Monte de escombros e assombros


Semana passada, confraternização, pororocas mil, se pudesse poupar adjetivos, minha terra tem palmeiras, coríntians, carnaval, lula, vizinhos, tevê.

Sou igual a nove entre dez estrelas do cinema. Vivo encarcerado no meu mundinho de fantasmas e fantasias. Quebro a cara quando me vejo obrigado a botar os pés fora dele. Não há o gente ó não luar como este do sertão.

Conviver é o que há de melhor e de pior. Descobri, ano passado, que sou misantropo. À la Thomas Bernhard. Escrevo que nem nenê. Molecote de sete anos. Deve ser por isso que tem dia é tão difícil. Em que pesem os ditirambos de Thomas Mann, Kierkegaard, a respeito, a infância é barra pesadérrima. Para Graciliano, príncipe das letras idolatradas, quebra o espinhaço do bípede logo cedo que é para não deixar passar despercebida a lição da "experiência".

Semana passada encontro com amigos. Pessoas de verdade me dão tédio mortal. A previsibilidade do que vão dizer e do que vão fazer é um pesadelo. A mesquinhez, mon dieu. A mesquinhez das pessoas de verdade é abissal, não cabe neste universão entulhado de galáxias à deriva à minha procura no infinito. Não tenho uma gota de paciência com os papos furados. A bosteira de ideologia que está tomando o lugar da religião herdada, os espertinhos que tentam negar o atavismo, bazófia de peritos na anodinia do cruel cotidiano.

Quando começa assim, olha, não sei você, mas eu não acredito em deus, prontamente erijo um muro de pedra por dentro, tentando me preparar, se segura que lá vem merda.

Conviver, ser obrigado a "participar" dos rituais que essa gente inventa para não abrir as pernas 50 vezes ao dia, é um pesadelo excruciante. Por ter trauma do parto, a previsibilidade da tragédia humana em geral e da minha em particular, ainda trago na memória o instante endemoniado em que fui brutalmente arrancado do tépido e aconchegante ventre de mamãe, esses gurus da tecnologia que vivem inventando trastes bem que podiam fabricar úteros artificiais para nós adultos sem chance neste mundo abandonado pelos deuses, você entrava, fechava o zíper, hibernava até apodrecer, me recuso a tomar parte no Soporífero Teatro Humano, peço que cavalheiros e madames falem baixinho, que preciso dormir.

Cara, pensava que já conhecesse tudo e todos, mas depois que descobri Witold Gombrowicz, polaco que se escafedeu para a Argentina um mês antes da Segunda Guerra – conheci pessoalmente uma cacetada de europeus fugidos da guerra, polacos, alemães, judeus, tive um amigo ucraniano, Oleg, crânio em química, hoje deve ser diretor d'alguma dessas multis que matam rios e mares mundão afora, nosso sonho quando fôssemos adultos construiríamos um Impala rabo-de-peixe de seis faróis, eu achava que todos os seis deviam ficar em linha, Oleg não, deviam formar triângulos para não ficar feio –, Gombrowicz tem um texto contra los poetas e de que sempre falo em que começa se desculpando por não dominar o castelhano para em seguida soltar que A veces me gustaría mandar todos los escritores del mundo al extranjero, fuera de su propio idioma y fuera de todo ornamento y filigranas verbales para comprobar qué quedará de ellos entonces.

Depois arreganha:

Por qué no me gusta la poesía pura? Por las mismas razones por las cuales no me gusta el azúcar "puro". El azúcar encanta cuando lo tomamos junto con el café pero nadie se comería un plato de azúcar: sería ya demasiado. Es el exceso lo que cansa en la poesía: exceso de la poesía, exceso de palabras poéticas, exceso de metáforas, exceso de nobleza, exceso de depuración y de condensación que asemejan los versos a un producto químico.

E madame e cavalheiro ainda achavam que ninguém em sã consciência poderia ser contra os poetas.

Os sonhos que os não sonhadores sonham

Estou escrevendo.
Olho de lado.
Uma aranha despenca de sua teia no canto entre a parede e o teto.
Um despencar quase vagaroso, meio câmara-lenta, provavelmente amortecido por um fio que a aranha veio tecendo enquanto despencava.
Me aflijo aguardando o baque da queda.
Ela termina de cair e me dou conta de que aranhas não produzem baques quando caem.
Ela está morta.
Morta sem um baque nem qualquer outro anúncio de sua morte.
Me penalizo.
Todo ser vivo merece pelo menos um anúncio de seu fim.
Afinal é um fim, porra.
Quero chorar.
A carranca de meu pai se descortina instantaneamente feito a bandeira do Brasil.
Não chore à toa, ele ralha.
Sei que ele choraria se visse a aranha despencar e morrer sem um baque.

Ferozes mordidas no vento

Diz aí, acontece com você, um pensamento clandestino de repente ilude a vigilância da tua cabeça?

E você se ilumina inteiro como se um holofote tivesse acendido por dentro?

Violando cada reentrância mental que você imaginava protegida, ressuscitando lembranças mortas que se movem viscosas e pesadas para baixo de sombras, expondo ao teu envergonhado olhar os interstícios entre as placas mnemônicas que sustentam tua existência?

E no instante seguinte teu estômago se contorce e tua respiração é paralisada e teus lábios crispam e teus dedos se contraem?

E, tomada de nojo, um nojo definitivo, um nojo fundamental, tua cabeça indignada se dá conta de que você não passa dum impostor?

Vitrola ainda com cheiro de nova

Todas as coisas que me fazem
Foram se desfazendo
Estão desfeitas
Inda assim tenho de obrar a mágica
Da minha integralidade
E olhar amanhã como se fosse inteiro

Manifesto Emily Dickinson

Emily me visitou esta noite
Na companhia duma multidão de poetas loucos
A quem me abstive de perguntar se loucos são poetas
Emily se aproximou de minha poltrona, estendendo a mão.
Não perguntou por Sylvia e não me surpreendi.
Na sociedade que Emily inaugurou e à qual pretendo pertencer por mérito um dia
Nem nos lembramos desse tipo de pergunta.
Então Emily sentou no meu colo e não me auscultou para ver se eu estava de pau duro
E murmurou em sua vozinha de protestante ciente de que a Terra é o palco próprio dos seres humanos:

Não fiz meus poemas para o olhar alheio.
Vejo que no mundo online quase todos escrevem para ser lidos.
E me dá um enjoo pensar que nunca mais poderemos orar pelos mártires.

A náusea sem flor



Legato

Cacei A flor e a náusea na rede, imprimi uma cópia, colei na geladeira co'aqueles ímãs que anunciam bujão de gás.

A patroa e outros seres inidentificados que habitam aquilo que chamo lar tomaram por meu. Liraraliririlará. 

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.

Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.


Este trecho, que minha velha professora Beth Brait, poeta frustrada (os há que não sejam? perguntaria Neruda e cia. em sua sintaxe de guardinhas-ciosos-do-próprio-território) gostava de chamar estrofe, este trecho podia ser meu e de outros milhões de pequenos insetos às tontas pelo mundo ressentidos com o poderzão que nos bafeja com seu hálito azedo de peetistas predadores e quimeras outras.

─ Meu? ─ indaguei em voz limpa e clara, agora que finalmente, depois de três anos e lá vai paulada consegui superar minha Fase Bruta da Não Interrogação e Outras Perturbações do Discurso, avançando um dente na engrenagem linguística que sempre emperra bem quando a Razão está para descortinar diante dos meus olhos vítreos de dor fake e salmoura aguada.

─ E não é não? ─ they asked back.

Me senti lisonjeado. Mais por dever de ofício de ser humano em permanente estado de inércia que ser confundido com o barnabé de Itabira cuja alma foi levada aos poucos nas caçambas dos caminhões a desconstruir as montanhas em torno da quase aldeia do século 19.

Se fosse eu, tiraria a flor. O poema devia acabar antes daquele "Uma flor nasceu na rua!"

Esperançoso demais para nós niilistas descabaçados de hoje, agnósticos esnobes, deliberadamente ingênuos, existencialistas profissionais fudidos até o ponto sem retorno.

E soa cafona. Drummond, mesmo na flor da idade quando ainda tinha energia, que lhe faltou na velhice em que cometeu sandices pueris, tomou por demais seriamente o papel de gauche da brasilidade. No fim, mostrou ser apenas uma fantasia rendada de pompons azuis e rosa cum ligeiro perfume asqueroso de lírios conservados em naftalina.

É feia. Mas é uma flor. 

Eu nunca seria tão otimista. Dói pensar. Flor só aquelas roxas, cor do meu horizonte pressentido, desde o berço, na minha coroa cujo perfume fétido só eu, enfim eternamente só, sinto.

Meu/nosso poeta brasileiro, e por mais que você saiba de cabo a rabo outro idioma que não seja o teu nativo, está para nascer. Às vezes tenho tão claro que Drummond é apenas o aspirante ao vitral vazio de patrono da nação. 

E todas aquelas exclamações. Pr'esse exército de semianalfas que chafurda online, qui fait quoi? Para o gauche de carteirinha, deixa um gosto estranho no dia. 

Sob fogo brando

Presto agitato

Ontem à noite os internos do Complexo Tatuapé da FEBEB ─ Fundação Estadual para o Bem-Estar dos Banqueiros ─ na zona leste de São Paulo, fizeram nova rebelião, a quinta dos últimos cinco dias. Desta vez, o tumulto, que começou à 1h desta madrugada, envolveu 102 internos da unidade 16, a única que não participou do grande motim ocorrido na noite de segunda-feira, quando quase todos os 1.600 internos se rebelaram.

Os banqueiros subiram nos telhados e atearam fogo em notas de cem reais e títulos ao portador. Alguns, mais exaltados, queimaram colchões e depredaram as instalações. O Corpo de Bombeiros foi chamado, mas a chuva que caía no início da madrugada ajudou a reduzir as chamas. Um homem ─ aparentemente pertencente a uma instituição bancária estatal ─ foi exibido como refém, mas ainda não há certeza de que não se trata de um dos integrantes da rebelião que se faz passar como vítima.

Analistas econômicos do FMI e policiais do patrulhamento de área e da Tropa de Choque estão em frente ao complexo, prontos para agir. Assessores do Ministério da Fazenda haviam passado boa parte da noite dentro do complexo Tatuapé para evitar novas rebeliões. Às 19h30, cinco carros da PM, oito carros fortes carregados até o teto de ouro e mais um microônibus com operadores da Bolsa entraram na instituição levando cerca de 30 policiais fortemente armados e índices Bovespa.

O governador disse hoje que o complexo deverá ser mesmo desativado. Na sangrenta rebelião de ontem quatro internos foram mortos, um deles decapitado e outro empalado com 1 milhão em depósitos sem vaselina. O entorno do complexo educacional está tomado por parentes que, desesperados, pedem notícias sobre seus banqueiros internados. Algumas mães alucinadas de dor tiveram de ser enviadas a um hospital e medicadas com sais e extratos à base de dólar.

O governador não quis falar em prazos para a mudança. "A tendência é de que seja feita uma desativação, mas isso será a longo prazo. Primeiro, precisamos construir novas unidades para receber os banqueiros que estão nas unidades do Tatuapé."

Nessa nova rebelião do ciclo interminável de comoções que assolam a FEBEB, 30 banqueiros conseguiram fugir. Apenas dois foram recapturados. Por azar, os que cobram menos juros.

Estrangula-me piedosa da maneira dos meus olhos

Sou um sujeitinho medíocre. Talvez um fracassado, graças a Deus.
Foi o que proclamou um amigo meu há exatamente um ano num lero online.
E eu disse assim:
Eis uma bela afirmação. Do tipo que me inspira. Dependendo do meu estado de espírito, também curto me achincalhar. É a única saída quando não podemos achincalhar o próximo.
Primeiro pensei que essa autodepreciação fosse uma mera vitimização existencialista fictícia para fins de efeito especial. Depois, com o "sujeito que não se encaixa na ordem das coisas, é inteligente mas não consegue um emprego altamente rentável, azarado no amor" fiquei em dúvida se você estava misturando realidade e ficção de propósito. Em qualquer caso, não me leve a mal por ver suas colocações nesses termos. Hoje não podemos ser senão anti-herois. Herois, e pretendentes a, são, santa mãezinha, inefavelmente ridículos. Principalmente os que vivem esfregando seus currículos na nossa cara.
O parágrafo introdutório de Notas do subterrâneo é um dos poucos que sempre tenho decor: Sou um homem doente... Sou um homem malvado. Sou um homem desagradável. Creio que tenho uma doença do fígado. O maior anti-heroi jamais inventado. Que coragem publicar a história dum homem em processo mórbido de autodegradação nos idos de 1864, quando minha tataravó pedia perdão por existir 24 horas por dia. Ainda hoje os loyola brandões, os carlos heitor conys, os milton hatoums da vida se cagam de medo de uma gota que seja de visceral. Certos círculos literários decretaram que ser visceral saiu de moda. Literatura agora se produz em boutiques.
Mas, coragem à parte, era relativamente fácil escandalizar a sociedade pudica da época. Se bem que ainda hoje o anti-heroi que chegou às telenovelas é apenas um subversivo extremamente light e inofensivo. Em breve você poderá ir preso se disser um palavrão ou fumar num restaurante. Mesmo nos fóruns literários se confunde ficção e realidade. Lobato virou vilão. É assustadora a necessidade de viver num angu formado de impostura e mentira. A raça parecia vir evoluindo, mas eis que a hipocrisia atinge níveis insuportáveis e nos tornamos campeões dos mentirosos de todos os tempos. É impossível botar o dedo na realidade. As placas de trânsito nos desencaminham.
Agora somos os alegres proprietários de vários tipos da Fantástica Máquina da Mentira. A tevê e as engrenagens publicitárias nos chupam, mastigam nossos sentimentos, devoram nossas aspirações e vomitam Robozinhos Consumistas de Livros. Autorezinhos do Bom-Senso. Poetinhas Criadores de Róseos Poeminhas. Vivemos bem esmagadinhos sob a lógica da mercadoria. Estamos desumanizados, embrulhados para presente no dia dos pais, das mães e do cacete. E até mesmo a transgressão é absorvida pelo Sistemão para que amanhã cedo o leitor possa sentir-se satisfeito por fazer parte da elite pensante. Precisamos encontrar meios de escapar ao nosso destino de itens de supermercado. Precisamos acordar do anestesiamento, das cantigas televisivas que nos convertem em felizes, risonhos, pseudointelectualizados cadáveres estendidos no sofá da sala.
Precisamos mais que tudo ter a coragem de identificar e debochar do senso comum. 
Inclusive -- ou sobretudo -- o senso comum do "bom gosto" literário.
Meter o sarrafo em P. Coelho, até meu sobrinho LV de oito aninhos é capaz. Quero ver é descer a lenha em Gabriel García Márquez. Quem se atreve?
E você na certa vai perguntar: por que cargas d'água que passarinho não bebe alguém meteria o pau em García Márquez? Todo aquele universo fantástico coisa e tal, tão lindinho, a gente até se esquece das mazelas do dia a dia.
Mas é tão mistificador em seu "realismo mágico", que a aparente beleza da narrativa sucumbe sob a profissão do irracional.
Outro ícone da literatura moderna em quem eu gostaria de dar umas cutucadas é Umberto Eco e seu cerebralmente sacal "O Nome da Rosa", que nos aliena das misérias do mundo e das nossas dores com sua sofisticação fajuta e sarcasmo benigno, fazendo de nós "consumidores culturais", nos entuchando de papagaiada teorizante, nos insuflando de um tolo sentimento de contemporaneidade para podermos encher a boca de farofa e presunção nas rodinhas de salão.
Mas não era disso nem do meu amigo nem de Dostoievski que queria falar quando comecei a escrever agora.
Queria dizer é que sou dividido.
Sou um quando escrevo a minha literatura, sou outro quando olho a literatura alheia. 
Quando escrevo meu arremedo de literatura, durmo. Para que outro em mim acorde. E digite de fato no teclado o que "ele" pensa deva ser digitado. Foi por isso que batizei meu blog de sonâmbulas sonecas. Pode soar pretensioso mas é a verdade. Seja como for, há muito aprendi a não dar bola para o que os outros achem de mim. Escrevi e ainda escrevo muito sobre o que penso da opinião do próximo. Se tiverem paciência, vejam http://sites.google.com/site/wilvaccari/umpf/deanjosratoseoutraspragas.
Essa dualidade (ou multiplicidade, no caso de caras óbvios como Pessoa) é muito mais comum na literatura do que imagina a vã filosofice dos diletantes). Na verdade todos somos mais ou menos múltiplos, sejamos escritores ou não. O literário esportista sufoca seus outros (por mil razões) e estamos conversados. Ser mais de um dá trabalho, e pacas. Assim que se dá conta da parada, o literário esportista escolhe com a mais absoluta inconsciência qual dos seus múltiplos quer ser e vai ser (in)feliz. O escritor, como deve estar claro, faz exatamente o contrário. Mete o nariz onde não foi chamado, brinca com fogo, avança o sinal, se arrisca, quebra a cara e clichês que tais. Alguns se matam. Como sou um sujeito relativamente normal, esses são meus preferidos.
Aqui, procuro me alienar das minhas idiossincrasias. Sei que é vão mas tento. Não resisto a fazer gracinha. Mas, cara, depois que você leu um ensaio qualquer de Mário de Andrade, único que seja, e se você for sensível aos perfumes exudados pela suculenta prosa do homem, pode desistir das regras de redação que a professora de Português te enfiou na cachola.
Embora não logre sufocar as ditas idiossincrasias, acho que estou ciente delas. Já é alguma coisa. O ato de escrever dispara em mim uma incontrolável viagem de murmúrios, urros, latidos, dejavus, flashbacks. Pode ser qualquer coisa. Mesmo um recado no telefone. Rubem Fonseca coleciona bulas de remédios. E, pombas, os lê. Para o literário esportista, é tara de gagá. Mas Fonseca não é de viver à toa, jogando no lixo suas mais sacras e comezinhas experiências.
Estando relativamente ciente das minhas idiossincrasias, vou escrevendo aqui tentando não viajar além da conta, ser minimamente legível, segurar o touro com minha cordinha elástica.
Por fim, escrevo, e só posso escrever, a partir da minha experiência. Que é (atenção: clichê à vista) pessoal e intransferível. Isto posto, a cada dia que passa me convenço mais de que me cabe ter um compromisso com quem me lê, qualquer que seja o contexto. A isso se chama legibilidade. Ao contrário do que imaginam os médicos com suas receitas, temos o dever de ser legíveis. (Me refiro aos derridas que complicam deliberadamente sua escrita para decretar que clareza é pobreza, sem nos dar chance de comprovar se há algum sentido recôndito em seu obscurantismo gótico. São outros quinhentos os grandes escritores que não dão nem nunca deram sopa a leitor que tem preguiça até de mastigar.)
Então tenho de buscar um equilíbrio entre a minha exclusivíssima pessoalidade e um mínimo de transparência para que o leitor possa saber onde meu galo canta.
De novo, meu maior horror são os pós-estruturalistas (ou simplesmente estrutaralistas nos EUA) franceses. Deve ser algum problema pessoal, tipos sanguíneos incompatíveis. Todo mundo e sua prima cai de amores por Barthes, Deleuze, Foucault, Lyotard. Taí uma pergunta que eu faria a um cara como Fonseca ou outro de sua estirpe, se pudesse: você lê Gilles Deleuze?
Porque sei que Leyla Perrone-Moisés, uma das mais destacadas críticas literárias do Brasil e professora emérita da USP, lê. E Roberto Schwartz. E Flora Süssekind. E todos os críticos literários olimpicamente menosprezados por Rilke. (Vide link.)
Bato tanto na tecla do estruturalismo porque são caras que dizem ter vindo para, no dizer típico deles mesmos, "jorrar luz". 
Melanie Klein, a mais bem-sucedida e  genialérrima discípula de Freud, disse, muito grosso modo, que o inconsciente, que é a matéria da psicanálise, se forma muito antes que os significados verbais e portanto tem uma lógica "interna" própria, ao mau passo que as palavras são referências à experiência real ou fantasiada e fazem parte do consciente. Daí a Lacan foi um pulo e dele aos guattaris, outro. O que esses franceses fazem é psicanálise? Provavelmente. E é literatura? Não sei. Pois não consegui ler, excetuando as Mitologias de Barthes, nenhum deles. Embora sejam endeusados inclusive nos EUA, o que para mim é um mistério. Franceses se amarram na liberdade e quanto mais infinita, melhor. Mesmo que seja a de proferir aboborinhas com picles.
Mas os grandes escritores contemporâneos mais experimentalistas, de Joyce em diante, lograram um certo equilíbrio entre as idiossincrasias, a experiência pessoal e o inconsciente e a legibilidade, a capacidade de transmitir essa experiência e o consciente. O exemplo óbvio é o stream of consciousness.
Li Ulisses molecão. (Se me permitem uma indiscrição, nome do meu filho mais velho, hoje doutorando em, bidu, filosofia.) Aliás de novo, tudo de importante que li, li até os 30. E, santa mãe, não li lhufas. Com 57, vou me arrastando sob a mais atroz das dúvidas: reler o que sei que vale a pena ser relido ou ler pela primeira vez o que nunca pude mas sei ser fundamental. 
Nos últimos tempos virei um ciscador. Tenho uns 10 mil títulos no meu disco rígido. Pela própria experiência sei que leitura me faz bem e qual é perda de tempo. Você tem de optar cedo ou tarde. Mas nunca deixe de ler agora o que sua intuição pede. Amanhã será tarde. Algumas obras queria reler porque acho que hoje minha chance de compreendê-las seria maior. Mas pulsa em mim ainda viva a energia com que me tranquei no quarto e devorei em dois dias A educação sentimental, energia de que hoje resta apenas um laivo, e podes crer bicho, ler aos 18 anos não tem igual. Se eu pudesse voltar, leria até morrer. 
Agora o que mais faço é escrever. Não tenho mais saco para ouvir e tentar entender as experiências alheias. E o que leio mais é poesia. A mais nobre e difícil das escritas. E das leituras. Tenho quatro romances entre escritos e a reescrever. Duvido que terei tempo e força para acabá-los. Escrevi cada um qual Pessoa: num transe. Precisaria reencontrar cada transe para retomar. Como é foda escrever, apesar das piadinhas de Ferreira Gullar a respeito.
É escrevendo, ou tentando, que você aprende a dar valor aos escritos dos outros. Cada um tem, uau, sua cruz.
Fim.
Não percam no próximo capítulo mais uma patética tentativa de retomar o esgarçado fio da meada e de como me embrenhei no labirinto para descobrir, decepcionado, que o Minotauro é vegetariano.

Esboço na areia

Se você tivesse um rosto
Que te denunciasse
Por não ter rosto


Uma boca
Cujos lábios proferissem
As palavras sem voz


Dois olhos
Sem o olhar moribundo
Dos que não veem


Um nariz a suspirar 
Dos anseios enterrados
No peito


Eu deitaria a cabeça
Deixaria de sonhar

Dízimo de domingo

No livro de folhas negras que me deste
olhando meus olhos (sem saber da
carga de dor em teus olhos), li,
flutuante de torpor, o mais amargo
dia de todos os dias descrito em
letras brancas de luto, a saborear
o sangue do teu desumano fruto
na noite a pousar sobre a cidade

Minha calculadora metafísica

Olha, a maioria dos escritores escreve mais ou menos pelos mesmos motivos. Que não vou elaborar aqui. Nem mesmo sei quais motivos são esses.
Mas, de tanto escrever e de tanto constatar o efeito do que escrevo nas escassas pessoas que me leem, hoje sei  – ou desconfio que – por que escrevo, afinal.
(O que já é um começo, acho. Quem escreve sem nem imaginar por que ou para que, não é escritor.)
Vamos à razão:
Escrevo para tentar obter passe livre na vida e no mundo apresentando à vida e ao mundo, tanto quanto possível, as desculpas por ser o que sou e fazer o que faço.

Sem parafina no cabelo

Molto grazioso


Gostaríamos de falar da permanência.
Gostaríamos de falar da permanência usando, como está claro, o plural majestático. 
(Também conhecido por "plural da modéstia".) Em renunciando assim à primeira pessoa do singular e adotando a primeira do plural, pretendemos falar da permanência não apenas em nosso nome mas também no de tantos quantos se interessem por tratar de tal tema.)
Confidenciemos: esperamos que seja uma verdadeira delícia, que nos sintamos no playcenter com friozinho na barriga enquanto papai empolga nossa mãozinha com sua garra de roceiro.
Baita segurança.
Admitimos que a máscara da nossa antiga professora Lurdinha de Matemática zapeia diante de nossos olhos. Queremos pregar um nariz de palhaço no esgar da morte.
Sim, gostaríamos de tratar da permanência. Desejaríamos com isso mirar na fenomenologia do espírito hegeliana. Mas não lograremos sequer demonstrar quão desajustados nascemos e esquizóides nos tornamos a cada dia que nunca passa.
A título de exercício, olhemos à nossa volta. Olhemos prestando atenção para ver se atravessaremos vivos mais esta noite vagabunda que nos levará errática ao amanhã em banguela mental e daí aos irrespiráveis confins da tarde forrada de miragens que tomamos por processo cognitivo.
Olhemos.
Olhemos outra vez.
Que é que vemos?
Vemos a tela do computador. As caixas acústicas pelas quais chegam aos nossos ouvidos os acordes de Adagio For Strings, de Samuel Barber, um scanner, racks com centenas de devedês com que vamos empreendendo nossa história digital neste mundo (história que, ao contrário das outras, não sobreviverá à nossa morte).
Vemos ainda uma xícara de café vazia, uma impressora pronta para registrar nosso cotidiano em papel, o jornal de ontem e tudo mais que compõe inutilmente esta nossa vidinha pasmacenta.
Agora dispensemos o majestático.
Você se assustou?
Tudo bem, também me assusto. É meu estado constante. Quando me sinto relativamente confortável, reduzo um ou dois dentes meu estado. De agonia para sobressalto. Na última vez consegui rir. Faz um tempo. Não lembro de que, só que consegui.
Você talvez tenha se assustado por imaginar que tenho o dom da telepatia, adivinhando assim a tralha que te cerca.
De certa maneira, sim, tem algo a ver com transmissão de pensamentos. Não é isso que os humanos fazem o tempo todo ou quase? Pensam tão igualzinho, que é como se todos estivessem tendo o tempo todo o mesmo pensamento?
Às vezes tenho a impressão de que o mundo está coberto por um gigantesco pensamentão que protege todos do desconhecido mas abafa as peculiaridades de cada um qual essa atmosfera poluída que alimenta, oxigena, envenena e mata os seres que habitam este planeta.
Grandes cismas da humanidade, você se perguntaria, grandes cismas como ideologia esquerda-direita, características próprias homem-mulher, dicotomias naturais como criança-homem e outras milhões das dualidades que formam as duas metades do nosso pãozinho francês sem entranhas? Qual. Brincadeira de amadores. Não era essa a idéia de deus, afinal?
Queria hoje falar da permanência.
Olho à minha volta. Tudo permanece mais ou menos no mesmo lugar desde ontem, anteontem, antes de anteontem. Eu também. Meu pai também. Meu avô também.
Estou sentado nesta minha cadeira de rodinhas e encosto reclinável há 190 mil anos. As rodinhas me permitem razoável mobilidade de 180 graus, o encosto atenua a rigidez do meu espinhaço. Embora possa me locomover para ir à cozinha tomar um café e escutar um carro que passa na rua, eu também. Embora me escravize e me torture, me dando esta falta de ar sob o pensamentão que a tudo nutre e devora e que é meu estado mais constante, eu também, embora viva de cometer excursões interiores e, oh, tão simetricamente falso, incursões exteriores, eu também.
Que seria de nós pobres diabos sem a permanência?
Imagine só:
Você desce ao teu escritório, como faz todas as manhãs, todas as benditas, todas as malditas manhãs, sôfrego por ligar o computador, antegozando as melífluas delícias da peripatetice digital, e pumba! o computador não permaneceu.
Gasp! que é que faz agora?
Engole uma ruidosa golfada de ar sujo. Passada a perplexidade inicial, sendo tão perspicaz coisa e tal, nota que outras coisas também deixaram de permanecer, incluindo a impressora, a xícara, o scanner, os devedês, talvez o próprio escritório.
Sendo simpatizante incondicional do pensamentão-mestre, você certamente se poria a apalpar o próprio corpo, à beira do desespero sob o terror de, que azar, ter caído vítima duma malfadada impermanência. E também certamente exalaria o ar dos pulmões, aliviado por deus e seu pensamentão magnânimo ter te poupado. Pelo menos desta vez.

Numa mescla de desespero e asco

Em algum lugar nas proximidades
uma estátua de ferreiro
bate, bate, bate
sua toada de picos agudos
cravando a ferradura no cabisbaixo
e silencioso cavalo que me levará
de volta à redoma encoberta
pelo céu azul que ficou no passado
onde acordarei para ver que
aqueles ao meu redor já
estavam mortos quando
nasci

A família Vaccari não me roubou aquela manhã

O malévolo perfume saturado de banha da leitoa no forno me invade as narinas e você quer que eu tampe o nariz?

Eis-me aqui delirando com a cena em que, grotesco, sem pejo, lascivo e babão, me sonho metendo os caninos fundo na rósea carne suína, com a gordura a me escorrer pelos cantos da bocarra e pelos bigodes e pelo cavanhaque, gotejando nos inocentes pêlos no meu peito arfante, e você espera que eu morra de fome?

Pois tenho a lhe dizer que a gula não seria tão inebriante se o guloso não pudesse contar com a engorda.

As dulcíssimas delícias duma comilança seriam menos doces se não incluíssem a tão esperada renúncia à disciplina e a todos os benefícios que, dizem, esta traz ao corpo e ao espírito.

O glutão, o verdadeiro glutão, dispensa a tortura da moderação.

No adiposo enviesado da minha farta aritmética, meia hora de proteínica catarse compensam três décadas de pífia contenção à minha inclemente voracidade.

Sim. O malévolo perfume saturado de banha da leitoa no forno me invade as narinas.

Que é que você quer eu faça?

Vidas de mentira

Tá, sei que o título desta postagem lembra aqueles dramalhões B estrelados por Leslie Nielsen décadas antes de o cara virar superstar de comédias C.

Mas não tenho vontade nenhuma de falar de cinema, para mim absolutamente dispensável, salvante Bergman.

Outro dia vi algures um verso de Mário Quintana assim:

Não coma a vida com garfo e faca. Lambuze-se.

Claro, li algum Quintana há décadas e, claro de novo, a poesia de Quintana recende a puerilidade à primeira leitura.

Quintana é o sujeito "dotado" do poder da palavra que os de mente simples adoram admirar e amar. Sua poesia se inclui num braço armado da poética disposto à luz do dia ao pronto acesso dos anêmicos líricos necessitados de proteína metafísica.

Claro pela terceira vez, anemia, comer, garfo e faca, tudo a ver.

Mas lambuzar-se?

O consumidor de Quintana não tem peito para lambuzar-se de vida. Quando muito, contenta-se em chupar o dedo.

Meu domingo foi maça

Para David Foster Wallace, um cara de quem eu provavelmente seria amigo, dando alguns descontos

Diálogo lido acidentalmente num portal da cidade de San Diego, Califórnia:

Assisti um pouco de futebol nuns botecos em Tijuana (pombas, como é que o Denver ainda está ganhando???), depois comi uma garota de bar em meu hotel. Tracei uns tacos duca numas bancas na rua, então descolei uma garota de programa e dei outra boa transada. Peguei um cochilo enquanto a mina me fazia uma massagem e aí resolvi arrumar outra para uma transa a três. E vocês aí, otários, como foi o domingo de vocês?


Resposta duma otária:

Acordei às 5:30, saí para uma caminhada de 2 horas e 1/2 com meu melhor amigo. Aí eu e esse amigo fomos para a casa da minha mãe para fazer o café-da-manhã dela, com presunto e omelete de queijo com ovo caipira. Depois voltamos para casa e tomamos um banho juntos. Fizemos amor por uma hora. Aí ele lavou o meu carro e o dele. Tomamos chá de cidra quente e transamos de novo.

Pois é, meu domingo foi maça também.

O fazedor brasileño

Anos, anos, anos
Longos, longos lustros
Buscando um tesouro
Fossilizado em sangue
No meio da praça

Na lua, no céu
E na rua
Nas grutas das putas
Sob véus e chapéus

Fintado qual touro
De frágil força bruta

Sem olhos em Heliópolis

Sob o doce e promissor lema de que o bem triunfa e sempre triunfará, velejamos impávidos extáticos, olhos fechados para as ratazanas no lixo à nossa porta, a monstruosa guerra civil invisível que mata dezenas a cada dia nas Margens Plácidas, nos deixando a todos escandalizados, quebrando a falta de assunto no suave gorjeio de zés de copo na mão nos bilhões de botequins e marias fascinadas com o novo vestido de tafetá da heroína da novela sob o crepúsculo atômico, period. (Pombas, não há como negar, Trópico de Capricórnio é um tremendo dum livro, embora em baixa entre sagazes intelectuais explicadores.) 

Toda escrita que não seja demolidora é supérflua. Daí a permanente sensação de déjà-vu, de encheção de linguiça em quase tudo que se escreve. E o bálsamo único do poema. E de uma ou outra ficção. Crítica, quase nenhuma. A crítica em geral passa um quê de juízo final e inveja latente meio patético. Pera lá, inveja não, que o crítico às vezes escreve melhor que o criticado. Uma sensação de que estão metendo o bedelho na vida alheia que o próprio métier não permite. O "artista" pode meter o bedelho em que quiser, obviamente. Por isso às vezes chega a artista – metendo a colher no angu que deveria ter ficado intocado in the first place. Então vem o "estudioso comentador apontando" o artista para a plebe feito delator invejoso aproveitador. A vocação parasitária é indisfarçável. Mesmo em Eliot, dublê de escritor e crítico. 

O escritor tem de ter uma marreta na mão e lascar marretadas a torto e a direito. No cravo, na ferradura e na orelha do distinto público. "Critério" é coisa de verme de biblioteca. (O verme inglês é melhor que o nosso rato.) O escritor-artífice venerável exigido pela crítica é sacal, um chato que escreve para acadêmicos terem assunto no suplemento literário. A poesia de Haroldo de Campos é soniferamente artificial, constituída duma cacetada de citações hipereruditas – que, salta aos olhos, foram suadamente escarafunchadas num lixão de tratados. Li e reli e não entendi. Talvez o brother Augusto queira lançar um dicionário para elucidar o feito. Não fala de mim ou do que sinto inconscientemente ou à flor da pele. Leio nos jornais que Campos e Umberto Eco eram amigos. Provavelmente se merecem. Que O nome da rosa tenha estourado nas livrarias do mundo todo é sintomático desta época. Um amontoado de referências cultas que ninguém entendeu, ninguém leu, mas todo mundo amou. Tentei e só me interessei pela, com perdão da palavra, trama dos assassinatos. Que a poesia concreta, feita para brandir teorias, como se a nossa cabeça se importasse com conceitos e não com os terríveis sentimentos de vida, morte, paixão e ódio que, sabemos, são os decisivos, não tem, esclerosada. Sherlock Holmes é melhor. E mais honesto. 


Pitadinha de paixão

Ela, do Sumarezinho,
ele, da Aclimação.
Ela, doce Mariazinha,
Ele, crédulo João.
Era tarde, tardezinha,
Tarde quente de verão,
Ele, triste, tão sozinho,
ela, só empolgação.
Ela era miudinha,
Ele, baita cavalão.
A garota, uma gracinha,
ele, puta beberrão,
até rude e mesquinho,
sem nenhuma inspiração.
Ela ria de mansinho,
Ele tinha vozeirão.
Ela, rosa sem espinho,
ele, vida sem razão.
Ela, pura, um anjinho,
ele, puro brincalhão,
ela, meiga peruazinha,
ele, tímido pavão.
Ela abria as asinhas
e voava sem noção.
Ele, sempre saidinho,
dava mais pra gavião.
Belo dia, um dos vizinhos
lhe falou de supetão:
“Que te falta é campainha,
já tá quase quarentão!”
Contristado, o pobrezinho
sopesou a situação.
Já não era rapazinho,
encarecia de afeição,
de meiguice, de carinho,
cafuné e diversão.
Noutro dia, de tardinha,
pesaroso, caidão,
foi até o Belenzinho,
Sacomã, Vila Carrão,
Vila Nova Cachoeirinha,
e parou num bandejão,
pediu logo caipirinha,
muito gelo com limão,
depois uma cavalinho
pra ajudar na digestão,
e uma pinga com farinha,
e salada de agrião,
“Manda outra geladinha,
pra esquecer a recessão!
Bota uma tatuzinho
pra encarar o barracão!”
Tropicando um bocadinho,
fez sinal pra lotação
e sentou encolhidinho,
bruta dor no coração.
Nisso viu a Mariazinha,
Na Ipiranga/São João.
Ficou logo caidinho
E desceu todo alegrão.
Se achegou e, apressadinho,
logo foi tascando a mão.
Ao que a doce jovenzinha
mumunhou um palavrão.
Ele, cara de santinho,
Implorou-lhe seu perdão.
Ao que ela fez beicinho:
“Cê merece um bofetão!”
Mas, olhando o coitadinho,
‘té que dava um programão.
Com discreta tossezinha
ele fez uma inspeção:
“Que garota, que gatinha,
bom, de rosto é um canhão,
mas o resto, que corpinho,
meu, é um baita dum avião!
Deixa ver, eu adivinho,
Cê nasceu escorpião!”
Ela disse, “seu bobinho,
Eu não caio nessa não!”
E assim, de bocadinho,
foi crescendo a afeição.
Ela, tórrida andorinha,
ele, lúbrico falcão.
Ofertou o seu dedinho,
ele deu logo um chupão.
Ela riu toda galinha,
Ele riu feito um pagão,
ela, qual uma santinha,
ele, zonzo de paixão:
“Você vai ser a rainha
deste humilde bobalhão.
Vai mandar lá na cozinha,
enquanto eu luto pelo pão.
Vai ser a fada-madrinha,
pilotando o meu fogão.
E à noite, coladinhos,
vamos ver televisão
e fazer logo um sobrinho
pro Edmilson, meu irmão”.
“Ah meu fofo, meu fofinho,
chega dessa embromação!
Vamo lá pro meu cantinho
começar a malhação!
Já tô toda molhadinha,
mais não agüento de tesão!
Vou-lhe dar tudo, tudinho,
Vou te pôr muito doidão!”
Então os dois, abraçadinhos,
Se aboletaram no busão,
indo pro Sumarezinho,
via a Consolação.
Ansiosos, os pombinhos
Mal chegaram no portão
se lamberam tesudinhos,
se entregaram à esfregação,
depois foram pro quartinho
se atiraram no colchão.
Sem lembrar da camisinha,
encetaram a pegação,
ele, dando risadinha,
era só depravação,
ela rindo safadinha,
muda de antecipação.
Ele, “minha Mariazinha!”
Ela, “ai meu furacão!”
Explodiram em mil carinhos,
permutando beliscão.
Ela, quase peladinha,
só de blusa de algodão.
E minúscula calcinha
que se foi dum só puxão.
Ele: “vem, minha rolinha!”
“Estraçalha, cachorrão!
Me mordisca, me espezinha,
me devora, comilão!”
Ele então, afiadinho,
Encetou a beijação.
De repente, um gritinho:
que era aquilo na sua mão?
Pomba nada, nem rolinha!
Porra, que enganação!
A ardente passarinha
Era um camaleão