O mundo é governado pelo anjo vencido

Estava relendo um trecho de Jogador. Ivanovitch é tutor da prole dum general. O general está doentiamente apaixonado por Polina. Polina é enteada do general. Essa tradução é aquela de Boris Schnaiderman. Schnaiderman diz lá pelas tantas que em russo não existe artigo e resolveu remover o “O” com que o romance era tradicionalmente vertido mundo afora.
Passava das 21 horas quando me sentei aqui onde estou agora disposto a falar do Jogador. Às vezes a Providência Divina me acode, impedindo que eu cometa mais um dos meus proverbiais vexames. Ultimamente venho pisando na jaca com mais frequência do que seria salutar. Como aquela outra noite em que desandei a palrar de Albert Camus. Espero que vocês aí fora (aí dentro? nunca estou bem certo) entendam. É excesso de fome, acho. Se tem algo que tira um cristão do eixo é a maldita. Sou um esfomeado. Não perguntem de quê. Quer dizer, tenho certeza de que já sabem, depois de tantos anos deste nosso relacionamento de mão única em que lhes dou tudo e vocês não me retribuem com nada.
Como sabem, tenho um imenso – e quando digo imenso, é imenso no duro – banco de dados literário em que vou jogando tudo que colho ao longo das minhas leituras. Se trata dum banco de dados comme il faut. Como também sabem, sou programador nas horas vagas e nas ocupadas. Meu banquinho de dados deve estar girando em volta duns 30 mil entries, ou “entradas”, como preferem meus colegas de programação brasilianos. Sei que se ressentem quando falo assim mas programador, fora de seu métier, é tão analfabeto quanto engenheiro e médico. Esses sujeitos são inteligentes e aptos apenas em suas áreas de especialidade. Quando participava de fóruns de desenvolvimento de programas, eu tascava verbetes e os caras não sabiam do que falava.
Para sorte minha – e, mais ainda, de vocês –, quando me sentei aqui onde estou agora disposto a falar do Jogador, me pus a fuçar no dito banco de dados e fui parar num textículo escrito por Otto Maria Carpeaux sobre, com perdão da rima, Dosteaux. E vocês dificilmente vão acreditar – Otto Maria redigiu o dito cujo em – pasmem! – 1942. Pois é, provavelmente o mundo já existia aquele ano, quem diria? Imaginem se citássemos um bicho desses hoje no face? Carinhas tiravam uma. Outro dia minha diletíssima amiga Sue Cida botaux uma das minhas crônicas em seu perfil e uma amiga dela foi correndo debochar que aquilo parecia um romance. O referido deve ter umas 300 palavras, vejam vocês. Dizem que uma das razões do Tweeter é que força a economia vocabular dos usuários. No começo pensei que não fosse pegar, hoje entendo.
O pequeno ensaio de Otto Maria sobre Dosteaux se chama O bárbaro barbado. Vejam só que delícia de título. Não, não me refiro ao trocadilhinho tosco, obviamente, e sim ao fato de que apenas a primeira letra está em maiúscula. É de desopilar o fígado dum cristão nesta era medonha em que todo mundo e seu operador de xerox macaqueia tudo que Mary, Paul & Jonathan fazem lá pros lados do Trópico de Câncer.
O segundo período da análise de Carpeaux é este: “Dostoievski é, se não o maior, decerto o mais poderoso escritor do século 19; ou do século 20, pois a sua obra constitui o marco entre dois séculos da literatura”. E é exatamente aqui que entra a fortuna dos meus quase quatro leitores e meio nesta malfadada e ardente noite deste último dia do outubro mais escaldante dos 28 séculos passados. Meu cabeção babélico já começava a processar as primeiras aboborinhas em torno do pobre bárbaro barbado quando, felizmente, meu olhar erradio pinçou o “...o mais poderoso escritor...”.  Foi então que me detive. Viram como ainda tenho uns resquícios de semancol, mesmo que não pareça?
Não há absolutamente nada que eu fale de Dostoievski que Carpeaux e tantos outros estudiosos já não tenham dito de modo sei lá quantas vezes melhor do que eu seria capaz. Esse texto de Carpeaux consta do primeiro volume dos Ensaios reunidos, coligidos há alguns anos por uma equipe editorial boa de taco. O primeiro volume, que ainda estou esperando que alguém me dê de presente, foi preparado sob a orientação de Olavo de Carvalho, que subiu uns pontinhos no meu conceito depois de tal empreendimento.
De minha parte me vejo obrigado a mencionar pateticamente, mais uma vez, que fui com sede demais ao pote aos meus vinte e poucos anos e entornei o caldo da minha formação literária. Vocês de certo se lembram que outro dia citei Euclides (não o meu tio casado com minha tia Lourdes; aquele outro dos Sertões) e como fui incapaz de reassumir a leitura dele depois da idade da razão. Dostoievski, como deve estar claro, se inclui entre as vítimas da minha sofreguidão. Há uns dez anos reli Cadernos do subterrâneo (não sei se é este o título oficial no Brasil) e os ecos não deixaram mais de verberar nesse vasto pavilhão vazio que carrego de manhã à noite a aguardar os sentidos que a vida me prometeu. Reli os Cadernos crente de que os demais romances viriam naturalmente em seguida. Não foi daquela vez. Raskolnikov terá de continuar quietinho, esperando sua chance. A fila é esbaforidamente longa. E vagarosa. Temo – como preferem nossos tradutores macaquitos – que não haverá tempo hábil.

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