Dementenlevo
A cafeteira grunhe, o café está pronto.
Quer desligar o fogo para que não queime
eternamente.
Precisa escrever o poema que nunca
escreveu.
Tudo parecia relativamente bem até ontem,
apesar de tudo estar intoleravelmente mal como sempre.
Tenta girar o botão, o botão se recusa.
Nos últimos tempos essa medonha tentação
de dar um fim a tudo que escreveu até hoje.
O fogo queima implacável.
Ontem ela chegou à cidade, disse alguém.
Podia ser sua libertação. Ou sua danação.
Sua definitiva danação.
Essa chama não pode persistir para
sempre, alguém precisa fazer alguma coisa.
Anos, inomináveis anos sem escutar a voz
dela, como pôde?
Precisa esquecer o poema que nunca
escreveu.
Vou telefonar, pensa, olhar hipnotizado
pela flama azul.
Telefonou depois de hesitar o dia
inteirinho.
Ela morreu, alguém disse do outro lado. Morreu
dum mal súbito. Há anos.
O café parece espantosamente frio. A manhã, pavorosamente fresca.
Insondável branco
Não compreendo uma árvore.
Não compreendo que se abra numa profusão
de lâminas que podem tomar aleatoriamente a forma bipinulada, espiralada, aristada,
acicular, linear, lanceolada ou tantas outras. Não compreendo por que um botânico
queira me explicar por que deve ser assim. Mas compreendo que a árvore se
sustente num caule cuja espessura será proporcional ao tamanho e ao peso da
copa. Não compreendo seu porte nem por que pode ser pequena ou grande em relação
à que brotou ao seu lado. Não compreendo sua figura inorgânica. Não compreendo sua
ramagem nem cada um de seus galhos longos ou curtos, grossos ou delgados, lisos
ou ásperos. Não compreendo que uma árvore se junte a outra e outra para formar
uma floresta. Definitivamente, uma floresta é para mim o que há de mais incompreensível.
Não compreendo uma árvore. Não compreendo
sua sombra nem quem a procure para se deitar. E não compreendo quem não a
busque. E não compreendo crianças que gostem de trepar em árvores, nem tampouco
homens que sequer cogitam fazê-lo.
Não compreendo uma criança. Não compreendo
um homem, embora compreenda que não há um nexo entre uma incompreensão e outra.
Tampouco compreendo uma mulher. Não compreendo
que mulheres se liguem a homens para gerar um ser. Por que e para que,
compreendo ainda menos.
Não compreendo uma salada de agrião e brócolis.
Não compreendo uma rua sob a garoa fina.
Não compreendo um búfalo, uma prece, um
par de velhotes jogando dominó na mesa dum bar, uma tartaruga botando ovos numa
praia pela derradeira vez, um rock entreouvido em alguma casa da vizinhança.
Não compreendo meus pensamentos e muito
menos os dos outros. Não compreendo minhas verdades nem por que os outros não
as compreendem. Não compreendo por que não me compreendo, por que ninguém me
compreende.
Não compreendo por que escrevo mesmo
assim.
Não compreendo por que o que menos quero,
o que menos tento, o que menos preciso neste mundo é compreender.
Do que existe no universo não compreendo quase
coisa alguma: a luz que ilumina as estrelas e os planetas e o olhar na beleza
dum rosto dentro do ônibus no fim desta tarde de dezembro que me vislumbrou com
compreensível indiferença.
E hoje, depois de existir por tenebrosas noites
antecedidas de imemoráveis dias, cada qual igualmente incompreensível, finalmente desisto de compreender a vida. E por que tive de vivê-la.
παράκλητος
Olhar as coisas como se fosse a primeira
vez. A natureza nos faz não olhadores mas acostumadores. Nascemos e vamos
crescendo olhando ainda sem a capacidade da compreensão. Quando aprendemos a
compreender já é tarde, estamos acostumados. Nosso olhar está viciado, viciando
também e embotando o que já nem compreensão mais é, mas mera
repetição. Nos viciamos em confirmar, enterrando nossas dúvidas sob o vício. Olhamos
cegos, percepção adormecida, inscientes da contradição. Quando as contradições
começam, cedo em nossa consciência, seu desfile perante nosso olhar opaco, dói,
nossa compreensão reprimida não pôde alcançar a aceitação da dor, que lateja
insentida e nos faz sofredores insensíveis. Quando a dor ultrapassa o limite da
tolerância e nos arranca da apatia enfermiça, nos forçando a reconhecê-la, nos
proclamamos heroicos. Nos vemos capazes de subjugar os defeitos da vida. Nos forjamos
vencedores – vencemos a batalha contra o inimigo cujo cadáver não vemos. Combatemos
a batalha errada contra o inimigo errado e batemos no peito, do qual liberamos
o urro glorioso da vitória fictícia. A natureza, nossa ama, mãe e madrasta, carrasca
e confortadora nos faz tremulamente serenos no jardim florido e perfumado por
onde espalha armadilhas disfarçadas de espelhos mágicos. A natureza nos cria para
o malogro da morte, plantando em nosso coração a justiça impossível do
universo.
A revanche
Ando seco de vontade de escrever desde
ontem cedo mas taux sem assunto. O melhor método de encontrar assunto quando me
acho neste estado é fazer exatamente o que estou fazendo: me olhar bem nos
olhos e confessar.
Há três pilhas de livros na minha mesa,
outras duas na mesinha do meu lado esquerdo, outras três na mesinha depois
desta. Não vou enumerar os livros pois vocês meus quase etc já sabem de idem. Cada um deles, livros, é um mundo à parte, uma experiência distinta, um
lago profundo e gélido no qual mergulhei um para emergir outro.
Não resisto. Puxo Carpeaux para mais
perto, abro, folheio. Novecentas e quarenta páginas. É o segundo volume dos Ensaios reunidos, coligidos e editados
pelo histérico Olavo de Carvalho, que, inteligente e culto como poucos, podia
se mancar que o brasileiro médio é xucro e ignorante e precisa ser catequizado desde
o abecedário e está pelo menos duzentos anos longe duma compreensão minimamente
adulta do mundo e não adianta – pelo contrário, é contraproducente – coisa
nenhuma ficar sapecando as tamancas no piso de mármore tentando lhes enfiar
algo de sensatez na cachola como Olavo insiste em proceder. A verve, o frenesi,
a contundência com que Olavo expõe suas opiniões e chama pra briga esquerdistas
desmiolados tem resultado apenas no recalcitramento do esquerdismo bunda-mole.
Outro cuja histeria dá co’s burros n’água é Reinaldo de Azevedo, milhares de
milhas menos culto e muito menos sincero e honesto que seu guru. Azevedo podia
começar uma repaginação de sua imagem eliminando aquelas fileiras de pontos
exclamativos de seus textos e reduzindo sua produção diária a um nível em que
sacrificasse a quantidade em prol da qualidade informativa e estilística. A
estratégia que usa para manter seu alto ibope consiste em entuchar a claque dum
palavreado tiritante eivado de cabotinismo, autorreferências e demagogia,
invariavelmente se promovendo como o maior explicador da cena política. Ao contrário
do que leitores inteligentes esperariam dum articulista, é exatamente na
demagogia que Azevedo tem seu ponto forte – o rebanho acessa seu blog sempre em
busca de mais do mesmo. Eles sabem o que vão encontrar e se esbaldam na mesmice
e na obstinação nauseabunda com que Azevedo pisa e repisa em cada postagem os
mesmos refrões embalados sob as mesmas boutades e o ramerrão cansativo. Seus leitores
na certa debandariam se ele resolvesse privá-los do previsível. Um bom antídoto
para essa pasmaceira intelectual são a ironia elegantérrima dum Guilherme Fiuza
ou a dicção desapaixonada mas perplexa dum Arnaldo Jabor (que não poupa
desancadas num dos homens mais obtusos e sinistros destes tempos, George W. Bush,
tenazmente enaltecido por direitistas empedernidos) ou o ritmo estonteante dum
Marco Antonio Villa e sua sempre esclarecedora perspectiva histórica. O campeão dos algozes intelectuais do
lullopetismo continua sendo, repito, Fernando Gabeira e suas as análises que
denotam acima de tudo desambição de se tornar guru. Seus julgamentos serenos, comedidos
produzem um efeito que as diatribes de Azevedo estão longe de lograr: o
convencimento, que, por princípio, deveria ser a preocupação primeira dum
comentarista. Azevedo alcança precisamente o oposto. Agrada aos que pensam como
ele e frustra e afasta leitores que buscam honestidade e isenção. E Gabeira tem
a inestimável vantagem de não se guiar pela ideologia. Diz o que pensa, não o
que ditam os manuais políticos ou as cartilhas partidárias ou os catecismos do
proselitismo sectário. Gabeira tem autoridade moral e intelectual para devastar
as fanfarrices do partido que ora se segura no poder a golpes de imposturas e
ao mesmo tempo lamentar a inefável tragédia do Rio Doce, luxo a que um bigot como Azevedo não se pode dar, pois
deve satisfação primeiro ao clã ideológico na qual prosperou e para a qual todo
e qualquer posicionamento pró defesa do meio ambiente é anátema, patronos do
atrasos que não se cansam de desqualificar ambientalistas como ecochatos. Os ambientalistas são é
moderados extremamente. Cientistas que denunciam a hecatombe do aquecimento
global sofrem o escárnio dos paus-mandados do capital, como se a degeneração não
estivesse bem diante dos nossos narizes. A sanha e a velocidade com que a fauna
e a flora vêm sendo dizimadas planeta afora estão a gritar por um confronto radical.
A poluição tem de começar a ser reduzida hoje!
Os métodos e os sistemas ambientalmente deletérios precisam começar a ser
mudados hoje! Não há mais tempo para reuniões
de cúpulas mundiais em que suas excelências tomam um cafezinho e trocam
tapinhas nas costas e se comprometem com soluções para daqui a cinco décadas, pusilânimes
que são em descontentar eleitorados retrógrados e em peitar o poder econômico a
explorar alegremente os recursos naturais à exaustão. Tentar imaginar um mundo
medonho sem matas nem animais silvestres é um exercício de autotortura.
Azevedo e congêneres são paladinos duma
direita que em pleno século 21 insiste em não enxergar problema na devastação
da natureza. Eis a razão por que o maniqueísmo ideológico pode ser o mais
nefasto dos pecados. A isenção é uma das maiores virtudes – e acessível a
poucos. Requer genuína bravura. O honesto reconhece e assume suas contradições;
o pilantra finge que não as tem. A razão passa a ser mero pretexto.
Honestidade exige coragem, por isso somos
quase todos covardes. Como dizia Willy Brandt, geralmente precisamos de mais
coragem para mudar nossa opinião do que para mantê-la. O maior e o pior
impostor é aquele que se propõe mudar as coisas sem reconhecer que quem deve
mudar primeiro é ele próprio. Aprendi com os grandes poetas – e com minha
experiência – que a única constante da vida é a mudança (podem citar, não exijo
copyrights). Ao longo da existência mudamos em literalmente todos os sentidos –
etária, biológica, emocional, filosófica, moral e politicamente. E, se mudamos,
tudo e todos à nossa volta também mudam. Estar atento à mudança constante e
identificar o novo que nasce sem parar, só os tremendamente talentosos e íntegros
são – ou seriam – capazes de. Aquele que se mostra aos outros um sujeito de
princípios pétreos e opiniões absolutas se pretende, perante si e os outros,
consistente, no sentido anglo-saxão do termo. Fingindo-se um não fingidor, se
quer lógico e racional (rings a bell?), ignorando que Fernando Pessoa “fingia”
(isto é, explorava em si mesmo formas diversas de ser) exatamente para tentar
atingir a verdade ou pelo menos aproximar-se dela. O grande feito de Pessoa foi
ter compreendido que o intelecto e a inteligência entreabrem à nossa consciência
apenas uma fresta da janela através da qual imaginamos enxergar o mundo e a
vida. Não à toa, Pessoa foi contemporâneo de Nietzsche, Rilke, Heidegger e
Freud. Todos eles provaram, ou pelo menos descobriram indícios, que conhecer
significa aprofundar nossa ignorância, isto é, perceberam que não sabemos quase
nada de nós mesmos e nossas “verdades” são meras muletas que nos deu a natureza para servir-se de nós e cumprir imperiosamente seus desígnios insondáveis.
A natureza – a vida – seguirá intratável por séculos, provavelmente milênios. Ou
infinitamente.
Sei, nos últimos tempos tenho resvalado
mais vezes do que eu mesmo gostaria em minhas investidas contra Azevedo e
outros parlapatões vejeiros e é capaz que a maioria dos meus quase três
leitores e meio acabe achando que estou virando casaca. Bem, que tenho feito
isso só nos últimos tempos é papo furado. E, well, vocês estão carecas etc mas
não dou lhufas para o que achem ou deixem de achar de mim. Certo, é por isso
que quase ninguém me lê. Mas é também por isso que tenho liberdade de escrever
o que me der na telha, ao contrário dos “articulistas” da grande imprensa que são
obrigados observar ordem, método, coerência, lógica e prosápias que tais que,
sabem os que me leem, não passam de bullshit. Tudo bem, admito que forço a
barra citando Pessoa e Freud no contexto do lullopetismo e já mencionei vezes e
vezes que a canalhice de lulla e seus asseclas pede toda a agressividade
azevediana e mais um pouco. Só que, outra vez, Azevedo de certo tiraria mais
proveito político e até ampliaria seu público entre os não visceralmente
antilullistas se moderasse seu cabotinismo e sua empáfia.
Bem que gostaria, obviamente, de poder
descer a ripa também no outro lado. O problema, porém, é a escassez de
material. Se Azevedo não chega aos tornozelos de Olavo em erudição e capacidade
argumentativa, os blogueiros e jornalistas esquerdistas e “progressistas”
disponíveis na praça não chegam à sola dos pés do Professor Pardal da Veja. Na
Folha de S. Paulo você pode ter uma ideia da indigência intelectual e moral dos
que defendem o petismo. Hoje mesmo um tal de Gregório Duvivier, membro dum tal
de Porta dos Fundos, assinou um artigo no site do jornal miseravelmente pueril
e abaixo da crítica. E, claro, todos eles brilham pelo cinismo com que tentam
distorcer os fundamentos constitucionais para o impeachment da Anta os tachando
de golpe. Eu é que não vou cansar minha beleza com neandertais desse naipe.
Falando em golpe, a Mandioca Sapiens bem
que merecia uma intervençãozinha manu militari
no meio daquela fuça acéfala. A tentação de apoiar um movimento dos quartéis é
grande, mas resisto. A esta altura é tudo que os saqueadores do Erário em nome
do “povo” querem, assim poderiam apelar para a única coisa que sabem fazer: se
fingir de vítimas. Uma intervenção militar automaticamente lhes passaria um
atestado de inocência com selo e firma reconhecida, mesmo – ou ainda mais – que
fossem julgados e condenados por seus crimes lesa-pátria posteriormente. Está sendo,
e ainda será por bom tempo, doloroso atravessar o oceano de sordidez no qual o
País afundou sob o lullopetismo, mas a única punição suficiente e satisfatória para
o ditadorzinho do ABC, para Dilma e para a gangue toda será o julgamento e a
condenação estritamente nos termos da Constituição. Assim, daqui uns anos
quando tentarem voltar, não poderão alegar que foram injustiçados. Cabras como
Nietzsche e Ortega y Gasset tinham desdém pela democracia e nisso estou com
eles, mas agora não dá mais para sonhar com um mundo pautado pela excelência, a
meritocracia e a precedência dos mais aptos e capazes.
O que desanima no duro é a omissão do
pessoal das letras nesse debate. Me espanta ver que os escritores se recusam a
meter seus dedões ilustres na chaga pútrida do lullopetismo. Não me refiro
naturalmente ao encimadomurismo dum Carlos Heitor Cony na Folha, nem às crônicas
insípidas e inócuas dum Ignácio de Loyola Brandão no Estado. O universo literário
parece ter-se convertido num cemitério. Que é que pensam nossos maiores autores
e autoras da repugnante infâmia em que lulla e companhia fazem os brasileiros
chafurdar? Têm uma opinião? Estão se manifestando? Onde?
Vocês são testemunhas. Bem que tentei descolar
um assunto pra acelerar a passagem desta modorrenta tarde de quarta-feira. Desisto.
Vou retomar a leitura errática dos meus livros. Estou cercado deles. Pilhas,
pilhas e mais pilhas. Pilhas titubeantes e convulsas em que os debaixo pelejam
para ascender ao alcance dos meus fatigados olhos, ganhar o privilégio da minha
enfermiça atenção.
Não fossem eles eu não existiria. E são
excelentes substitutos para pessoas. Não falam, não se movem, não expelem
fluidos nem gases. E, ao contrário destas, não me decepcionam quando se abrem.
Amanhã vou falar da parada que tenho pela
frente. Ou melhor, tentar. Químio e rádio concomitantemente. No mínimo cinco
semanas. “Se eu aguentar”, alertou minha espevitada dra. Samira. Na hora me
arrepiei de pavor e não desarrepiei até agora. Bah, é só uma diarreiazinha, me
animou a dra. Patrícia. O único problema serão as reações hepáticas, encorajou
a dra. Samira. E o risco duma colostomia não é lá muito grande, ajuntou a dra. Clarissa
c’um meigo sorriso no rostinho sereno. Fora o mais temível: o soluço. Na última
químio desandava a soluçar por quatro dias e quatro noites inteiros, dormia dois
minutos soluçando, acordava soluçando. Começa daqui uns dez dias. Duvido que
terei forças. E, porra, já deu, sessenta e um tristes carnavais no próximo dia
14, muito, muitíssimo além dos meus planos. Estou exausto e em breve estarei
inimaginavelmente. Acho que vou parar de fumar.
Florescendo para dentro
Aqui no interior é impossível respirar. Não por causa de algo fétido que alguém deixou para trás e sim pela ausência de ar. E se digo ausência, é ausência total. Se você for de fato explorador, explorador no sentido estrito, explorador totalmente desprovido de respeito pelo desconhecido, com o tempo se acostuma.
Foi o que ocorreu comigo. Quando entro... Quer dizer, entrava, sentia nas pernas aquela moleza própria dos covardes. Aturdido, tentava acionar os pulmões, afilando as narinas, em seguida puxando pela boca, e nada. Isso, nos momentos iniciais. Uma ou outra ocasião, cheguei a me ver meio metro da morte. Minha proverbial claustrofobia, de que sofro desde o primeiro minuto de vida, me atacava ferozmente os sentidos, me atordoando de pavor, atiçando meu instinto de sobrevivência, me forçando freneticamente a considerar um recuo, enquanto ainda desse tempo. Mas como nasci, além de claustrofóbico, teimoso, resistia brava e temerariamente. E quando digo “entrava” é porque hoje em dia vivo aqui dentro o tempo todo, praticamente. Nem me lembro mais de como é a vida lá fora. E chego mesmo a desconfiar que dificilmente poderia reaprender a conviver com a atmosfera – ai que me arrepia a lembrança de ventos e ventanias! –, com espaços abertos e a luz do dia ou mesmo a duma lâmpada fluorescente que faria de meus olhos, não me restam dúvidas, dois glóbulos cegos e inúteis.
Não vejo mais motivos para sair. Hoje até duvido se seria capaz de retornar pelos meus próprios passos e encontrar a porta por onde entrei. Nos raríssimos momentos em que flagro em meus pensamentos um laivo de arrependimento por ter aqui me internado, uma pulsão mecânica, automática dirige meus pés para ainda mais longe de onde imagino estar a saída.
As condições insalubres, até morbígeras que aqui imperam, a elas me habituei. Já não me incomodam a retromencionada falta de oxigênio que antes me fazia temer o sufocamento. Tampouco me desassossegam estas paredes pegajosas cobertas duma substância indefinível e, claro, inodora, mas definitivamente gosmenta, que gruda em minhas mãos e cola meus dedos uns aos outros à medida que avanço pela cerrada escuridão. No início a gosma me causava asco e constituía mais uma razão para bater em retirada ao sabor dos instintos, sobretudo porque me era impossível sequer ver a cor e conhecer a aparência da matéria melada, mas também acabei por me acostumar.
Assim como, dadas as repetidas visitas, me familiarizei com o negrume à minha volta. O tempo por aqui é um cortejo ininterrupto de instantes virtualmente iguais que se sucedem invariavelmente com a mesma cadência, me levando mesmo a crer que os ponteiros do relógio da vida e das coisas finalmente estacionaram. Exatamente em que posição, jamais me pergunto. E tampouco me interessa. Os instantes desse cortejo são fugazes como todos os instantes mas perenes e de seus latejos intermináveis borbota uma eternidade que já ao nascer perece, embora não seja natimorta qual um nascituro desprovido de coração, se sobrepondo à anterior para engendrar este meu tempo particular feito de instantes eternos, este meu tempo que nunca para, este meu tempo que nunca avança.
E este meu tempo que é só meu me ensinou a evitar os obstáculos com que vou deparando em meu caminho. Nada surpreendentemente, os há inúmeros, embora o que me assoberbasse no começo fosse não sua infinita pluralidade e sim a perturbadora impressão de que pareciam mover-se, deslizando para trás e para a frente e para os lados no mais absoluto silêncio, multiplicando-se ao meu redor conforme penetrava cautelosamente o breu das trevas.
Obviamente, o termo obstáculos aqui não passa de eufemismo. Quem sabe devesse dizer barreiras. Ou então dificuldades. Empecilhos ou estorvos talvez viessem mais a propósito. Mas nenhum deles refletiria a realidade com precisão, pois que, se almejo a ser o mais honesto possível, deveria é chamá-los de inimigos. E é exatamente neste aspecto que a situação no interior se assemelha à lá de fora. Tal como no mundo exterior, aqui não posso enxergar meus inimigos. E, sendo invisíveis, aqui, tal como no mundo exterior, posso fingir que não existem. E, tal como lá, são esses os mais cruéis. Os mais obstinados.
Porém, aqui neste lugar absolutamente abafado, neste lugar irremediavelmente escuro e inóspito para qualquer outro ser vivo, disponho de defensores.
Quem são eles?
Os anjos. Meus anjos. E, creia, eles podem ser infinitamente mais cruéis e mais obstinados que qualquer um dos meus inimigos. Assim como estes, são também invisíveis. São, pelo menos hoje. Antes não eram.
A primeira vez que ousei passar para o interior pude vislumbrar um ou outro vulto a desvanecer misteriosamente pelas bordas do meu campo de visão. A princípio, ainda confuso pela ausência de oxigênio e de luz e de som, ainda ludibriado pelas sombras, pensei que se tratavam de fantasmas. Naquele meu primeiro encontro quedei paralisado de terror. Minha experiência lá fora com o desconhecido se limitava a espectros e fui levado a deduzir que aqui a vida meramente daria prosseguimento ao meu estado anterior. Até que, quando comecei a compreender a nova situação, percebi quem eram de fato.
Mas não se engane – meus anjos em nada se parecem com aqueles do Cristianismo. São, na verdade, antípodas destes. Nada têm de bondosos. Nem de santos. Suas qualidades estão indescritivelmente afastadas da caridade, são antagônicas da clemência, avessas da tolerância, da compreensão, da aceitação incondicional das fraquezas humanas. Meus anjos, aqui neste antro totalmente ocupado pela mais plena escuridão e cingido pelo mais delicado silêncio e transformado pela inexistência do tempo, sob a égide da Perfeita Ausência que só pode vir a ser por meio da Infinita Solidão, meus anjos são, pelo contrário, terríveis.
Terríveis como aquele a rondar o Castelo de Duíno.
Disto isto, penso que finalmente reúno as condições necessárias para iniciar a leitura de Rilke. Sinto-me protegido. Estou, creio, preparado.
Novo capítulo: O ingresso
O céu
Para quem ainda não teve sua sensibilidade estética e seu poder de atenção e apreensão trucidados pelos faces, whatsapps e twitters da vida.
Para quem ainda não teve sua sensibilidade estética e seu poder de atenção e apreensão trucidados pelos faces, whatsapps e twitters da vida.
Sinfônica nervosa
A noite recoberta de poeira e retoques se
desmancha em close em visões e texturas de bocarras fantasmagóricas a babar adrenalina
juvenil
no silêncio pastoral,
não fosse o arranhar da lua atrás das
nuvens
em preguiçoso carnaval
para distrair meus olhos evocatórios
Embrulha de hematomas e sal meu coração
enquanto o pêndulo do relógio da sala tricota
os minutos
desta enciclopédica dor
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