A revanche

Ando seco de vontade de escrever desde ontem cedo mas taux sem assunto. O melhor método de encontrar assunto quando me acho neste estado é fazer exatamente o que estou fazendo: me olhar bem nos olhos e confessar.
Há três pilhas de livros na minha mesa, outras duas na mesinha do meu lado esquerdo, outras três na mesinha depois desta. Não vou enumerar os livros pois vocês meus quase etc já sabem de idem. Cada um deles, livros, é um mundo à parte, uma experiência distinta, um lago profundo e gélido no qual mergulhei um para emergir outro.
Não resisto. Puxo Carpeaux para mais perto, abro, folheio. Novecentas e quarenta páginas. É o segundo volume dos Ensaios reunidos, coligidos e editados pelo histérico Olavo de Carvalho, que, inteligente e culto como poucos, podia se mancar que o brasileiro médio é xucro e ignorante e precisa ser catequizado desde o abecedário e está pelo menos duzentos anos longe duma compreensão minimamente adulta do mundo e não adianta – pelo contrário, é contraproducente – coisa nenhuma ficar sapecando as tamancas no piso de mármore tentando lhes enfiar algo de sensatez na cachola como Olavo insiste em proceder. A verve, o frenesi, a contundência com que Olavo expõe suas opiniões e chama pra briga esquerdistas desmiolados tem resultado apenas no recalcitramento do esquerdismo bunda-mole. Outro cuja histeria dá co’s burros n’água é Reinaldo de Azevedo, milhares de milhas menos culto e muito menos sincero e honesto que seu guru. Azevedo podia começar uma repaginação de sua imagem eliminando aquelas fileiras de pontos exclamativos de seus textos e reduzindo sua produção diária a um nível em que sacrificasse a quantidade em prol da qualidade informativa e estilística. A estratégia que usa para manter seu alto ibope consiste em entuchar a claque dum palavreado tiritante eivado de cabotinismo, autorreferências e demagogia, invariavelmente se promovendo como o maior explicador da cena política. Ao contrário do que leitores inteligentes esperariam dum articulista, é exatamente na demagogia que Azevedo tem seu ponto forte – o rebanho acessa seu blog sempre em busca de mais do mesmo. Eles sabem o que vão encontrar e se esbaldam na mesmice e na obstinação nauseabunda com que Azevedo pisa e repisa em cada postagem os mesmos refrões embalados sob as mesmas boutades e o ramerrão cansativo. Seus leitores na certa debandariam se ele resolvesse privá-los do previsível. Um bom antídoto para essa pasmaceira intelectual são a ironia elegantérrima dum Guilherme Fiuza ou a dicção desapaixonada mas perplexa dum Arnaldo Jabor (que não poupa desancadas num dos homens mais obtusos e sinistros destes tempos, George W. Bush, tenazmente enaltecido por direitistas empedernidos) ou o ritmo estonteante dum Marco Antonio Villa e sua sempre esclarecedora perspectiva histórica.  O campeão dos algozes intelectuais do lullopetismo continua sendo, repito, Fernando Gabeira e suas as análises que denotam acima de tudo desambição de se tornar guru. Seus julgamentos serenos, comedidos produzem um efeito que as diatribes de Azevedo estão longe de lograr: o convencimento, que, por princípio, deveria ser a preocupação primeira dum comentarista. Azevedo alcança precisamente o oposto. Agrada aos que pensam como ele e frustra e afasta leitores que buscam honestidade e isenção. E Gabeira tem a inestimável vantagem de não se guiar pela ideologia. Diz o que pensa, não o que ditam os manuais políticos ou as cartilhas partidárias ou os catecismos do proselitismo sectário. Gabeira tem autoridade moral e intelectual para devastar as fanfarrices do partido que ora se segura no poder a golpes de imposturas e ao mesmo tempo lamentar a inefável tragédia do Rio Doce, luxo a que um bigot como Azevedo não se pode dar, pois deve satisfação primeiro ao clã ideológico na qual prosperou e para a qual todo e qualquer posicionamento pró defesa do meio ambiente é anátema, patronos do atrasos que não se cansam de desqualificar ambientalistas como ecochatos. Os ambientalistas são é moderados extremamente. Cientistas que denunciam a hecatombe do aquecimento global sofrem o escárnio dos paus-mandados do capital, como se a degeneração não estivesse bem diante dos nossos narizes. A sanha e a velocidade com que a fauna e a flora vêm sendo dizimadas planeta afora estão a gritar por um confronto radical. A poluição tem de começar a ser reduzida hoje! Os métodos e os sistemas ambientalmente deletérios precisam começar a ser mudados hoje! Não há mais tempo para reuniões de cúpulas mundiais em que suas excelências tomam um cafezinho e trocam tapinhas nas costas e se comprometem com soluções para daqui a cinco décadas, pusilânimes que são em descontentar eleitorados retrógrados e em peitar o poder econômico a explorar alegremente os recursos naturais à exaustão. Tentar imaginar um mundo medonho sem matas nem animais silvestres é um exercício de autotortura.
Azevedo e congêneres são paladinos duma direita que em pleno século 21 insiste em não enxergar problema na devastação da natureza. Eis a razão por que o maniqueísmo ideológico pode ser o mais nefasto dos pecados. A isenção é uma das maiores virtudes – e acessível a poucos. Requer genuína bravura. O honesto reconhece e assume suas contradições; o pilantra finge que não as tem. A razão passa a ser mero pretexto.
Honestidade exige coragem, por isso somos quase todos covardes. Como dizia Willy Brandt, geralmente precisamos de mais coragem para mudar nossa opinião do que para mantê-la. O maior e o pior impostor é aquele que se propõe mudar as coisas sem reconhecer que quem deve mudar primeiro é ele próprio. Aprendi com os grandes poetas – e com minha experiência – que a única constante da vida é a mudança (podem citar, não exijo copyrights). Ao longo da existência mudamos em literalmente todos os sentidos – etária, biológica, emocional, filosófica, moral e politicamente. E, se mudamos, tudo e todos à nossa volta também mudam. Estar atento à mudança constante e identificar o novo que nasce sem parar, só os tremendamente talentosos e íntegros são – ou seriam – capazes de. Aquele que se mostra aos outros um sujeito de princípios pétreos e opiniões absolutas se pretende, perante si e os outros, consistente, no sentido anglo-saxão do termo. Fingindo-se um não fingidor, se quer lógico e racional (rings a bell?), ignorando que Fernando Pessoa “fingia” (isto é, explorava em si mesmo formas diversas de ser) exatamente para tentar atingir a verdade ou pelo menos aproximar-se dela. O grande feito de Pessoa foi ter compreendido que o intelecto e a inteligência entreabrem à nossa consciência apenas uma fresta da janela através da qual imaginamos enxergar o mundo e a vida. Não à toa, Pessoa foi contemporâneo de Nietzsche, Rilke, Heidegger e Freud. Todos eles provaram, ou pelo menos descobriram indícios, que conhecer significa aprofundar nossa ignorância, isto é, perceberam que não sabemos quase nada de nós mesmos e nossas “verdades” são meras muletas que nos deu a natureza para servir-se de nós e cumprir imperiosamente seus desígnios insondáveis. A natureza – a vida – seguirá intratável por séculos, provavelmente milênios. Ou infinitamente.
Sei, nos últimos tempos tenho resvalado mais vezes do que eu mesmo gostaria em minhas investidas contra Azevedo e outros parlapatões vejeiros e é capaz que a maioria dos meus quase três leitores e meio acabe achando que estou virando casaca. Bem, que tenho feito isso só nos últimos tempos é papo furado. E, well, vocês estão carecas etc mas não dou lhufas para o que achem ou deixem de achar de mim. Certo, é por isso que quase ninguém me lê. Mas é também por isso que tenho liberdade de escrever o que me der na telha, ao contrário dos “articulistas” da grande imprensa que são obrigados observar ordem, método, coerência, lógica e prosápias que tais que, sabem os que me leem, não passam de bullshit. Tudo bem, admito que forço a barra citando Pessoa e Freud no contexto do lullopetismo e já mencionei vezes e vezes que a canalhice de lulla e seus asseclas pede toda a agressividade azevediana e mais um pouco. Só que, outra vez, Azevedo de certo tiraria mais proveito político e até ampliaria seu público entre os não visceralmente antilullistas se moderasse seu cabotinismo e sua empáfia.
Bem que gostaria, obviamente, de poder descer a ripa também no outro lado. O problema, porém, é a escassez de material. Se Azevedo não chega aos tornozelos de Olavo em erudição e capacidade argumentativa, os blogueiros e jornalistas esquerdistas e “progressistas” disponíveis na praça não chegam à sola dos pés do Professor Pardal da Veja. Na Folha de S. Paulo você pode ter uma ideia da indigência intelectual e moral dos que defendem o petismo. Hoje mesmo um tal de Gregório Duvivier, membro dum tal de Porta dos Fundos, assinou um artigo no site do jornal miseravelmente pueril e abaixo da crítica. E, claro, todos eles brilham pelo cinismo com que tentam distorcer os fundamentos constitucionais para o impeachment da Anta os tachando de golpe. Eu é que não vou cansar minha beleza com neandertais desse naipe.
Falando em golpe, a Mandioca Sapiens bem que merecia uma intervençãozinha manu militari no meio daquela fuça acéfala. A tentação de apoiar um movimento dos quartéis é grande, mas resisto. A esta altura é tudo que os saqueadores do Erário em nome do “povo” querem, assim poderiam apelar para a única coisa que sabem fazer: se fingir de vítimas. Uma intervenção militar automaticamente lhes passaria um atestado de inocência com selo e firma reconhecida, mesmo – ou ainda mais – que fossem julgados e condenados por seus crimes lesa-pátria posteriormente. Está sendo, e ainda será por bom tempo, doloroso atravessar o oceano de sordidez no qual o País afundou sob o lullopetismo, mas a única punição suficiente e satisfatória para o ditadorzinho do ABC, para Dilma e para a gangue toda será o julgamento e a condenação estritamente nos termos da Constituição. Assim, daqui uns anos quando tentarem voltar, não poderão alegar que foram injustiçados. Cabras como Nietzsche e Ortega y Gasset tinham desdém pela democracia e nisso estou com eles, mas agora não dá mais para sonhar com um mundo pautado pela excelência, a meritocracia e a precedência dos mais aptos e capazes.
O que desanima no duro é a omissão do pessoal das letras nesse debate. Me espanta ver que os escritores se recusam a meter seus dedões ilustres na chaga pútrida do lullopetismo. Não me refiro naturalmente ao encimadomurismo dum Carlos Heitor Cony na Folha, nem às crônicas insípidas e inócuas dum Ignácio de Loyola Brandão no Estado. O universo literário parece ter-se convertido num cemitério. Que é que pensam nossos maiores autores e autoras da repugnante infâmia em que lulla e companhia fazem os brasileiros chafurdar? Têm uma opinião? Estão se manifestando? Onde?
Vocês são testemunhas. Bem que tentei descolar um assunto pra acelerar a passagem desta modorrenta tarde de quarta-feira. Desisto. Vou retomar a leitura errática dos meus livros. Estou cercado deles. Pilhas, pilhas e mais pilhas. Pilhas titubeantes e convulsas em que os debaixo pelejam para ascender ao alcance dos meus fatigados olhos, ganhar o privilégio da minha enfermiça atenção.
Não fossem eles eu não existiria. E são excelentes substitutos para pessoas. Não falam, não se movem, não expelem fluidos nem gases. E, ao contrário destas, não me decepcionam quando se abrem.
Amanhã vou falar da parada que tenho pela frente. Ou melhor, tentar. Químio e rádio concomitantemente. No mínimo cinco semanas. “Se eu aguentar”, alertou minha espevitada dra. Samira. Na hora me arrepiei de pavor e não desarrepiei até agora. Bah, é só uma diarreiazinha, me animou a dra. Patrícia. O único problema serão as reações hepáticas, encorajou a dra. Samira. E o risco duma colostomia não é lá muito grande, ajuntou a dra. Clarissa c’um meigo sorriso no rostinho sereno. Fora o mais temível: o soluço. Na última químio desandava a soluçar por quatro dias e quatro noites inteiros, dormia dois minutos soluçando, acordava soluçando. Começa daqui uns dez dias. Duvido que terei forças. E, porra, já deu, sessenta e um tristes carnavais no próximo dia 14, muito, muitíssimo além dos meus planos. Estou exausto e em breve estarei inimaginavelmente. Acho que vou parar de fumar.

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