ou na voragem instantânea de adolescente a devorar tanto o mundo
Que não lhe restou onde estar?

Estátua do primeiro momento
De que lhe sobraram as mãos.
Se a quem as tivesse estendido
Deixasse em seu peito a paixão.

Trancafiado no corpo
dum boneco de pano
espera o destino
de todos os homens

Quico II

Apresento aos meus quase três leitores e meio 

The One & Only...



Quico II !

(Assim  batizado em homenagem ao saudoso cãozinho da minha querida amiga Sue Cida e ao igualmente saudoso Quico de minha irmã, picado por uma cobra coral em Juquitiba)

...o novo companheiro que vem se juntar a mim e a Zezeí em nossas metafísicas caninas perambulações pelos caminhos e descaminhos da Sampeia Desvairada.

Quico II, seja bem-vindo!
Um brinde ao golpe do destino que nos uniu, glup glup glup...
Ai! para de morder meu dedão...

Infância

e jogava o pião com Deus
enquanto minha mãe estendia roupa
e o meu pai mendigava o pão

e minha alegria nesse tempo
era muito próxima da dos meninos
e de Deus que ganhava sempre

e não sei quem perdi primeiro:
o pião ou Deus
apenas sei que Deus continua
a jogar com outros meninos

e que no Outono quando saio à praça
nos sentamos e falamos muito
do suave rodopiar das folhas


(poema do português Daniel Faria)

Rotina

Estou pensando, acho que vou contratar um leitor.
Tarefa: ler os livros que não consegui ler até hoje e que sei que nunca mais conseguirei ler e depois me descrever e explicar um a um.
Estou fazendo a lista. Por alto, calculo setecentas obras. Se eu e meu leitor-funcionário cobrirmos um livro a cada dois dias, o mister estará cumprido em pouco menos de quatro anos.
Acho que posso sobreviver mais esse período, se me incumbir dessa missão. Dizem que algum senso de realização ajuda a esticar a vida. Não quero esticar a vida (se pudesse, esticaria a das espécies em vias de extinção, as indefesas, a perecer nas garras de gente incapaz de celebrar a existência e do excesso de população e dos frequentadores de rinhas, torneios e outras barbáries que historicamente pertencem ao século 19). Não, não quero esticar nada. Só quero conhecer os livros que por falta de tempo não pude ler. E por falta de paciência também – quase sempre estive ocupado demais tentado levar na maciota esta minha vidinha besta que me coube – e quebrando fragorosamente a cara no processo.
Ler não é nada sagrado. Ler não é nada espetacular. É nem mesmo missão. Ler é apenas um dos modos disponíveis para enganarmos a desgraceira. A diaba. A malfadada. A encrenca. A peste.
Tenho inveja de quem dispõe de meios mais eficazes de passar o tempo e se distrair do grande tédio de existir. Um assassino, por exemplo. Mesmo um ladrão. Mas que seja dos bons, i.e., não se deixe apanhar pelos meganhas para acabar confinado numa cela de três metros quadrados com dezenas de outros aventureiros cuja aventura deu co’s burros n’água. Um assassino ou um ladrão ou um aventureiro qualquer é apenas um sujeito que não se resignou ao fatalismo de ser mais um no meio da manada ou entrar na fila para ficar sempre nos últimos lugares. Esses caras merecem respeito. Podiam ser como a maioria de nós, que trabalhamos quarenta anos para ganhar a aposentadoria e então nos aposentamos e então torramos mensalmente nossa pensão no balcão da farmácia, até que nossos compadecidos rebentos nos internem à força num asilo abarrotado de decrépitos.
Os marginais aventureiros têm esse talento para dar um passo maior que a perna. São bons na realização de ditos populares – o que não é pouca porcaria. Digo, os marginais aventureiros bandidões. Já os meia-boca, escaladores dos montes everests e chatices que tais, esses não valem as indumentárias transadas descoladas que vestem. Todo dia a mídia quer abrir nossa boca de espanto por um tonto ou um bando de tontos mortos sob uma avalanche de neve num pico qualquer. Ora, quem mandou subir a droga da montanha in the first place? Se aqui embaixo a morte já faz parte, lá em cima, sob vinte graus negativos e a fúria de ventanias a 200 km por hora, morrer devia ser o primeiro item do cardápio. Os parentes e amigos amarfanham as caronas diante das câmaras de tevê lamentando a “tragédia”. Deviam é estar contentes por seus heróis. O barato não era desafiar a morte? Pois então desafiaram. E perderam. Tudo dentro das regras. Dar uma de vítima depois da partida é patético.
O extremismo do bandidão nada tem de esportivo. O bandido, o bandido genuíno, não está brincando de jogar com a vida, seja a própria, seja a de outrem. O bandido bandido no duro não é extremista nem radical. Não está interessado em aparecer no jornacional se gabando dum recorde boboca qualquer. O bandido pra valer nem imagina o que seja se gabar e não tá nem aí pra adjetivos. Existindo não para fingir nem para invejar, sabe, imensamente mais que qualquer poltrão metido a escritor, que o substantivo é o que interessa.
Se tivesse paciência, estenderia em uma ou várias páginas cada parágrafo deste texto. Cada uma delas é não uma pepita mas um veio inteiro cuja exploração parece valer a pena a devoção duma vida inteira. Sou um perdedor de pepitas. Sou um perdedor de tesouros. Como escrevi um dia, um perdedor de estrelas.
Um perdedor de mares e oceanos.
Rimbaud aposentou a pena de ganso aos dezesseis. A academia de letras francesa nunca soube o que seria tê-lo dia após dia no chá das tardes parisienses. Plus important, Arthur frustrou todo um exército de críticos e professores literários já prontos para – como é que eles gostam mesmo de dizer? – debruçar sobre a obra do infante terrível. Tenho cá pra mim, a grande banana que deu aos liturgos e ritualistas foi sua maior obra. Aos dezessete, o promissor fils mercadejava armas na África, para desaforo e frustração dos parasitas que se aproveitam da arte e do talento alheios.
Rimbaud é o caso mais intrigante e mais famoso de aposentadoria literária precoce. E, claro, sempre fica a especulação “Quantos escritores geniais terão existido neste mundo que nunca escreveram uma linha sequer e assim não puderam ser descobertos pelos críticos parasíticos?”
Já o número de escritores que pararam de ler em algum ponto de suas vidas é bem maior. Quem me ocorre agora, digno de menção, é Heidegger, que quando parou já gozava do prestígio de grande pensador e carregava o fardo de ser nazista. Incontáveis outros devem ter deixado de abrir livros cedo sem que ninguém tenha tomado conhecimento. Desses, a estrutura acadêmico-parasitária jamais dará falta.
Marcola, aquele chefão ou ex-chefão do PCC, é um sujeito de sorte. Há uns anos declarou numa entrevista ter lido 3 mil livros depois que o trancafiaram num presídio de segurança máxima. Escrevi há anos alhures que fiz as contas e deduzi que seria impossível tantos assim. Com boa vontade, o bandidão-inteleca pode ter lido não mais que 500. Mesmo assim é leitura muito maior que a de 99 por cento das pessoas normais leem em suas existências de baratas e ratos viciados em imagens televisivas que se trocam de segundo em segundo. Marcola acrescenta que está lendo Dante. Encerra a entrevista c’uma citação do poeta italiano. Taí, seria um bom candidato para minha vaga de leitor particular. De quebra, podia me dar umas aulas de como levar uma vida de crimes sem ser espicaçado de segundo em segundo pela culpa do pecado original.
Ofereço o básico: quartinho nos fundos com banheiro privativo, três refeições diárias, uma folga semanal, trabalho depois das 17 contado como hora extra, um armário na cozinha pra guardar livros particulares. Salário mínimo a combinar. Alemão, francês, italiano e inglês (não britânico, please) são um plus. Peço fotos de rosto e corpo inteiro, de frente e de perfil. Mulher bonita, salário dobrado. (Vã esperança, bem sei. Mulher bonita inteligente é o que mais falta no mercado.)
Enviar a lista de leituras até a presente data e currículos à redação. Não precisa especificar a escolaridade. Os sem diploma terão preferência. Criminosos e congêneres favor indicar nome da facção, data de entrada (de saída não precisa, estou ciente de que é via de mão única, hehehe), ações mais espetaculares cometidas até hoje, tempo de cana, outros detalhes à volonté.

Snap

À mulher mais bonita do mundo ofereço o coração mais livre do universo. Bebo, pago e me mando.

Ai se eu te pego

Deu em todos os portais noticiosos.
O surfista Mick Fanning por muito pouco não levou umas dentadas dum tubarão branco. Escapou por um triz.
Quando soube do episódio, o também surfista Gabriel Medina postou num portal de relacionamentos: “Feliz por você estar vivo irmão. Foi Deus”.
Fiquei confuso. Se Deus inventou o tubarão, por que raios foi salvar o surfista do... tubarão? Poderia ter feito ou um tubarão desdentado ou um tubarão que tivesse alergia de surfistas.
Aos que não acham graça neste tipo de piada, devo dizer que, na verdade, acho que foi Bach.
No momento estou escutando o Concerto 3 BWV 1048, de Brandenburgo, aquele que Aldous Huxley diz em Contraponto ser a música suprema do Ocidente. Eu também. Digo mais. Deus não seria capaz duma composição tão... divina.

PF

Dá um telefone a uma jovem em São Paulo. Três vezes é entendido errado.
É falta de concentração. Jovens lhe confessaram que não leem porque não conseguem se concentrar. Inútil recomendar que leiam Cultura do narcisismo, de Christopher Lasch, que explica a dificuldade de concentração para pessoas que passam horas sendo manipuladas em imagens abruptamente montadas. Em cinema de Hollywood, nenhuma tomada leva mais de um minuto. Quase sempre leva 30 segundos, quando se corta. Se a nossa cabeça funciona assim, não conseguiremos ler uma oração composta. Só tatibitate.
Eis uma disciplina útil a ser criada, concentração. Quando ele era garoto, seguiu o exemplo dado por Somerset Maugham de decorar um texto clássico (Machado lhe servira muito bem), curto, e depois escrevê-lo. O exercício, segundo Maugham, equivale a ler o texto 14 vezes.

Apenas um momento histórico

Christ, que será mais melancólico que um rockeiro de setenta anos revivendo no palco as glórias da juventude? Não há um só que se toque que sumir do mapa seria muito mais lucrativo? podia até gerar uma tal de “lenda urbana”, novo sonho de consumo do açougue. Esses velhotes e suas vozinhas de taquara rachada e suas gordas papadas a roçar o microfone esgoelando hits que os consagraram há quarenta anos, seus netos podiam suplicar, vovô, larga o osso, deixa a vida correr o curso natural. Já não faturaram milhões em seus supostos anos dourados? Não sejam grotescos. Não sejam constrangedores. Tudo tem limite, até o absurdo mundo do rock misto de criança e heroína.
Christ, que exaustivo este mundo povoado de mitos em que todo mundo e seu filósofo se arvora a esclarecido e se acha no direito de deitar fraseado no ouvido alheio. O nível científico e o conhecimento adquirido até aqui e o cacete, era pra começarmos a cultivar um pé de feijão de esperança em nosso futuro mas vamos em aceleração inercial de mil por hora rumando ao desastre final.
Não, o desastre final não é a implosão do Sol ou a conflagração atômica ou a evaporação da derradeira gota d’água da última lagoa na face da Terra.
O desastre final se repete milhões de vezes a cada dia na morte brutal e patética dum pequeno negro esfaimado nas outrora exuberantes florestas africanas. Soa patético, estou ciente. Não devemos deplorar o que não tem solução.
Quer saber o que é a verdade humana?
A verdade humana é que um único sujeito tem o poder de amealhar cem bilhões de dólares em sua fortuna enquanto três bilhões de outros sujeitos murcham à morte sob a desnutrição.
Este nosso mundo tem meia-dúzia de sujeitos com cem bilhões de dólares em seus cofres. É patético, eu sei.

Sentimento de mim

Sinto uma coisa delicadíssima neste instante. Tão delicada, que receio que cutucar as teclas para digitar estas palavras esvaneça o que sinto.
Há apenas meio minuto sentia meu tédio. Meu tédio é imperioso. Se esparrama gordo, frouxo, folgado sobre tudo mais, esmagando terceiros, fazendo uma sombra sob que nada mais é capaz de vicejar.
Escravo desse meu tédio tirânico, hesitava. Devo bater em retirada, como quase sempre faço, ou devo resistir por mais três, quatro minutos?
Era em tal indecisão que me martirizava, quando senti essa coisa, essa coisa delicadíssima. Tão delicada, que não lhe dei dois segundos de vida. Tenho tantos sentimentos ao longo do dia e da noite, a maioria efêmeros qual o pio incerto dum sabiá-laranjeira no fim da madrugada. Mesmo assim fiquei imobilizado como o assaltante da diligência que Roy Rogers acabasse de enquadrar com seu Colt prateado.
Crispo os lábios, decepcionado. Roy estragou tudo. Roy, seu amigo Tonto, seu cavalo de cujo nome não quero lembrar.
Sopeso recomeçar. Mas sem o tédio. Meu tédio é invencível. E letal. Mais trezentos ou quatrocentos gramas dele é capaz de dizimar toda a humanidade. Não quero que a humanidade acabe, ainda.
O que senti no princípio, a que dei o nome pavoroso de coisa (não me atrevo a digitar a segunda palavra), já derreteu há tempos feito uma pedra de gelo a boiar num copo cheio até a borda de Drury’s.
Agora a verdade:
Quando comecei a escrever este texto, estava mortalmente entediado, sim, mas acabara de ler uns poemas de Drummond. E botei Peer Gynt, de Grieg, pra tocar só de garantia.
O gelo derreteu, o uísque ficou insulso. A exuberância de Grieg de repente desandou em cacofonias e guinchos. E a insuplantável crença religiosa de Drummond na vida de repente soou tão drummondiana.

A especulação

Melindrosa um dia anunciou assim sem mais nem menos bem no meio do rebanho:
— Queria tanto conhecer o açougue...
As outras vacas continuaram a pastar como se não tivessem escutado.
Melindrosa insistiu:
— Eu mugi que queria conhecer o açougue!
Janete, a quadrúpede mais próxima, resolveu se dar o trabalho de perguntar:
— Pra quê? Pra que você quer conhecer o açougue, Me?
— Ai, sei lá. Mugem que é um lugar lindo.
Mimosa também decidiu tomar tino da conversa:
— Será, Me? Quem mugiu?
— Bom, não me lembro exatamente quem. Mas que alguém mugiu, isso tenho certeza.
— E onde fica o tal açougue? — foi a vez da bovina Baldáquia imiscuir-se no diálogo.
— Isso também não sei. Onde será?
— Fica lá depois do monte da Última Curva — intrometeu-se Amarildo, um boi recém-capado que ainda guardava alguns resquícios de touro, apontando com os chifres numa direção.
— Tão longe assim? — Melindrosa olhou entre desapontada e sonhadora na direção indicada pelo boi recém-capado.
— Ouvi mugir que o açougue tem um homem chamado Açougueiro — opinou Cácia, outra que se interessou em participar da especulação.
— Mugem que é um homem boníssimo.
— E o que será que tem nesse tal de açougue? — devaneou Mimosa com seus grandes e aguados olhos bovinos.
— Pelo que fiquei sabendo — adiantou-se Baldáquia, abrochando os beiços como se mascasse chiclé —, o açougue é como um curral, só que limpinho e bem arrumado. Mugem até que tem alfafa importada!
— Muuuuuu! — mugiram em uníssono todos no rebanho, sonhando excitados com as supostas delícias daquele lugar misterioso.
— Belinha foi levada para lá semana passada — Amarildo abananou os orelhões envoltos numa chusma de mosquitos.
— Por que será que ela não voltou mais? —  Mimosa arregalou os olhões inquiridores para o recém-capado.
— Pelo que ouvi mugir, Belinha foi vendida pelo patrão ao dono do tal açougue para ficar em exposição num estande que chamam de balcão-frigorífero.
— Não me muja que ela virou miss! — estremeceu Cácia com indisfarçável dor-de-joelho.
— Ora, dona Cácia! — Mimosa franziu o cenho e meneou a cabeçorra em reprovação. — Afinal ela é mais bonita de todas nós.
— Ah, se eu não fosse capado... —  Amarildo babou uma densa espuma de desejo lamentoso.
Nisso, um vaqueiro abriu a porteira, açulando aos brados o rebanho para fora do curral.
— Será que é a minha vez de conhecer o açougue? — mugiu baixinho Mimosa, lambendo a queixada de excitação.

Perguntinha básica de sábado à noite

Dear god, quem é esse que finge ser quem penso que sou?

Ai se me pegam

Sou drummondiano, sou drummondiano em vários sentidos.
Seu poema “Procura da poesia” começa assim:

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Este poema sugere, acho, que Drummond tinha desprezo poético pelos acontecimentos. Igualzinho a mim. Embora eu tenha desprezo por muito mais coisas que Drummond. Poético e de mil outros tipos.
Por isso fiquei enojado quando li um poema de Fabrício Carpinejar lamentando aquele incêndio numa casa noturna em Santa Maria, Rio Grande do Sul, há uns dois anos. Carpinejar o escreveu no dia seguinte à tragédia. Deu uma de poeta-repórter, tentando um impossível, e lacrimoso, poema-furo. Logrou tão-somente se mostrar um poeta-demagogo. Foi então que tive certeza de que Carpinejar nunca foi nem nunca será poeta.
Acontecimentos não me inspiram aventuras poéticas mas certos deles acho que merecem um tico de lero.
O da hora envolve um tal de Michel Teló, aquele que canta ai se eu te pego ego ego. Segundo os jornais da semana, o rapaz postou no tal de Instagram um autorretrato (deve ser a primeira vez que alguém chama selfie disso, hehehe, pobre van Gogh) com metade do rosto pintado em preto, imitando atores de teatro que tempos atrás representavam personagens negros. É uma prática que leva o nome de “blackface”. O cantor alegou que pretendia apenas colaborar na campanha contra o racismo. Mas o outrora feliz mundinho digital do sertanojo desabou.  
O gesto pretensamente antirracista não deu apenas xabu. Saiu pela culatra, se tornou motivo de anátema rede afora.. Teló foi tachado de racista, fazendo virar o feitiço contra o feiticeiro. Um tuiteiro recomendou que o ai-se-te-pego desse “uma googlada antes de sair fazendo merda por aí”.
Resultado, bidu. O pegador foi correndo apagar o post. E rapidinho se saiu c’uma satisfação humilhante ao distinto público: “Gostaria de me desculpar pelo ocorrido com a foto postada ontem em meu Instagram. Foi um infeliz mal entendido. Sou contra todo e qualquer tipo de preconceito, seja racial, sexual, social e religioso. Enfim, gostaria de deixar registrado meu pedido de desculpas a todos por esse grande mal-entendido. DIGA NÃO AO PRECONCEITO. DIGA SIM A IGUALDADE. DIGA SIM A PAZ. DIGA SIM AO AMOR”.
Retratação constrangedora. Teló não sabia as possíveis implicações do tal blackface mas se sentiu obrigado a praticar autoimolação pública, o preço cobrado pela plebe a seus ídolos que cometem gafes politicamente incorretas. Parece que aos pobres sertanojos e celebridades que tais não se escusa o erro inocente. Podiam ter dado um toquezinho sutil ao coitado e encerrar o assunto. Mas, sabe como funciona a massa, tinham de consumar o massacre. Como digo sempre e mais um pouco, a internet tem muito de catarse. O cantor aprendeu de forma cruel que no mundo dos famosos não há inocência. Já diziam os estudantes da comoção dos idos de 68, todo ato é político. “Mas eu só queria brincar de antirracista!”, deve ter-se lamentado Michel baixinho em seu canto, rezando para não virar o protagonista dum novo affair Ed Motta.
Haverá telós racistas soltos por aí? Que é que você acha?
Pessoalmente, conheço uma pá de racistas. E uma enxada de homofóbicos. E xenófobos. Misóginos. E misândricas. Certa feita num diálogo na orkut uma dona me disse o seguinte: “Vocês machos só querem a mulher no colo e o colo da mulher. Basicamente, uma mãe prostituta.” E tive de engolir calado a acusação, pois a dona não me deixou retrucar nem explicar que não era bem meu caso, praticamente me obrigando a executar de má-vontade o quem-cala-consente. Depois fiquei pensando se ela tacava esse petardo ready-made contra todo homem com quem conversava na internet. No final das contas deduzi que sim. E não nos falamos mais e ela prosseguiu em sua carreira cibernética distribuindo pitacos politicamente sensatos e sensíveis em seus perfis digitais, construindo cuidadosa e elaboradamente a imagem de santa que escolheu desempenhar.
Adultos, cedo ou tarde passamos pela necessidade de estabelecer uma relação de intimidade emocional com alguém. É situação deveras comum entre casados e amantes e amigos. Você então expressa seus sentimentos e pensamentos mais profundos, aqueles que tem protegido diligentemente da curiosidade alheia, para se aproximar ainda mais do outro. Esperando a contrapartida, que, se vier e for de fato sincera, fechará o ciclo da catarse. Isso acontece porque somos profundamente solitários por dentro. A maneira como lidamos com essa solidão interior depende da personalidade de cada um de nós, obviamente. Eu, por exemplo, procuro conviver com ela escrevendo.
Há os que se horrorizam com o modo escrachado com que tento me desmascarar em público.
É parte essencial da lida do escritor mexer com suas emoções inconfessáveis e botar fora suas tripas. O êxito do trabalho de qualquer escritor tem relação direta com sua capacidade de ser honesto e sincero consigo mesmo e com quem quer que esteja envolvido em seu mundo. A lenga-lenga podemos deixar a cargo dos artigos insossos que os incontáveis colaboradores da Folha de SP trazem à tona todo santo dia em banho-maria eterno que nunca cheira nem fede. O assunto do escritor – e, ainda mais, do poeta – é a expressão do que sente. Se houvesse uma pesquisa do Datafolha entre escritores e poetas sobre a pergunta que todos eles se fazem o tempo todo – o que é escrever? –, a resposta seria: a necessidade de se expressar pelas palavras. Se pensar nisso, você concluirá que é tema para uma vida inteira.
Estou tão acostumado a expressar o que sinto e penso tanto aqui em meu blog quanto pessoalmente, que desaprendi a medir minhas palavras. Minha lhaneza só me traz confusão, claro. Como escrevi outro dia, o brasileiro médio não sabe tolerar a franqueza. Leva quase tudo no mau sentido, o pessoal.  O resultado é que somos um dos povos mais hipócritas do mundo. Não foi com sofismas e tergiversações que americanos e europeus construíram seus impérios, creia. Como sempre digo, cem mil pessoas são assassinadas todo santo ano entre crimes e trânsito e fingimos solenemente que não estamos nem aí.
Em geral, bidu, nos arrependemos do surto de sinceridade se o surto for deveras revelador das nossas fraquezas.. Onde eu estava co’a cabeça contando meus segredos pr’aquele cafajeste? Por que fui me expor pr’aquela ordinária? E o sabor amargo do arrependimento só tende a piorar quando revelações pessoais são acompanhadas de fotos pra lá de íntimas, como tem ocorrido rotineiramente na internet. Cedo ou tarde nos damos conta de que quebramos a cara confundindo fóruns e portais de relacionamentos com confessionário. Ou pior: divã de psicanalista.
Moral da história: privadamente somos o que somos; publicamente, somos o que os outros esperam que sejamos. A internet veio nos agraciar com a divina capacidade de sermos nossos próprios criadores. Em nossos perfis, em nossas páginas, em nossos blogs podamos o que temos de feio e sujo para montar uma ficção desejável, ou pelo menos aceitável, pelo olhar alheio. Isso também é verdade no mundo lá fora? É. Mas não com tantas ferramentas e artifícios ao alcance do mouse.
Como Michel Teló acabou de aprender através da própria pele, a rede mundial pode se tornar uma tortura para o indivíduo, nos sentidos antropológico e filosófico, sentidos que hoje em dia não dizem nada para quem se viciou a atuar apenas como turba e a desmanchar suas peculiaridades individuais no meio da massa. Nessa colossal vitrine que nos expõe todos a todos, parece que o indivíduo tem cada vez menos chance de sobreviver ante o coletivo. A tolerância da turba por idiossincrasias é zero. A gafe de Teló foi apenas uma imprudência inocente e talvez a mídia, em sua eterna busca da sensação, tenha lhe dado mais importância do que o caso merece. A coisa pega de verdade é quando alguém se atreve a externar o que pensa se o que pensa não se coaduna com os padrões férreos estipulados tacitamente pelo coletivo. Como disse acima, conheço um montão de gente racista, homofóbica, xenófoba, misógina. Que não tem pudor em se mostrar como tal dentro das fronteiras da privacidade. E conheço também gente que é tudo isso mas finge não ser. E há também os que são racistas coisa e tal mas não toleram os que assumem ser.
Afinal, um indivíduo tem o direito de dizer que não gosta de negros, gays, judeus, mulheres, esquerdistas, fumantes, corintianos sem incorrer em discriminação contra um outro indivíduo particular, ou é obrigado a ocultar suas preferências para não ser massacrado pelo coletivo? Onde está o crime em não pensar como a maioria diz que pensa?
Parece que o indivíduo idiossincrático, que busca ver o mundo da forma que escolheu ver e não como a “sociedade” exige que veja, está se tornando um pária. Um defeituoso social. Que, vicariamente, também deveria ter o direito de exigir que a maioria não o assoberba de preconceitos.
Como ficamos?
A hipocrisia está comendo solta. Não só porque salta aos olhos nos portais de relacionamento mas sobretudo por uma mera questão de economia. Os recursos naturais escasseiam dramaticamente e a disputa por eles cresce minuto a minuto. Vivemos, cada um de nós, privada e coletivamente, conflitos insolúveis que fazemos de conta que não existem. Se fosse filósofo, concluiria que a praga do politicamente correto e as ações afirmativas são apenas a ideologia apropriada para uma época em que quem está em perigo não é essa ou aquela minoria social, étnica, religiosa ou qual seja e sim a humanidade toda. Talvez o PC esteja emergindo naturalmente das cabeças justamente para diluir as diferenças internas das sociedades e começarmos a nos unir para enfrentar o mal que nos é comum a todos: o começo do fim do planeta.
Se estiver certo, quero que depositem meu Nobel na Suíça.
E pensar que trucidaram o Teló por uma bobagem politicamente correta e nem o multaram por ter perpetrado o ai se te pego...

Aviso aos naverrantes II

O naverrante que por caminhos insondáveis vier desembocar pela primeira vez neste blog certamente estranhará o título. (Pra quem não notou, “UM BLOG LITERÁRIO BRILHANTE”, tudo em caixa-alta, próprio dos cabotinos histéricos.)
Donde veio a ideia de achar que os textículos por aqui brilham, nem imagino.
E, além de reluzir na mais escura treva da mais longa das noites, este meu pequeno blog vai singrando pesadamente pelos vagalhões sinistros do mar gélido da solidão cibernética, brbrbrbrbrbrbrbrbrrrrrrr brbr brbrbr brbrbr brrrrrrr brbr brbrbr br brbrbrrrrrrr.
O naverrante ávido por horizontes desconhecidos encontrará por estas praias com excesso de areia árida e escassez de vida e abundância de conchas abandonadas cadáveres e esqueletos para todos os gostos. Bem ao, com perdão da anáfora, gosto dos odisseus modernos.
(E pensar que certos leitores de tão modernos, nem ao menos leem.)
Tem lirismo comedido para os retardatários do Otto Maria Carpeaux, tem lirismo descomedido para os atrasados do Modernismo mundial, tem grandes teatros sem ninguém no palco e narrativas farsescas que nunca terminam. E tem muitos outros tipos de lirismo cuja taxonomia, que ainda não tive tempo de levar a efeito, acho que deixarei a um crítico da Folha ou da Veja quando finalmente se dignar a fuçar o sítio arqueológico dos blogs literários.
Afora a lira ocasionalmente desafinada, o naverrante verá também que o que não falta por aqui é desabafo. O autor – eu – é e sempre foi um sujeito deveras etc e por isso precisa bidu, caso contrário é bem capaz de pois é.
Como já mencionei em outras ocasiões, primeiro sofri aquele tremendo afogamento de nove meses dentro do útero de mamãe (que nem por isso pegou leve depois de me expulsar sumariamente de seu ventre; muito pelo contrário, até; ficou tão ressabiada, que dedicou parte da minha infância a me fazer pagar pela gravidez que, no meu entendimento, era desejada apenas por esse ajuntamento vago de vizinhos, parentes, amigos e conhecidos que se unem para formar a coação social e nos obrigar a fazer o que não queremos; até hoje, sempre que chego em algum lugar, a primeira sensação é que não sou bem-vindo; esse sentimento de “deslocamento”, como gostam de se orgulhar poetas e rebeldes em geral, não surgiu à toa). Me conhecendo como me conheço hoje (já fui muito mais ignorante a meu próprio respeito, creia), nem imagino como suportei aqueles nove meses sem respirar, sem mudar de ambiente, sem ter como sair correndo para a rua com minha Zezeí mescla de chiuaua e dog alemão como faço agora sempre que me dá essa minha gana de tacar meu cabeção na parede por não ver saída deste cul-de-sac em que fui metido.
Só a título de ilustração do “maternal” tratamento materno que recebi, certa ocasião fui rebocado pela orelha esquerda ao longo de um quarteirão e meio por ter surrupiado uns trocados da carteira da velha e comprado uns pacotes de figurinhas na quitanda da esquina. A meninada de-bem-coa-vida dos tempos que correm nem imagina que as frágeis orelhinhas dos capetas de antanho serviam mais de alça do que qualquer outra coisa. Eu era o único – ou um dos únicos – moleque das redondezas destituído da regalia de ter um álbum dos grandes times paulistas e não podia permitir que essa falha gravíssima – que escapava cabalmente à minha responsabilidade – virasse motivo de deboche da minha pessoa. Todo mundo que já teve uma infância e sua babá sabe que violadores das regras sociais infantis não têm perdão – cedo ou tarde acabam no ostracismo, castigo pior do que uma tunda moralizante aplicada numa quebrada qualquer na volta da escola ou um muquete no pé d’ouvido só para lembrar quem é que manda no pedaço.
Mas, peraí, estou atropelando o enredo. Apanhei muito dentro de casa antes de começar a apanhar na rua.
Comecemos do começo.
Minha gestação foi bastante tardia, digo, para os padrões de hoje. Mamãe contava 41 outonos. Naquele annus mirabilis de 1954 (Getúlio estourou o próprio coração c’um balaço parcos quatro meses antes da minha entrega; uma época fiquei bastante chateado por ele não ter me esperado), normal.
(Falando em Vargas, certa vez, alguns meses antes do meu incidente inaugural, o presidente passou com sua longa comitiva na rua lá de casa rumo a uma fábrica de ladrilhos que à época era a maior da região. Mamãe e toda a vizinhança acorreram às calçadas para agitar bandeirolas e flâmulas (comuns então) e saudar o grande líder misto de salvador da pátria e ditador, mais ou menos como o homúnculo misto de stalinista e demagogo que nos honrou com sua presidência antes da ascensão de Dilma Vana. Lamento pacas que a moda inaugurada por Vargas de se safar duma crise política dando cabo da própria vida não tenha sido seguida por outros grandes líderes que vieram nos atazanar a existência depois. Estou torcendo fervorosamente para que Lula se candidate no lugar da Dilma Vana este ano. Assim, a esperança será a penúltima a morrer.)
Naqueles tempos era comum mulheres de 40, 50 e até mais parirem. Como vocês sabem, quanto mais a fêmea mantém seu mecanismo procriador ativo, mais aumenta sua capacidade de proliferar e mais prolonga seu período de fecundidade. Hoje dizem que o risco de gerar um portador de Down é enorme. Ui que me arrepio. (Só a possibilidade de gerar um ser flagelado com algum mal incurável é motivo para sequer sonhar em ter filhos. E mesmo males curáveis dão o que pensar, naturalmente. Sendo que a própria vida já não tem cura, pra começo de conversa. Embora esta seja uma outra conversa.)
Por outro lado, em minha infância e adolescência nunca conheci nenhum desses pobres coitados amaldiçoados com a mortificação do Down, apesar do grande número de mulheres que engravidavam tarde antigamente. Sei, era apenas falta de conhecimento. Hoje se divulga tudo, se sabe tudo. (Mudança forçada de rota neste ponto. Não sei falar deste assunto.)
Papai, por seu turno (ando tão afonso-arinos-de-melo-franco), estava a uma semana de completar 45 quando desci ao mundo naquela fatídica, candente madrugada do dia 14 de dezembro. (Dizem que maioria das encomendas chegam de madrugada, será verdade?) Sim, ambos com idade para ser meus avós. Talvez tenha sido o que foram de fato, sem me dar a compensação daquele lado benigno, segundo explicam os entendidos nesse tipo de coisa, da condescendência, quase licenciosidade, com que os avós tratam os netos em contraposição ao rigor disciplinatório aplicado pelos pais.
Quando desembarquei da minha cápsula aconchegante e protetora mas desprovida de ar e passatempos, minha avó materna era a única a ainda resistir bravamente viva. Só foi dar o último suspiro aos 63, em minha casa, quando eu já celebrara o oitavo aniversário na presença do meio-irmão mais velho, da meia-irmã mais velha, da irmã mais velha, dos primos e parentes e nenhum vizinho. Foi vovó quem me ensinou tacitamente a palavra “neurastênica”, cujo significado e significação nunca mais esqueci – malgrado as tentativas nos incontáveis, homéricos porres que tomei e venho tomando com devoção mais e mais intensa a cada dia. Arrastava malsã pra lá e pra cá o corpo alquebrado de tio Goriot entre os cômodos da casa e o quintal, sem se preocupar em esconder ou disfarçar uma máscara amarga e o dissabor de existir. Não falava, só se exprimindo aos resmungos, no mais das vezes monossílabos impacientes que soariam qual latidos se fossem mais potentes. Quando comecei a desenvolver um tico de consciência das coisas me dei conta de que movia minha avó uma profunda revolta de viver. É um sentimento absolutamente assoberbante que me ocupa a mim também a maior parte do meu tempo e contra o qual tenho de travar uma luta permanente para não sucumbir, batalha quase sempre perdida. É revolta comum em quase todos os descendentes da mãe de mamãe. O que me distingue da maioria, acho, é que eles parecem ter aceitado quase com naturalidade o amargor hereditário, se deixando entregar a uma rabugice que, com a noção de total bem-estar e sanidade e busca sem tréguas da saúde física e mental que regem a ideologia de hoje, dificilmente seria tolerada. Ou geraria conflitos que certamente dariam na ruptura. E seríamos ainda mais solitários do que nos coube ser.
E o lado materno e seus vastos emaranhados é, obviamente, apenas o segundo membro da minha equação de infinito grau. O primeiro, o paterno, talvez seja ainda mais intrincado. Mas não tenho ânimo de tratar dele agora. E, mesmo tendo chegado até aqui (para minha própria surpresa), não me sinto confortável como memorialista. Prefiro meu papel de escritor sem uma história pra contar. Ou, em nome da minha tradição pessoal que venho me esforçando caninamente para construir, de ator sem um papel pra representar.
Sobre minha ascendência paterna, vou citar apenas que seu embate com meu lado materno gerou um resultado explosivamente malfadado.
O casamento de mamãe e papai foi o segundo para ambos. Este trazia na bagagem um filho adolescente. Aquela, uma menina, também na adolescência. Anos antes mamãe perdera para a hemofilia um menino, com apenas nove, morte que, aos meus olhos, parecia ter aceitado c’uma candura que nunca consegui compreender. Talvez como consequência do catolicismo, que era sua razão de viver.
O casamento se deu ainda num vilarejo chamado Américo Brasiliense, próximo a Araraquara, onde meus avós maternos mantinham uma padaria, escalando a filha primogênita para o cuidado de seus sete irmãos. A família de papai – que tinha oito irmãos, um a mais que mamãe – habitava uma grande fazenda de café situada num lugarejo de nome Santa Lúcia, na mesma região.
Papai começou a trabalhar na roça aos nove. Juntamente com os irmãos, acordava à quatro, empunhava a enxada às quatro e meia depois dum grande copo de leite tirado diretamente de úberes bovinas adoçado com açúcar cristal, almoçava às dez, jantava às quatro da tarde e às sete da noite já estava debaixo das cobertas. O dia de cada um dos precoces roceiros era repleto de aventura, logicamente – o eterno mourejar contra a indomável natureza – que hoje, aparentemente, estamos domando ao extermínio – e sua insistência em cercar cada pé de café c’uma trempa de touceiras do inferno. (A blasfêmia é minha. Papai não blasfemava. Nunca escutei um único palavrão de seus lábios. Em contrapartido, emito um a cada cinco segundos. Como lamento não tê-lo mais por perto para apreciar sua docilidade e circunspeção.)
Foi em Américo Brasiliense que nasceu minha irmã, dois anos mais velha que eu. Logo em seguida a dupla de caboclos se mudou com sua pirralha para perto de Sampeia, onde mamãe, instada por papai, viria a ter um aborto, que deplorou dia após dia até seu último suspiro neste mundo, de que partiu duas semanas antes de soprar 96 velinhas. Profundamente religiosa, nunca se perdoou. Imagino que tenha sido trágico também para papai. Pouco depois chegava minha vez. Queria sinceramente poder evitar mas não resisto a especular como seria se o “destino” me tivesse trocado de lugar com aquela vida que gorou pouco antes de mim. Soa frívolo, sei, mas este blog então não existiria e não existiriam todas as coisas e nem o mundo e nem a vida e tudo seria simples e hoje não seria domingo e as crianças não estariam fazendo algazarra em frente aqui de casa.
Veio então aquele asfixiamento, frenético afã que todo mundo e seu pediatra comete contra um réu recém nascido. A família acorria em peso à nossa humilde casinha encarapitada no alto da ladeira para contribuir com a solidez da educação do novo bambino e se empenhar no máximo esforço de evitar que o pobrezito desse co’s burros naquela água que vai escasseando hoje em virtude da imprevidência da Sabesp. (Alguém aí já leu, quer dizer, tentou ler os artigos dominicais dum sujeito chamado Gaudêncio Torquato nas edições dominicais do Estadão? Ele escreve assim. Assim como? Como escrevi acima, largando displicente símiles sem-vergonha ao longo do texto até lograr a mais insossa e atravancada salada literária da Terra.)
Bem, como estava dizendo antes de me interromper, todo mundo e seu coroinha vinha em casa ajudar a macerar lições de vida para o novato. Sendo a família constituída de beatos, um padre ou outro sempre dava uma passadinha. E tia era o que não faltava. Cada uma mais neurastênica que a outra e todas mais que a matriz.
A troupe reunida formava um coral de lamentações que entoava sem parar a grande, a imensa sinfonia a capella da minha infância, feita só de gemidos, guinchos, lástimas, muxoxos, cochichos e sussurros. Para tristeza de Bergman, gritos eram raríssimos, quase inexistentes. As carrancas de padecimento não ficavam atrás com narigões italianados a se torcer e retorcer, cenhos a franzir e desfranzir, lábios crispando, se amorfanhando, enrugando, esticando, dentaduras mordendo, pálpebras se espremendo, emprestando ao conjunto a mais poderosa carga de drama e furor que jamais presenciei. Papai assistia a tudo num canto, impávido colosso, não tenho certeza se divertido. E o pequeno paladino na voragem do olho do furacão do vórtice do redemoinho só tentando entender, estado em que se encontra até hoje.
Até os três, quatro aninhos penei pra c’ralho (sim, ainda na minha fase lusitana) nas mãos dos meus amorosos genitores e tias à beira dum ataque de nervos e primos cruéis e padres tarados (com perdão do pleonasmo). Pois que estavam decididos a fazer de mim um vencedor na vida.
Quem venceu foram eles.
Depois passaram a bola – eu, de novo – para os vizinhos e os filhos dos vizinhos e a comunidade em geral. A ideia, imagino, era me socializar, verbo que deixaria ambos – mamãe e papai – apreensivos se a pedagoga do instituto de ensino onde me enfiaram um dia para que o taciturno, enigmático, amargurado, quase lúgubre e provavelmente misantropo diretor seu Vicente me mantivesse sob seu olhar cujas características ensejariam uma fileira ainda mais comprida de adjetivos  o pronunciasse durante uma reunião de pais e mestres. Como nem tudo na minha vida foram espinhos, por sorte eles nunca compareceram a uma tal reunião, lavando as quatro mãos e por conseguinte designando a uma estranha a missão de ensinar ao pestinha onde a porca torcia o rabo. Tinham mais que fazer além de escutar as admoestações técnicas que uma fariseia desconhecida pudesse ter sobre o rebento que tinham arrancado do nada com tanto sacrifício.
Como devem estar lembrados, disse no parágrafo acima que a “ideia” era me socializar. Certamente perceberam que foi apenas força de expressão. Mamãe, sua única ideia do que quer que fosse era descolar uns trocados na cidade grande pra ver se deixava pra trás a infância e a mocidade de mínguas no balcão da padaria da Américo Brasiliense velha de guerra. A aspiração a crescer na vida era pelo menos um começo. Pois papai, esse não tinha ideia absolutamente nenhuma. Foi indo aos trancos e voltando aos barrancos aonde quer que mamãe o puxasse pelo braço, ar entre apático e agoniado, um defeito de infância no pé direito que o obrigava a mancar distintamente e, por isso mesmo, um andar meio trôpego, a encarnação da insegurança. Asseverar que nutria um plano para fazer de seu caçula – eu, mais uma vez – um cidadão minimamente “resolvido”, para usar o jargão moderno, seria viajar na maionese. Lá em casa não tinha dessas chiquezas não. vivíamos da mão para a boca.
Bem, por ora esta sessão de reminiscências vai ficando por aqui. Se a preguiça me largar, talvez acabe obrando uma autobiografia qualquer hora. Mas acho que já a perpetrei. Está tudo aí atrás neste mesmo blog. Se viesse a fazê-la, a biografia, é bastante provável que trouxesse a lume apenas o lado ruim. Ficaria mais manca que papai, que por sua vez não era tão manco quanto um irmão de mamãe que trabalhava na estação ferroviária, acho que também em Américo, e teve o pé atingido por uma daquelas argolas metálicas que antigamente eram arremessadas na plataforma pelos maquinistas quando o trem passava pela estação sem parar. Se usavam as argolas para entrega de mensagens provenientes de outras estações. Esse tio também neurastênico como os demais membros da tribo.
Well, comecei me dirigindo aos meus prezados naverrantes e, pra variar, acabei perdendo o rumo. É uma das coisas que mais gosto de fazer. Senão a única. Nunca tive rumo, nunca quis ter, nunca gostei de ter, nunca deixei que me obrigassem a ter. É assim que sei fazer o (pouco) que faço, é assim que sei ser o que sou.