Ai se me pegam

Sou drummondiano, sou drummondiano em vários sentidos.
Seu poema “Procura da poesia” começa assim:

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.

Este poema sugere, acho, que Drummond tinha desprezo poético pelos acontecimentos. Igualzinho a mim. Embora eu tenha desprezo por muito mais coisas que Drummond. Poético e de mil outros tipos.
Por isso fiquei enojado quando li um poema de Fabrício Carpinejar lamentando aquele incêndio numa casa noturna em Santa Maria, Rio Grande do Sul, há uns dois anos. Carpinejar o escreveu no dia seguinte à tragédia. Deu uma de poeta-repórter, tentando um impossível, e lacrimoso, poema-furo. Logrou tão-somente se mostrar um poeta-demagogo. Foi então que tive certeza de que Carpinejar nunca foi nem nunca será poeta.
Acontecimentos não me inspiram aventuras poéticas mas certos deles acho que merecem um tico de lero.
O da hora envolve um tal de Michel Teló, aquele que canta ai se eu te pego ego ego. Segundo os jornais da semana, o rapaz postou no tal de Instagram um autorretrato (deve ser a primeira vez que alguém chama selfie disso, hehehe, pobre van Gogh) com metade do rosto pintado em preto, imitando atores de teatro que tempos atrás representavam personagens negros. É uma prática que leva o nome de “blackface”. O cantor alegou que pretendia apenas colaborar na campanha contra o racismo. Mas o outrora feliz mundinho digital do sertanojo desabou.  
O gesto pretensamente antirracista não deu apenas xabu. Saiu pela culatra, se tornou motivo de anátema rede afora.. Teló foi tachado de racista, fazendo virar o feitiço contra o feiticeiro. Um tuiteiro recomendou que o ai-se-te-pego desse “uma googlada antes de sair fazendo merda por aí”.
Resultado, bidu. O pegador foi correndo apagar o post. E rapidinho se saiu c’uma satisfação humilhante ao distinto público: “Gostaria de me desculpar pelo ocorrido com a foto postada ontem em meu Instagram. Foi um infeliz mal entendido. Sou contra todo e qualquer tipo de preconceito, seja racial, sexual, social e religioso. Enfim, gostaria de deixar registrado meu pedido de desculpas a todos por esse grande mal-entendido. DIGA NÃO AO PRECONCEITO. DIGA SIM A IGUALDADE. DIGA SIM A PAZ. DIGA SIM AO AMOR”.
Retratação constrangedora. Teló não sabia as possíveis implicações do tal blackface mas se sentiu obrigado a praticar autoimolação pública, o preço cobrado pela plebe a seus ídolos que cometem gafes politicamente incorretas. Parece que aos pobres sertanojos e celebridades que tais não se escusa o erro inocente. Podiam ter dado um toquezinho sutil ao coitado e encerrar o assunto. Mas, sabe como funciona a massa, tinham de consumar o massacre. Como digo sempre e mais um pouco, a internet tem muito de catarse. O cantor aprendeu de forma cruel que no mundo dos famosos não há inocência. Já diziam os estudantes da comoção dos idos de 68, todo ato é político. “Mas eu só queria brincar de antirracista!”, deve ter-se lamentado Michel baixinho em seu canto, rezando para não virar o protagonista dum novo affair Ed Motta.
Haverá telós racistas soltos por aí? Que é que você acha?
Pessoalmente, conheço uma pá de racistas. E uma enxada de homofóbicos. E xenófobos. Misóginos. E misândricas. Certa feita num diálogo na orkut uma dona me disse o seguinte: “Vocês machos só querem a mulher no colo e o colo da mulher. Basicamente, uma mãe prostituta.” E tive de engolir calado a acusação, pois a dona não me deixou retrucar nem explicar que não era bem meu caso, praticamente me obrigando a executar de má-vontade o quem-cala-consente. Depois fiquei pensando se ela tacava esse petardo ready-made contra todo homem com quem conversava na internet. No final das contas deduzi que sim. E não nos falamos mais e ela prosseguiu em sua carreira cibernética distribuindo pitacos politicamente sensatos e sensíveis em seus perfis digitais, construindo cuidadosa e elaboradamente a imagem de santa que escolheu desempenhar.
Adultos, cedo ou tarde passamos pela necessidade de estabelecer uma relação de intimidade emocional com alguém. É situação deveras comum entre casados e amantes e amigos. Você então expressa seus sentimentos e pensamentos mais profundos, aqueles que tem protegido diligentemente da curiosidade alheia, para se aproximar ainda mais do outro. Esperando a contrapartida, que, se vier e for de fato sincera, fechará o ciclo da catarse. Isso acontece porque somos profundamente solitários por dentro. A maneira como lidamos com essa solidão interior depende da personalidade de cada um de nós, obviamente. Eu, por exemplo, procuro conviver com ela escrevendo.
Há os que se horrorizam com o modo escrachado com que tento me desmascarar em público.
É parte essencial da lida do escritor mexer com suas emoções inconfessáveis e botar fora suas tripas. O êxito do trabalho de qualquer escritor tem relação direta com sua capacidade de ser honesto e sincero consigo mesmo e com quem quer que esteja envolvido em seu mundo. A lenga-lenga podemos deixar a cargo dos artigos insossos que os incontáveis colaboradores da Folha de SP trazem à tona todo santo dia em banho-maria eterno que nunca cheira nem fede. O assunto do escritor – e, ainda mais, do poeta – é a expressão do que sente. Se houvesse uma pesquisa do Datafolha entre escritores e poetas sobre a pergunta que todos eles se fazem o tempo todo – o que é escrever? –, a resposta seria: a necessidade de se expressar pelas palavras. Se pensar nisso, você concluirá que é tema para uma vida inteira.
Estou tão acostumado a expressar o que sinto e penso tanto aqui em meu blog quanto pessoalmente, que desaprendi a medir minhas palavras. Minha lhaneza só me traz confusão, claro. Como escrevi outro dia, o brasileiro médio não sabe tolerar a franqueza. Leva quase tudo no mau sentido, o pessoal.  O resultado é que somos um dos povos mais hipócritas do mundo. Não foi com sofismas e tergiversações que americanos e europeus construíram seus impérios, creia. Como sempre digo, cem mil pessoas são assassinadas todo santo ano entre crimes e trânsito e fingimos solenemente que não estamos nem aí.
Em geral, bidu, nos arrependemos do surto de sinceridade se o surto for deveras revelador das nossas fraquezas.. Onde eu estava co’a cabeça contando meus segredos pr’aquele cafajeste? Por que fui me expor pr’aquela ordinária? E o sabor amargo do arrependimento só tende a piorar quando revelações pessoais são acompanhadas de fotos pra lá de íntimas, como tem ocorrido rotineiramente na internet. Cedo ou tarde nos damos conta de que quebramos a cara confundindo fóruns e portais de relacionamentos com confessionário. Ou pior: divã de psicanalista.
Moral da história: privadamente somos o que somos; publicamente, somos o que os outros esperam que sejamos. A internet veio nos agraciar com a divina capacidade de sermos nossos próprios criadores. Em nossos perfis, em nossas páginas, em nossos blogs podamos o que temos de feio e sujo para montar uma ficção desejável, ou pelo menos aceitável, pelo olhar alheio. Isso também é verdade no mundo lá fora? É. Mas não com tantas ferramentas e artifícios ao alcance do mouse.
Como Michel Teló acabou de aprender através da própria pele, a rede mundial pode se tornar uma tortura para o indivíduo, nos sentidos antropológico e filosófico, sentidos que hoje em dia não dizem nada para quem se viciou a atuar apenas como turba e a desmanchar suas peculiaridades individuais no meio da massa. Nessa colossal vitrine que nos expõe todos a todos, parece que o indivíduo tem cada vez menos chance de sobreviver ante o coletivo. A tolerância da turba por idiossincrasias é zero. A gafe de Teló foi apenas uma imprudência inocente e talvez a mídia, em sua eterna busca da sensação, tenha lhe dado mais importância do que o caso merece. A coisa pega de verdade é quando alguém se atreve a externar o que pensa se o que pensa não se coaduna com os padrões férreos estipulados tacitamente pelo coletivo. Como disse acima, conheço um montão de gente racista, homofóbica, xenófoba, misógina. Que não tem pudor em se mostrar como tal dentro das fronteiras da privacidade. E conheço também gente que é tudo isso mas finge não ser. E há também os que são racistas coisa e tal mas não toleram os que assumem ser.
Afinal, um indivíduo tem o direito de dizer que não gosta de negros, gays, judeus, mulheres, esquerdistas, fumantes, corintianos sem incorrer em discriminação contra um outro indivíduo particular, ou é obrigado a ocultar suas preferências para não ser massacrado pelo coletivo? Onde está o crime em não pensar como a maioria diz que pensa?
Parece que o indivíduo idiossincrático, que busca ver o mundo da forma que escolheu ver e não como a “sociedade” exige que veja, está se tornando um pária. Um defeituoso social. Que, vicariamente, também deveria ter o direito de exigir que a maioria não o assoberba de preconceitos.
Como ficamos?
A hipocrisia está comendo solta. Não só porque salta aos olhos nos portais de relacionamento mas sobretudo por uma mera questão de economia. Os recursos naturais escasseiam dramaticamente e a disputa por eles cresce minuto a minuto. Vivemos, cada um de nós, privada e coletivamente, conflitos insolúveis que fazemos de conta que não existem. Se fosse filósofo, concluiria que a praga do politicamente correto e as ações afirmativas são apenas a ideologia apropriada para uma época em que quem está em perigo não é essa ou aquela minoria social, étnica, religiosa ou qual seja e sim a humanidade toda. Talvez o PC esteja emergindo naturalmente das cabeças justamente para diluir as diferenças internas das sociedades e começarmos a nos unir para enfrentar o mal que nos é comum a todos: o começo do fim do planeta.
Se estiver certo, quero que depositem meu Nobel na Suíça.
E pensar que trucidaram o Teló por uma bobagem politicamente correta e nem o multaram por ter perpetrado o ai se te pego...