O mundo é governado pelo anjo vencido

Estava relendo um trecho de Jogador. Ivanovitch é tutor da prole dum general. O general está doentiamente apaixonado por Polina. Polina é enteada do general. Essa tradução é aquela de Boris Schnaiderman. Schnaiderman diz lá pelas tantas que em russo não existe artigo e resolveu remover o “O” com que o romance era tradicionalmente vertido mundo afora.
Passava das 21 horas quando me sentei aqui onde estou agora disposto a falar do Jogador. Às vezes a Providência Divina me acode, impedindo que eu cometa mais um dos meus proverbiais vexames. Ultimamente venho pisando na jaca com mais frequência do que seria salutar. Como aquela outra noite em que desandei a palrar de Albert Camus. Espero que vocês aí fora (aí dentro? nunca estou bem certo) entendam. É excesso de fome, acho. Se tem algo que tira um cristão do eixo é a maldita. Sou um esfomeado. Não perguntem de quê. Quer dizer, tenho certeza de que já sabem, depois de tantos anos deste nosso relacionamento de mão única em que lhes dou tudo e vocês não me retribuem com nada.
Como sabem, tenho um imenso – e quando digo imenso, é imenso no duro – banco de dados literário em que vou jogando tudo que colho ao longo das minhas leituras. Se trata dum banco de dados comme il faut. Como também sabem, sou programador nas horas vagas e nas ocupadas. Meu banquinho de dados deve estar girando em volta duns 30 mil entries, ou “entradas”, como preferem meus colegas de programação brasilianos. Sei que se ressentem quando falo assim mas programador, fora de seu métier, é tão analfabeto quanto engenheiro e médico. Esses sujeitos são inteligentes e aptos apenas em suas áreas de especialidade. Quando participava de fóruns de desenvolvimento de programas, eu tascava verbetes e os caras não sabiam do que falava.
Para sorte minha – e, mais ainda, de vocês –, quando me sentei aqui onde estou agora disposto a falar do Jogador, me pus a fuçar no dito banco de dados e fui parar num textículo escrito por Otto Maria Carpeaux sobre, com perdão da rima, Dosteaux. E vocês dificilmente vão acreditar – Otto Maria redigiu o dito cujo em – pasmem! – 1942. Pois é, provavelmente o mundo já existia aquele ano, quem diria? Imaginem se citássemos um bicho desses hoje no face? Carinhas tiravam uma. Outro dia minha diletíssima amiga Sue Cida botaux uma das minhas crônicas em seu perfil e uma amiga dela foi correndo debochar que aquilo parecia um romance. O referido deve ter umas 300 palavras, vejam vocês. Dizem que uma das razões do Tweeter é que força a economia vocabular dos usuários. No começo pensei que não fosse pegar, hoje entendo.
O pequeno ensaio de Otto Maria sobre Dosteaux se chama O bárbaro barbado. Vejam só que delícia de título. Não, não me refiro ao trocadilhinho tosco, obviamente, e sim ao fato de que apenas a primeira letra está em maiúscula. É de desopilar o fígado dum cristão nesta era medonha em que todo mundo e seu operador de xerox macaqueia tudo que Mary, Paul & Jonathan fazem lá pros lados do Trópico de Câncer.
O segundo período da análise de Carpeaux é este: “Dostoievski é, se não o maior, decerto o mais poderoso escritor do século 19; ou do século 20, pois a sua obra constitui o marco entre dois séculos da literatura”. E é exatamente aqui que entra a fortuna dos meus quase quatro leitores e meio nesta malfadada e ardente noite deste último dia do outubro mais escaldante dos 28 séculos passados. Meu cabeção babélico já começava a processar as primeiras aboborinhas em torno do pobre bárbaro barbado quando, felizmente, meu olhar erradio pinçou o “...o mais poderoso escritor...”.  Foi então que me detive. Viram como ainda tenho uns resquícios de semancol, mesmo que não pareça?
Não há absolutamente nada que eu fale de Dostoievski que Carpeaux e tantos outros estudiosos já não tenham dito de modo sei lá quantas vezes melhor do que eu seria capaz. Esse texto de Carpeaux consta do primeiro volume dos Ensaios reunidos, coligidos há alguns anos por uma equipe editorial boa de taco. O primeiro volume, que ainda estou esperando que alguém me dê de presente, foi preparado sob a orientação de Olavo de Carvalho, que subiu uns pontinhos no meu conceito depois de tal empreendimento.
De minha parte me vejo obrigado a mencionar pateticamente, mais uma vez, que fui com sede demais ao pote aos meus vinte e poucos anos e entornei o caldo da minha formação literária. Vocês de certo se lembram que outro dia citei Euclides (não o meu tio casado com minha tia Lourdes; aquele outro dos Sertões) e como fui incapaz de reassumir a leitura dele depois da idade da razão. Dostoievski, como deve estar claro, se inclui entre as vítimas da minha sofreguidão. Há uns dez anos reli Cadernos do subterrâneo (não sei se é este o título oficial no Brasil) e os ecos não deixaram mais de verberar nesse vasto pavilhão vazio que carrego de manhã à noite a aguardar os sentidos que a vida me prometeu. Reli os Cadernos crente de que os demais romances viriam naturalmente em seguida. Não foi daquela vez. Raskolnikov terá de continuar quietinho, esperando sua chance. A fila é esbaforidamente longa. E vagarosa. Temo – como preferem nossos tradutores macaquitos – que não haverá tempo hábil.

Mientras espero el mar

Estimada, te lo confieso
(Aunque de todos tus secretos nada me confieses)
Ya te he aclarado, por supuesto
(Aunque no te he aclarado nada)
Para que no te equivoques, me cabe decir cándidamente:
Soy, estimada, un impostor
(Mi impostura, mi única verdade)
Peor: un impostor patético quien no se siente avergonzado de lo confesar
(Aunque te he confiesado sólo embustes)
Como si la mera confesión demostrara su buena voluntad
Afectándose sincero ocultando de ti la verdad inconfesable
Peor una vez más: te lo confiesa avergonzado pero jubílase en expresar su vergüenza
Haciendo payaso de sí mismo
(Aunque no te he hecho reír)
Probando así que es no sólo impostor, pero un impostor desvergonzado
Estimada, de lo que te confieso, no te confieso nada
Que de poeta no tengo sino el sueño
(Aunque he soñado sino mi realidad)
Te lo confieso
De poeta no tengo sino la fantasía
Pueril de un niño quien nunca tuvo juguetes
(Y por ello ahora juego)
Practicando desde ella su simulacro de talento artístico
En este su teatro de engaños en que es auténtico personaje
Hacia la musa que se le inventó



Numa semana dum fevereiro qualquer

A NASA emitiu um alerta. Durante a última madrugada, a Terra foi atingida por um satélite. Um satélite artificial de seis toneladas. O satélite não caiu em ninguém que amo (não amo ninguém). O satélite não caiu em ninguém que conheço (não conheço ninguém). Tampouco caiu em mim.
Terá ele caído em si?


Zonzo, não poeirento

O fogo me queima por dentro e por fora estou gelado. Espera, não é blague. Desisti das blagues na minha lira dos vinte anos. Naqueles tempos me fascinavam. Hoje me enojam. O fascínio me enoja.
Naqueles tempos também gostava de dizer estupefato. Ah, certas pessoas me deixam estupefato. Ó, estou estupefato com seu comportamento.
Então me manquei. Mas,  mesmo mancado, tive de passar por toda a gama de sinônimos. E a dita é vasta: assombrado, atônito, banzo, embasbacado, espantado, abismado, aterrado, aturdido, pávido, perplexo, bestificado, aparvalhado, embasbacado, pasmo, petrificado.
Como a Dilma, também tive minha fase do estarrecido. Ai Écim, tô estarrecida com essas suas calças de jeca.
 E o ciclo foi se fechar, décadas mais tarde, em boquiaberto. Até que, de novo, me manquei – só bobos ficam boquiabertos.
Devo ter escrito umas oitenta vezes que nada na verdade me espanta. Quer dizer, relativizemos, para não soarmos frívolos e “levianos” qual certos blogueiros bem-sucedidos por aí. Tem, sim, uma coisa que me espanta e muito – o brasileiro que mata quase 60 mil de seus compadres a cada ano mas se faz de bocó ante o poderoso que lhe mete a mão em quase tudo que tem. E o Holocausto. E pessoas que achava inteligentes se deixarem hipnotizar por uma tela de tevê. E o face. E as fofocas sobre uma tal de Lady Gaga nos jornais e revistas online.
Nosso léxico (que chique, tem dia me sinto tão professoral, que quase saio pelas ruas apagando a lousa) pessoal é assaz vulnerável, bien sûr. Em geral depende pacas das nossas experiências vocabulares mais recentes. Se andou lendo Machado, é quase certo que você vai lascar, antes cedo do que tarde, um “assaz” no que estiver escrevendo. E, tão logo trave da pena, lançará na folha branca e lustrosa de seu papel uma confissão elegante e polida, que todavia refundirá duas ou três vezes. Acabada a redação final, transcreverá aquela prosa do coração na mais nítida folha que houver em casa, – e dobrará o escrito para o meter na algibeira.
Se é que, depois de ler Machado, você terá ânimo, e descaramento, para escrever o que quer que seja. Um dia ainda publico um manual de redação literária c’uns sete ou três mandamentos para os preguiçosos da pena. O primeiro deles será mais ou menos assim: se você quer escrever no duro, nunca leia os grandes. O mais indicado no seu caso é adotar o método “ingênuo” dos primitivistas. Não é tão moleza quanto parece mas você economizará uma boa grana não comprando pelo menos umas duzentas obras primas de leitura capital.
Não, decerto não haverá de haver, hehe, nada mais foda que escrever.
Não é à toa que quase dez entre dez aventureiros do teclado aposentam o dito cujo praticamente depois da primeira tentativa.
Basta fazer uma visitinha básica a uma pequena “amostra” do “universo” de blogs disponíveis na internet. (Sorry, ecos remanescentes das pesquisas eleitorais.)
Você verificará que, de cada dez blogs, mais de nove já eram.
O prazo de resistência vareia. Bem como a forma de resistir. Uns escrevem algumas inanidades (sempre “ingênuas”, outrossim) e baixam as portas após aquele curto período de ansiedade atroz em que já se imaginam em Estocolmo recebendo o Nobel de Literatura.  A desistência dessa categoria em geral se dá depois de três noites maldormidas de festejos e fogos de artifício, quando fica dolorosamente claro que nunca lograrão ultrapassar o círculo dos familiares e dos amigos mais próximos, bate aquele semancol danado de amargo, acrescido dum gostinho ruim de vexame.
Mas esses são os realistas. Como vocês sabem, nós que distamos mil anos-luz dos gênios somos regidos pelo lema supremo do “antes tarde do que nunca”. Bem ou mal, os realistas ao menos são capazes de aprender com a experiência. Pior(es) são os escapistas. Os sonhadores. Os que se orientam por provérbios e ditos populares para quem a esperança blablablá blebleblé tuntuntum. Esses são capazes de “tocar” seu bloguezinho por anos a fio sem jamais, accordingly, enfiar a viola no saco. A cada seis meses coligem dois ou sete pensamentos e vão correndo lá postar. Tudo bem, podem não estar à altura dum Machado, mas são brasileiros e não desistem nunca.
Por fim, temos os resistentes ativos. Esses constituem uma mescla improvável – e meio incrível – dos inanes com os persistentes.
Pesquisas bloguianas efetuadas após as eleições indicam que os resistentes ativos são assaz... resistentes. Numa amostragem específica dessa espécie, parece ter ficado patente que esses blogueiros são capazes de sobreviver mesmo após terem sobrepujado a fase crítica do abandono famílio-amigal. Não só. A superação dessa primeira etapa classificatória como que lhes confere uma energia tipo a-mãe-que-salva-o-filho-prensado-debaixo-do-caminhão. Essa teoria vem ao encontro das conclusões dos nossos últimos estudos sociológicos, a saber, o blogueiro resistente ativo nada mais é que um sobrevivente. Isto é, dentro da complexa estrutura blogo-literato-digital, essa espécie – aqui solicitamos aos nossos leitores que mantenham a fé na humanidade whatever comes along – logrou transportar a rejeição parental do mundo factício para o fictício! Convenhamos, minha gente, não é batatinha.
Se bem-sucedido em tal malabarismo metafísico, o resistente ativo logo procederá para agitar sua conta no face e arregimentar o maior número possível de “leitores” para seu blog. É por isso que certos blogueiros chegam a amealhar até mil, trezentos e oitenta e quatro seguidores.
E talvez seja por isso também que quase ninguém me segue, ó miséria. Já disse que escrever é foda? Não vai fazer mal repetir mais uma vez. Que é que estava dizendo mesmo? Deix’eu voltar lá pra cima. Pois é. O fogo me queima por dentro e por fora estou gelado. Sempre que leio um colunistão dum jornalão qualquer me regozijo por não ser contratualmente obrigado a encher os pobres olhos dos meus leitores com linguiça rançosa. Escrever – citando dona Dilma – “diuturna e noturnamente” não é pra qualquer um.
Acho que venho dando conta do recado, apesar dos blablablá.
Quando comecei a escrever aos meus doze aninhos, uma “chave de limite”, dessas que existem em elevadores e tornos industriais, já se preparou para seu papel dentro de mim.
A diferença entre este escritor e os enchedores de lingüiça profissionais é que não sou obrigado a prestar contas a absolutamente ninguém. Como consta do meu “perfil” aí do lado, “me lê quem quer”. Quem não quiser, fôdasse.
Um cão que abana o rabo e lambe a mão do dono para receber um afago é menos asqueroso que aquele que adula, e bajula, por um comentário elogioso.

Revelação do umbigo

A poesia, a poesia verdadeira, é imbatível, é inatacável, insubmersível, intragável. É a poesia, a poesia verdadeira, a poesia que os homens e mulheres lá fora que agora saem das estações do metrô teriam um ataque do coração se de repente compreendessem.
A poesia, a verdadeira poesia, é insuportável. Fazem bem as meninas que se dedicam ao estudo da computação em jamais aventurar seus olhares mortiços sobre a placa-sanduíche sustentada pelo molambeiro desdentado a anunciar em versos sublimes e cifrados que alguém algures nas proximidades da Praça da Sé compra ouro, pagando à vista.
Fizeram bem os cavalheiros que foram capazes de morrer de coração e mente virgens do estupro poético e caridosamente incônscios de que as dores atrozes que suportaram em vida seriam insuportavelmente atrozes se ritmicamente deploradas em rima.
E fazem melhor ainda os lampeiros fagueiros blogueiros a alimentar com suas toscas pás de crentes em santinhos de igreja a fornalha de seus blogs poéticos com o carvão da poética rançosa que nunca arderá em brasa para calcinar suas mãozinhas frágeis em garras selvagens e incinerar suas pupilas sonhadoras para que na cegueira possa faiscar a chama rubra do sentido.
Ainda vivia e me sentei ali sob o sol, deprimido demais para saborear minha melancolia. Estava usando uma coroa de papelão. E segurava um cetro c’uma estrela na ponta.
Sim, abençoados os isentos deste poema de Frederick Seidel como se esquecidos pela receita federal.
Agora vejo por que os poetas, os poetas verdadeiros, são tão escassos.
Os poetas, os verdadeiros, não nascem para aprender ou ensinar, olhar no espelho e se pentear.
Cada poema, se verdadeiro, é uma ponte de aço alicerçada no ar, levando ao inexistente que existe.
Um passo de Antonio Machado no caminho que se faz ao andar.

Lívida flora em que se perde a fauna de um

Nunca falei de anjos, querubins ou serafins
Não será desta vez que falarei de anjos, serafins e querubins
Entezinhos ordinários de quem se envergonha o próprio diabo
Tão tímido e confuso (e que, ao contrário do que imagina o vulgo, lamenta infinitamente sua diabice e por isso comete às escondidas tantas diabruras)
Em vez de serafins, anjos e querubins transparentes a esvoaçar pela imaginação dos pobres que vivem amores imaginários, vim aqui hoje falar de sorrisos que flanam no espaço nada ilusório ou sideral
Deste mundo origem de todo o mal
A provocar nos tristes terrenos aqui de baixo estupefação e esperança de que são eles os destinatários
Robôs de muito osso e muita banha na barriga e no sangue contaminado da aspiração à pureza
Coitados que se pensam dignos das risadas dos deuses
E deusas
Que, tal como anjos e demônios, não riem
Malditos mitos
Que odiei assim que abriram um livro de história antiga diante do meu nariz
Mitômanos esgrimistas que usam a Bíblia, o mais humano dos compêndios jamais registrado em papel, para substanciar suas mentiras
E centuplicar seus fantasmas aflitos
Minha redenção está na crueldade dos olhos-lagos
Tão cristalinos e pacíficos, que, ao menos esta noite, se ocultam do nadador para que este não se iluda de ter finalmente encontrado o mergulho da paz
Durante o qual a vida enfim não será pior do que parece
E o mergulhador, não sendo outro que não quem aparente,
Terá sempre o consolo de não estar realmente certo do que é

O imperador desordeiro e o flautista egoísta

A vida não me fez muitas promessas. Nunca jurou que seria amena. De todas as grandes promessas que fez, nenhuma ainda se cumpriu. Nem as pequenas.
Estava pensando em fazer um poema.
Comecei perpetrando a introdução acima.
Meus quase quatro leitores e meio haverão de convir que é um bom introito.
Me animei. Tão raramente tenho coragem bastante para ousar algo de métrica, um pouco de ritmo, um tico de rima.
Quando ando pelas ruas com minha cadela que ruma sem rumo tanto quanto eu meus pensamentos vão rimando à minha revelia. Será isso um fenômeno? Serei, de minha indigna parte, eu?
Quase otimista, meus ouvidos escutaram imaginariamente os acordes iniciais de Serenata para corda, Dvorak. Tão raramente ouço Dvorak. Não porque não goste, obviamente. Mas por falta de oportunidade. Os Três Grandes Patetas Beethoven, Bach e Grieg me assoberbam o tempo todo, praticamente não sobra espaço para os outros abestalhados geniais em minha cabeçorra atarantada. Pode torcer seu narigão à vontade ante tamanha heresia. Até podia explicar mas estou morrendo de preguiça. Literalmente. Ah, se esta minha preguiça que me enrijece os membros e me pesa as pálpebras me abrisse o coraçãozinho que a mulher que amo encouraçou de pragmatismo.
É tanta minha preguiça, que não me importam as promessas que a vida me fez. Se é que as fez. De tanta preguiça, posso ter me confundido.
De tanto rumar sem rumo, posso não ter entendido.
Abro a porta, que mal tenho ânimo para bater, desabo no sofá qual o índice Bovespa depois da reeleição da Dilma. Zezeí me imita, se metendo entre minhas pernas. Minha cabeçorra grávida de pensamentos moribundos pende sob o peso dum cemitério. As pupilas vagueando por sob as pálpebras emperradas identificam uma carta ao pé da porta que ficou encostada.
Será dela?
Claro que é. Quem mais me escreveria?
Sinto meu pé direito se agitar. Parece alvissareiro. O dedinho da mão esquerda começar a tremer. Será já o bastante? Experimento retesar o sartório (aquele musculão da coxa, o mais longo do meu corpo). So far so good. Espero as pálpebras completar seu descenso completo, relaxo os ombros, me concentro.
Após uma breve série de gemidos em si bemol, estou em pé.
Afiro a distância que me separa do envelope. São dois metros e vinte, no máximo. Não deve doer muito. Pego entre o polegar e os demais quatro dedos aquele bojo de banha que a maioria de nós carrega na parte inferior lateral do lombo, crispo os lábios e arranco. Meu pé esquerdo tenta tropeçar no calcanhar do pé direito, minha boca se abre o suficiente para emitir um filho-da-puta, o vagau se endireita e avança uns centímetros.
Meia dúzia de passinhos arrastados depois, tenho o envelope ao meu alcance. Isto é, falta me acocorar.
Vocês aí fora, quase tão humanos quanto eu, provavelmente sabem que ninguém em sã consciência deve se aventurar num acocoramento se tiver mais de nove anos de idade. Já ouvi falar de casos em que neguinho teve de ser levado ao hospital travado na posição agachada. Meu cóccix estremece num calafrio.
Mas não será desta vez que a natureza irá me internar num corredor de pronto-socorro junto com centenas de outros kamikazes dependentes do SUS. A argúcia ainda faísca em meu cérebro privilegiado. Um plano de pronto se desenha ante meus olhos. Vou chutar o envelope para perto do sofá. Então retorno, desabo novamente no dito cujo e pachorramente apanho o desgraçado com meus dedões adelgaçados de inteleca dado a arroubos musicais e estamos conversados.
Manobro as pernas lentamente, fico de frente para a meta. Estreito as pálpebras igual o Neymar faz antes de sapecar o gol milimétrico na gaveta do goleiro adversário. Calculo. Ergo a perna direita meio centímetro mais. Aquilato. Baixo a perna dois milímetros. Estimo. Tá no papo. Às vezes esse meu perfeccionismo me irrita. Relaxo o sartório. Pimba! Não devia ter aposto o ponto exclamativo.
O envelope some dentro daquele vão negro entre o chão e a poltrona muito além do sofá. Ou seja, se fosse um chute de falta, a bola voaria para fora do estádio.
Nem me dou o trabalho de crispar os lábios novamente. Crispar os lábios requer esforço, não sou bobo de jogar energia fora.
E, na certa, o carteiro deu bobeira mais uma vez. Enfiou o envelope na porta errada. Só pode ser cobrança. Cobrança pro vizinho. O sujeito vive recebendo carta de banco. Caloteiro duma figa.

Trampolim de cacos

Tentei substantivamente viver
Até adjetivamente secar
No que hoje sou
Em quantos versos pensas
Que posso premeditamente
Me decompor
Formidavelmente
Podendo ser
Repulsivamente
Senão só?

Outro roubo ainda

Dentro de mim infinitas coisas que têm nome
Dentro de mim infinita preguiça de classificá-las
Dentro de mim infinito medo de inventá-las
Não me interessa o que posso
Não me interessa o que não posso
Me importa o que sou
O que sou, deixo aos poetas
Que têm tempo e imaginação e sentimento de sobra para perder
Eu, não

Meu moinho

Chiados que rabiscam esta noite
Esses de sibila
Esses de silêncio
Esses de sussurro
Impossível ter cometido esses pecados à minha revelia
Não vou mais deixar que o ente que se apossa de mim se aposse de mim
Ficarei aqui quietinho, tristinho, mudinho, mortinho

Naufrágio no asfalto

Na orkut me divertia com gente que lotava seus perfis de lemões (lemas grandes), frasesonas grávidas de importância e solenidade hasteadas no alto da página qual panteão colossal quase a levar ao fundo do oceano a canoa furada que o carregava.
Lemões de vida me lembram quando vou comprar limão (lima grande) no Carrefour e levanto o saquinho e a mocinha (em quem dou uma cantadinha, se for lindinha) responde, precisa pesar não, moço.
E fico lembrando como era comigo esse papo de estabelecer lemões imperiais aos meus 20 aninhos e não lembro, lemas, leminhas e lemões são tão empobrecedores, né?
Quando vejo na rua um rostinho lembro que te amei.
Depois olho de novo e lembro que querias ser amada e não queria te amar.
E lembro que já fui assim durão comigo mesmo, com os outros.
Não tinha lemas mas tinha princípios. Monstruosos princípios com que tentava me proteger dos meus pontos fracos de Aquiles hodierno.
Quando vejo na rua um rostinho lembro quanto escrevi para e pelo teu.
Nada disso tem mais importância agora, já leste feministas demais.
E lembro que-
Lembro uma porrada de coisas que não vêm ao caso.
Nos perdemos.
Como é fácil perder pessoas, não é?
Perco várias a cada dia. Mesmo que nunca as tenha encontrado.
Ora por minha discrição, ora não sei por quê.
E em perdendo me apaixono.
Que horror.
Tanta energia desperdiçada (sob o lema sob o princípio de que se não cuidamos de nós, quem haverá de?)
É tanta coisa que se vai pra nunca mais voltar.
(Será verso do Roberto?)

Boa noite, boa tarde, bom dia

Tecendo um poema há exatos três dias
Ora vinha medonho e voltava tão lindo
Imaginei, daqui a três anos o termino
Se for rapidinho três minutos está findo
Quem sabe já o escrevi e ainda não sabia
Ou então já o conheces à minha revelia?

Minhas definições

Pianissimo

Estou morto
Estou morto há anos
Sorrindo e rindo e
Correspondendo ao brilho do olhar alheio e

Celebrando a vida

Minhas definições

Diminuendo


Por que meus olhos teimam em identificar as pepitas a cintilar e passam batido pelo veio de ouro de brilho ofuscante? Estarão já cegos sem que tivesse percebido?
Se estão, por que não me deixam fechá-los?
Não tenho direito ao descanso?

Minhas definições

Andante sostenuto

Estar louco
e ainda enlouquecer

Minhas definições

Vivacissimamente


De todos os venenos, o que mata mais lentamente é a espera

Minhas definições

Con Affetto


Sou um romântico cabeçudo, sou romântico feito um rato, por isso vou morrer cedo, não sei se antes do (meu) tempo.

Minhas definições

Poco adagio e molto cantabile

Agora que as sirenes dispararam posso enfim dormir

Comunidade (literária) pacificada

Meus quase quatro leitores não vão acreditar mas acabo de descobrir mais um. Desse jeito serei obrigado a fechar este blog (um dos raros legíveis abaixo do Equador). Será possível que não se pode mais ter sossego na internet? Que é que vocês querem afinal? Já não lhes disse tudo que queriam saber? Que é que fuça fuça fuçam tanto? Já não lhes expliquei que por aqui não encontrarão poemetos embevecedores de trovadores fofinhos como Mario Quintana e sua inquebrantável fé na vida e na “beleza natural do universo” nem sacadas-cabeça de metafísicas encucadas como Lispector, a campeã patrícia patricinha das teses de doutorado?
Começo a entender Daniel Galera e muitos outros novos que há anos abandonaram o bloguismo para dobrar o espinhaço e apanhar do asfalto o bastão que os autores da década de 90 deixaram cair algures nas quebradas das favelas do Rio e São Paulo. Pesado é o bastão, digo, prum blog perdido no meio de trilhões. Galera e os demais atletas das raias olímpicas ao redor do Monte Parnaso exigem respeito, o que, como está patente, não se vai granjeando assim num cantinho mais perdido na internet que grão de areia dentro da bota dum justiceiro do Estado Islâmico.
Não posso deixar de dar razão aos galeras do pedaço. Como sempre digo – sem dar muita bola se tenho ou não ouvintes – e raramente tenho –, é legal você escrever e ser publicado em livro e depois botar o livro na estante da sala de frente para quem entra. Dependendo, até costumo fazer uma recomendação, i.e., procure não ser demasiado óbvio – o segredo de ser bem-visto é não dar muito na vista.
É claro que os escritores profissionais com “espaço” no mercado editorial dariam boas gargalhadas – hahaha – se me lessem – afortunadamente não corro tal risco. FH na certa me tacharia de fracassomaníaco, apodo, no meu caso, relativamente preciso. Os americanos, então, esses would shake their heads – ts ts ts. Só um maluco clínico ousaria dizer não ao sucesso naquela terra em que até os vagabundos entram pro circuito de palestras universitário. Well, não sou, repito, maluco, clínico ou outro. Digamos apenas que sempre opto por fazer minhas coisas do meu jeito. Falando em orkut (alguém aí falou em orkut? não? acho que ouço coisas), passei meses espinafrando um otário digital que atendia pelo nome de Atila (jesus) que tentava me ridicularizar por eu não ser “publicado”. Por esse princípio eu seria um subliterato e Paulo Coelho a quintessência literária da raça. Pfui! parafraseando Rex Stout, interjeição que, blablablá, todo mundo e seu livreiro atribuem a Paulo Francis. Galera hoje tem não um blog mas um website – provavelmente escutou o conselho do Gil. Um website da ora. Você entra e dá de cara co’a cara do autor numa grande foto em branco e preto de alto contraste. Me impressionaria nos meus três aninhos. Imediatamente abaixo da foto a saudação, simples, direta, olho-no-olho: “Oi. Meu nome é Daniel Galera e este é meu site. Para sua conveniência (...)” Não estranho que Galera se preocupe com minha conveniência. Me dá até vontade de retribuir “Oi.” C’um pontinho igualmente simples. Me dá até vontade de responder c’um email agradecendo por ele não ser egoísta pensando na conveniência dele. Por um átimo fico imaginando se não é esse defacto o papel dum escritor digno do nome, a saber, primeiro os outros, tal qual o capitão suicida dum U2 alemão. Será que é aí que estou errando?
Pra encerrar o tema Galera, acho por bem registrar que ano passado o Daniel faturou nada menos que duzentos mil reais como vencedor do Prêmio São Paulo. Puta merda, e eu aqui co’s meus quatro ou nove romances encostados no fundo do meu disco rígido enferrujado, devo retomar minha análise de sete anos com o dr. G? Emails para a redação. (Ai que paúra imaginar olhares estranhos devassando minhas belezinhas.)
Retomando, meu quinto leitor obrou isto a meu respeito: Wilson Vaccari. Recomendo aos meus outros quase quatro leitores, deem uma assuntada. Vão gostar, quero crer. De minha parte não desgostei totalmente. Só faria uma ou outra ressalva – sobretudo um tico mais de assertividade. Nota-se em alguns trechos que José Geraldo (epa! não me diga que é aquele José Geraldo!) hesitou em carcá o fumo. O máximo que ousou foi me comparar a um ogro. Francamente, para chegar a ogro eu precisaria passar por pelo menos 84 cirurgias plásticas. It’s not gonna happen, though. Me sinto muito bem abominável como sou.
Cansei. Talvez volte ao assunto – eu – amanhã à mesma hora no mesmo endereço.
Não quero respeito nem despeito para dar ou receber. Quero é escrever.

Jesus.

Da série "Lições que não sei aprender" VI

Segundo mamãe, bebê, agarrava sôfrego a mamadeira e soltava o berreiro. Nesta ordem. E, munido da mamadeira entre as então mãozinhas, engrenava a choradeira horas a fio. Depois de meses de angústia, encafifada com esse comportamento doido, um dia descobriu mais ou menos sem querer – como as maiores descobertas da humanidade – que o choramingão só fechava a matraca quando a luz era apagada e a porta fechada e este servo que vos escreve diuturnamente no desabar da noite finalmente deixado sozinho com sua tépida mamadeira e seus suspiros que já então prenunciavam mais um existencialista sem solução.
Foram sete anos trocando aboborinhas com o dr. G e o crânio não passou nem a cem léguas deste eu profundo – pessoano, lacaniano que fosse. Se tive insights ao largo e ao longo foram por meu próprio esforço. Como calculei aqui um dia, dava pra comprar um apê de um dormitório nas proximidades da Consolação. Se seu negócio é grana – da alta, não aqueles trocados que mal dão pra pagar a mensalidade da Net –, seja psicanalista e enfie a faca em seus clientes (pacientes? nunca sei como chamá-los). Seu “renome” crescerá na medida que esfolar seus analisandos. Mas cuidado – esta recomendação não vale para psicólogos. Os que conheço são – sem exceção – mortos de fome. A maioria acaba “atendendo” de graça – pra eles, não pra você, que ainda tem de pagar o metrô – ou em troca dum pacote de bolachas maisena. Tem de ser meio filho da puta pra faturar o bastante pruma camionete Toyota zero neste mundo de predadores.
Levei décadas, décadas, décadas e saquei: meu papo é mamar, não há dúvida, mas mamar sozinho. (Não foi propriamente uma sacada e sim um aprendizado gradual. Os crédulos têm razão quando defendem que existe vida após a morte – também me recuso a aceitar que deus nos agraciou com apenas uma chance de levar uma sova – precisamos apanhar mais vezes – de preferência, inúmeras – para os mais felizardos, infinitamente. Quem sabe então o demônio declararia satisfeita sua gana de dor. E humilhação.)
Gosto de mamar.
Gosto de mamar de porta não apenas fechada mas trancada. Mandei instalar trincos, sete, de cabo a rabo, vários tamanhos e cores, uns fazem craq, outros estalam crip, nem assim consigo me sentir suficientemente a salvo do mundo.
Se fosse só o mundo.
Em frente da tevê na sala, um sofá e uma poltrona. Esta destinada à mana. No sofá papai sentado (canto direito, perto da porta, exatamente onde teria o primeiro infarto dez anos depois; tá doendo muito? perguntei me perguntando se devia imprimir mais comiseração na voz, receando soar afetado; ele, todo crispado no sofá, fez que não), mamãe deitada, eu encalacrado entre ambos, pés no colo de papai, cabeça pousada na bunda de mamãe.
Locutor do Repórter Esso: Jânio renunciou ao governo.
Mãe, que é renunciou?
Sei lá.
Locutor do Repórter Esso: o presidente não conseguiu estabelecer uma relação harmônica com o congresso nacional.
Mãe, que é harmônica?
Sei lá. Pergunta pro teu pai.
Pai, que é harmônica?
Papai deu de ombros, me encalacrei mais ainda entre os dois.
O escuro hoje dispenso – a mamadeira há de se acompanhar dum livro ou do computador. Décadas, décadas, décadas mamando em butecos, barzinhos, padarias, muquifos mil verde-anil, só e/ou não, como pude. As escolas precisavam parar, rever seus métodos didáticos, arejar as cabecinhas de profes e diretores, ei! existem moleques que simplesmente não nasceram pra seguir e muito menos – palavrão à vista – socializar. Caio em “estado” de melancolia, fico abanando a cabeça sob o ataque de incontáveis cutucões mnemônicos. Como pude? Não consigo crer que fiz o primário, o ginásio, o colegial rodopiando em câmara lenta no meio duma manada de símios sendo amestrados por chimpanzés sob caminhões de princípios e motes e lições e exercícios e normas que só lograram que me desesperasse ansiando pela solidão em que finalmente pudesse tentar que meus próprios pensamentos se elaborassem e meus ouvidos não ensurdecessem com minha própria voz e meu nariz não se retorcesse sob meu próprio cheiro.
Não nego aos donos do mundo o direito de fazer dele o que lhes apetecer. Não nego perante mim mesmo, obviamente – não degringolei tolo a ponto de enfiar a cabeça num buraco, não enlouqueci a ponto de me guiar por minhas fantasias. E eles vêm fazendo desde que eles e o mundo existem, não é mesmo? Tudo a que aspiro – hoje – é o direito de decidir que mundo quero pra mim e ter um mínimo de controle sobre ele. Na medida do possível. Não do impossível. O problema do presidiário não é estar trancafiado – é saber que lhe tiraram o poder de deixar de ser quando lhe der na telha.