Aviso aos naverrantes II

O naverrante que por caminhos insondáveis vier desembocar pela primeira vez neste blog certamente estranhará o título. (Pra quem não notou, “UM BLOG LITERÁRIO BRILHANTE”, tudo em caixa-alta, próprio dos cabotinos histéricos.)
Donde veio a ideia de achar que os textículos por aqui brilham, nem imagino.
E, além de reluzir na mais escura treva da mais longa das noites, este meu pequeno blog vai singrando pesadamente pelos vagalhões sinistros do mar gélido da solidão cibernética, brbrbrbrbrbrbrbrbrrrrrrr brbr brbrbr brbrbr brrrrrrr brbr brbrbr br brbrbrrrrrrr.
O naverrante ávido por horizontes desconhecidos encontrará por estas praias com excesso de areia árida e escassez de vida e abundância de conchas abandonadas cadáveres e esqueletos para todos os gostos. Bem ao, com perdão da anáfora, gosto dos odisseus modernos.
(E pensar que certos leitores de tão modernos, nem ao menos leem.)
Tem lirismo comedido para os retardatários do Otto Maria Carpeaux, tem lirismo descomedido para os atrasados do Modernismo mundial, tem grandes teatros sem ninguém no palco e narrativas farsescas que nunca terminam. E tem muitos outros tipos de lirismo cuja taxonomia, que ainda não tive tempo de levar a efeito, acho que deixarei a um crítico da Folha ou da Veja quando finalmente se dignar a fuçar o sítio arqueológico dos blogs literários.
Afora a lira ocasionalmente desafinada, o naverrante verá também que o que não falta por aqui é desabafo. O autor – eu – é e sempre foi um sujeito deveras etc e por isso precisa bidu, caso contrário é bem capaz de pois é.
Como já mencionei em outras ocasiões, primeiro sofri aquele tremendo afogamento de nove meses dentro do útero de mamãe (que nem por isso pegou leve depois de me expulsar sumariamente de seu ventre; muito pelo contrário, até; ficou tão ressabiada, que dedicou parte da minha infância a me fazer pagar pela gravidez que, no meu entendimento, era desejada apenas por esse ajuntamento vago de vizinhos, parentes, amigos e conhecidos que se unem para formar a coação social e nos obrigar a fazer o que não queremos; até hoje, sempre que chego em algum lugar, a primeira sensação é que não sou bem-vindo; esse sentimento de “deslocamento”, como gostam de se orgulhar poetas e rebeldes em geral, não surgiu à toa). Me conhecendo como me conheço hoje (já fui muito mais ignorante a meu próprio respeito, creia), nem imagino como suportei aqueles nove meses sem respirar, sem mudar de ambiente, sem ter como sair correndo para a rua com minha Zezeí mescla de chiuaua e dog alemão como faço agora sempre que me dá essa minha gana de tacar meu cabeção na parede por não ver saída deste cul-de-sac em que fui metido.
Só a título de ilustração do “maternal” tratamento materno que recebi, certa ocasião fui rebocado pela orelha esquerda ao longo de um quarteirão e meio por ter surrupiado uns trocados da carteira da velha e comprado uns pacotes de figurinhas na quitanda da esquina. A meninada de-bem-coa-vida dos tempos que correm nem imagina que as frágeis orelhinhas dos capetas de antanho serviam mais de alça do que qualquer outra coisa. Eu era o único – ou um dos únicos – moleque das redondezas destituído da regalia de ter um álbum dos grandes times paulistas e não podia permitir que essa falha gravíssima – que escapava cabalmente à minha responsabilidade – virasse motivo de deboche da minha pessoa. Todo mundo que já teve uma infância e sua babá sabe que violadores das regras sociais infantis não têm perdão – cedo ou tarde acabam no ostracismo, castigo pior do que uma tunda moralizante aplicada numa quebrada qualquer na volta da escola ou um muquete no pé d’ouvido só para lembrar quem é que manda no pedaço.
Mas, peraí, estou atropelando o enredo. Apanhei muito dentro de casa antes de começar a apanhar na rua.
Comecemos do começo.
Minha gestação foi bastante tardia, digo, para os padrões de hoje. Mamãe contava 41 outonos. Naquele annus mirabilis de 1954 (Getúlio estourou o próprio coração c’um balaço parcos quatro meses antes da minha entrega; uma época fiquei bastante chateado por ele não ter me esperado), normal.
(Falando em Vargas, certa vez, alguns meses antes do meu incidente inaugural, o presidente passou com sua longa comitiva na rua lá de casa rumo a uma fábrica de ladrilhos que à época era a maior da região. Mamãe e toda a vizinhança acorreram às calçadas para agitar bandeirolas e flâmulas (comuns então) e saudar o grande líder misto de salvador da pátria e ditador, mais ou menos como o homúnculo misto de stalinista e demagogo que nos honrou com sua presidência antes da ascensão de Dilma Vana. Lamento pacas que a moda inaugurada por Vargas de se safar duma crise política dando cabo da própria vida não tenha sido seguida por outros grandes líderes que vieram nos atazanar a existência depois. Estou torcendo fervorosamente para que Lula se candidate no lugar da Dilma Vana este ano. Assim, a esperança será a penúltima a morrer.)
Naqueles tempos era comum mulheres de 40, 50 e até mais parirem. Como vocês sabem, quanto mais a fêmea mantém seu mecanismo procriador ativo, mais aumenta sua capacidade de proliferar e mais prolonga seu período de fecundidade. Hoje dizem que o risco de gerar um portador de Down é enorme. Ui que me arrepio. (Só a possibilidade de gerar um ser flagelado com algum mal incurável é motivo para sequer sonhar em ter filhos. E mesmo males curáveis dão o que pensar, naturalmente. Sendo que a própria vida já não tem cura, pra começo de conversa. Embora esta seja uma outra conversa.)
Por outro lado, em minha infância e adolescência nunca conheci nenhum desses pobres coitados amaldiçoados com a mortificação do Down, apesar do grande número de mulheres que engravidavam tarde antigamente. Sei, era apenas falta de conhecimento. Hoje se divulga tudo, se sabe tudo. (Mudança forçada de rota neste ponto. Não sei falar deste assunto.)
Papai, por seu turno (ando tão afonso-arinos-de-melo-franco), estava a uma semana de completar 45 quando desci ao mundo naquela fatídica, candente madrugada do dia 14 de dezembro. (Dizem que maioria das encomendas chegam de madrugada, será verdade?) Sim, ambos com idade para ser meus avós. Talvez tenha sido o que foram de fato, sem me dar a compensação daquele lado benigno, segundo explicam os entendidos nesse tipo de coisa, da condescendência, quase licenciosidade, com que os avós tratam os netos em contraposição ao rigor disciplinatório aplicado pelos pais.
Quando desembarquei da minha cápsula aconchegante e protetora mas desprovida de ar e passatempos, minha avó materna era a única a ainda resistir bravamente viva. Só foi dar o último suspiro aos 63, em minha casa, quando eu já celebrara o oitavo aniversário na presença do meio-irmão mais velho, da meia-irmã mais velha, da irmã mais velha, dos primos e parentes e nenhum vizinho. Foi vovó quem me ensinou tacitamente a palavra “neurastênica”, cujo significado e significação nunca mais esqueci – malgrado as tentativas nos incontáveis, homéricos porres que tomei e venho tomando com devoção mais e mais intensa a cada dia. Arrastava malsã pra lá e pra cá o corpo alquebrado de tio Goriot entre os cômodos da casa e o quintal, sem se preocupar em esconder ou disfarçar uma máscara amarga e o dissabor de existir. Não falava, só se exprimindo aos resmungos, no mais das vezes monossílabos impacientes que soariam qual latidos se fossem mais potentes. Quando comecei a desenvolver um tico de consciência das coisas me dei conta de que movia minha avó uma profunda revolta de viver. É um sentimento absolutamente assoberbante que me ocupa a mim também a maior parte do meu tempo e contra o qual tenho de travar uma luta permanente para não sucumbir, batalha quase sempre perdida. É revolta comum em quase todos os descendentes da mãe de mamãe. O que me distingue da maioria, acho, é que eles parecem ter aceitado quase com naturalidade o amargor hereditário, se deixando entregar a uma rabugice que, com a noção de total bem-estar e sanidade e busca sem tréguas da saúde física e mental que regem a ideologia de hoje, dificilmente seria tolerada. Ou geraria conflitos que certamente dariam na ruptura. E seríamos ainda mais solitários do que nos coube ser.
E o lado materno e seus vastos emaranhados é, obviamente, apenas o segundo membro da minha equação de infinito grau. O primeiro, o paterno, talvez seja ainda mais intrincado. Mas não tenho ânimo de tratar dele agora. E, mesmo tendo chegado até aqui (para minha própria surpresa), não me sinto confortável como memorialista. Prefiro meu papel de escritor sem uma história pra contar. Ou, em nome da minha tradição pessoal que venho me esforçando caninamente para construir, de ator sem um papel pra representar.
Sobre minha ascendência paterna, vou citar apenas que seu embate com meu lado materno gerou um resultado explosivamente malfadado.
O casamento de mamãe e papai foi o segundo para ambos. Este trazia na bagagem um filho adolescente. Aquela, uma menina, também na adolescência. Anos antes mamãe perdera para a hemofilia um menino, com apenas nove, morte que, aos meus olhos, parecia ter aceitado c’uma candura que nunca consegui compreender. Talvez como consequência do catolicismo, que era sua razão de viver.
O casamento se deu ainda num vilarejo chamado Américo Brasiliense, próximo a Araraquara, onde meus avós maternos mantinham uma padaria, escalando a filha primogênita para o cuidado de seus sete irmãos. A família de papai – que tinha oito irmãos, um a mais que mamãe – habitava uma grande fazenda de café situada num lugarejo de nome Santa Lúcia, na mesma região.
Papai começou a trabalhar na roça aos nove. Juntamente com os irmãos, acordava à quatro, empunhava a enxada às quatro e meia depois dum grande copo de leite tirado diretamente de úberes bovinas adoçado com açúcar cristal, almoçava às dez, jantava às quatro da tarde e às sete da noite já estava debaixo das cobertas. O dia de cada um dos precoces roceiros era repleto de aventura, logicamente – o eterno mourejar contra a indomável natureza – que hoje, aparentemente, estamos domando ao extermínio – e sua insistência em cercar cada pé de café c’uma trempa de touceiras do inferno. (A blasfêmia é minha. Papai não blasfemava. Nunca escutei um único palavrão de seus lábios. Em contrapartido, emito um a cada cinco segundos. Como lamento não tê-lo mais por perto para apreciar sua docilidade e circunspeção.)
Foi em Américo Brasiliense que nasceu minha irmã, dois anos mais velha que eu. Logo em seguida a dupla de caboclos se mudou com sua pirralha para perto de Sampeia, onde mamãe, instada por papai, viria a ter um aborto, que deplorou dia após dia até seu último suspiro neste mundo, de que partiu duas semanas antes de soprar 96 velinhas. Profundamente religiosa, nunca se perdoou. Imagino que tenha sido trágico também para papai. Pouco depois chegava minha vez. Queria sinceramente poder evitar mas não resisto a especular como seria se o “destino” me tivesse trocado de lugar com aquela vida que gorou pouco antes de mim. Soa frívolo, sei, mas este blog então não existiria e não existiriam todas as coisas e nem o mundo e nem a vida e tudo seria simples e hoje não seria domingo e as crianças não estariam fazendo algazarra em frente aqui de casa.
Veio então aquele asfixiamento, frenético afã que todo mundo e seu pediatra comete contra um réu recém nascido. A família acorria em peso à nossa humilde casinha encarapitada no alto da ladeira para contribuir com a solidez da educação do novo bambino e se empenhar no máximo esforço de evitar que o pobrezito desse co’s burros naquela água que vai escasseando hoje em virtude da imprevidência da Sabesp. (Alguém aí já leu, quer dizer, tentou ler os artigos dominicais dum sujeito chamado Gaudêncio Torquato nas edições dominicais do Estadão? Ele escreve assim. Assim como? Como escrevi acima, largando displicente símiles sem-vergonha ao longo do texto até lograr a mais insossa e atravancada salada literária da Terra.)
Bem, como estava dizendo antes de me interromper, todo mundo e seu coroinha vinha em casa ajudar a macerar lições de vida para o novato. Sendo a família constituída de beatos, um padre ou outro sempre dava uma passadinha. E tia era o que não faltava. Cada uma mais neurastênica que a outra e todas mais que a matriz.
A troupe reunida formava um coral de lamentações que entoava sem parar a grande, a imensa sinfonia a capella da minha infância, feita só de gemidos, guinchos, lástimas, muxoxos, cochichos e sussurros. Para tristeza de Bergman, gritos eram raríssimos, quase inexistentes. As carrancas de padecimento não ficavam atrás com narigões italianados a se torcer e retorcer, cenhos a franzir e desfranzir, lábios crispando, se amorfanhando, enrugando, esticando, dentaduras mordendo, pálpebras se espremendo, emprestando ao conjunto a mais poderosa carga de drama e furor que jamais presenciei. Papai assistia a tudo num canto, impávido colosso, não tenho certeza se divertido. E o pequeno paladino na voragem do olho do furacão do vórtice do redemoinho só tentando entender, estado em que se encontra até hoje.
Até os três, quatro aninhos penei pra c’ralho (sim, ainda na minha fase lusitana) nas mãos dos meus amorosos genitores e tias à beira dum ataque de nervos e primos cruéis e padres tarados (com perdão do pleonasmo). Pois que estavam decididos a fazer de mim um vencedor na vida.
Quem venceu foram eles.
Depois passaram a bola – eu, de novo – para os vizinhos e os filhos dos vizinhos e a comunidade em geral. A ideia, imagino, era me socializar, verbo que deixaria ambos – mamãe e papai – apreensivos se a pedagoga do instituto de ensino onde me enfiaram um dia para que o taciturno, enigmático, amargurado, quase lúgubre e provavelmente misantropo diretor seu Vicente me mantivesse sob seu olhar cujas características ensejariam uma fileira ainda mais comprida de adjetivos  o pronunciasse durante uma reunião de pais e mestres. Como nem tudo na minha vida foram espinhos, por sorte eles nunca compareceram a uma tal reunião, lavando as quatro mãos e por conseguinte designando a uma estranha a missão de ensinar ao pestinha onde a porca torcia o rabo. Tinham mais que fazer além de escutar as admoestações técnicas que uma fariseia desconhecida pudesse ter sobre o rebento que tinham arrancado do nada com tanto sacrifício.
Como devem estar lembrados, disse no parágrafo acima que a “ideia” era me socializar. Certamente perceberam que foi apenas força de expressão. Mamãe, sua única ideia do que quer que fosse era descolar uns trocados na cidade grande pra ver se deixava pra trás a infância e a mocidade de mínguas no balcão da padaria da Américo Brasiliense velha de guerra. A aspiração a crescer na vida era pelo menos um começo. Pois papai, esse não tinha ideia absolutamente nenhuma. Foi indo aos trancos e voltando aos barrancos aonde quer que mamãe o puxasse pelo braço, ar entre apático e agoniado, um defeito de infância no pé direito que o obrigava a mancar distintamente e, por isso mesmo, um andar meio trôpego, a encarnação da insegurança. Asseverar que nutria um plano para fazer de seu caçula – eu, mais uma vez – um cidadão minimamente “resolvido”, para usar o jargão moderno, seria viajar na maionese. Lá em casa não tinha dessas chiquezas não. vivíamos da mão para a boca.
Bem, por ora esta sessão de reminiscências vai ficando por aqui. Se a preguiça me largar, talvez acabe obrando uma autobiografia qualquer hora. Mas acho que já a perpetrei. Está tudo aí atrás neste mesmo blog. Se viesse a fazê-la, a biografia, é bastante provável que trouxesse a lume apenas o lado ruim. Ficaria mais manca que papai, que por sua vez não era tão manco quanto um irmão de mamãe que trabalhava na estação ferroviária, acho que também em Américo, e teve o pé atingido por uma daquelas argolas metálicas que antigamente eram arremessadas na plataforma pelos maquinistas quando o trem passava pela estação sem parar. Se usavam as argolas para entrega de mensagens provenientes de outras estações. Esse tio também neurastênico como os demais membros da tribo.
Well, comecei me dirigindo aos meus prezados naverrantes e, pra variar, acabei perdendo o rumo. É uma das coisas que mais gosto de fazer. Senão a única. Nunca tive rumo, nunca quis ter, nunca gostei de ter, nunca deixei que me obrigassem a ter. É assim que sei fazer o (pouco) que faço, é assim que sei ser o que sou.